Acórdão nº 212/23 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução20 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 212/2023

Processo n.º 506/21

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorridas A., B., C. e a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, o primeiro veio interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), de sentença proferida em 31 de março de 2021 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

As ora recorridas propuseram uma ação administrativa contra a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (adiante designada «OSAE») com vista ao reconhecimento do direito ao exercício das funções de agente de execução em cumulação com o mandato judicial, nos mesmos termos em que este era permitido antes da entrada em vigor da Lei n.º 154/2015, de 14 de setembro, e em consequência, peticionaram que a mesma Ordem fosse condenada a abster-se de aplicar às Autoras o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto aprovado em anexo àquela Lei, ou de promover contra elas ação disciplinar pela cumulação de tais funções a partir de 31 de dezembro de 2017 (cf. o artigo 3.º, n.º 13, da mesma Lei).

O tribunal recorrido, recusando aplicar a «norma contida no art.º 3.º, n.º 13, da Lei n.º 154/2015, de 14.09, quando conjugada com o disposto no art.º 165.º, n.º 1, al. a), do Estatuto da OSAE, aprovado pela mesma Lei, com fundamento na violação do princípio da confiança, associado ao princípio da segurança jurídica, este ínsito ao princípio do Estado de direito consagrado no art.º 2.º da lei fundamental», julgou nessa parte procedente a ação.

2. Na parte que releva para a apreciação do presente recurso, afirmou-se na decisão recorrida o seguinte:

«[…] [D]a aplicação conjugada do n.° 13 do art.º 3.° da referida Lei com o disposto no art.º 165.°, n.° 1, al. a), do Estatuto da OSAE por ela aprovado resulta que os advogados que, até então, podiam exercer o mandato judicial mesmo exercendo as funções de agentes de execução, com ressalva dos processos executivos e das situações em que a representação dizia respeito ao exequente ou ao executado em processos em que exerceram funções de agente de execução (e, nesse caso, somente nos três anos ulteriores à cessação da execução em que essas funções foram exercidas), deixam de o poder fazer em qualquer tipo de processo.

Em termos práticos, esta constatação significa que as aqui autoras podem continuar a exercer as funções de agente de execução, bem como a exercer advocacia, mas neste caso deixam de poder assumir o mandato judicial em qualquer processo - o que, até esta nova lei, só lhes estava vedado nos processos de natureza executiva e naqueloutros acima referidos.

De resto, julga-se ser pacífico entre as partes que estamos perante retrospetividade ou retroatividade imprópria, já que a própria OSAE o diz no art.º 76 ° da contestação.

E, por isso mesmo, a questão que se coloca é sempre a inicial, ou seja, se esta alteração ao conteúdo do exercício funcional do agente de execução (deixar de poder exercer o mandato judicial em todas as situações) viola, ou não, a confiança que as autoras depositaram na anterior legislação.

Mas ainda antes de aferir esta questão da violação do princípio da confiança, impõe-se afastar a inconstitucionalidade da solução normativa em causa com fundamento na violação do disposto no art.º 47.°, n.° 1, da CRP, e do princípio da proporcionalidade da limitação de direitos fundamentais, reconduzível ao art.° 18.°, n.° 2, da CRP, considerados de forma autónoma (isto é, se desligados da tutela da confiança das autoras).

O que se explica, até, com alguma brevidade.

Assim, é certo que a CRP estabelece no seu art.º 47.°, n.° 1, o direito fundamental à liberdade de escolha de profissão, aí se dizendo que todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade.

Ora, não vemos como a imposição de não exercer o mandato judicial, por si só considerada, possa colidir com este preceito constitucional. Muito pelo contrário, a opção legislativa adotada é até bastante benevolente, porque acaba por permitir àqueles que queriam ser agentes de execução o exercício da advocacia, limitando-se somente a dimensão desta relativa ao mandato judicial.

Dizer-se que ao ter de escolher entre uma profissão ou outra por causa desta incompatibilidade (ou impedimento, como se queira, seguindo ou não o que formalmente foi escolhido pelo legislador) é inconstitucional é o mesmo que assumir a violação da lei fundamental em todos os casos em que a lei impõe restrições à acumulação de certas funções.

Naturalmente, não pode ser assim, e em caso algum se poderá considerar ocorrer aqui qualquer infração constitucional. Nesta perspetiva, e sendo certo que, como visto, o legislador teve outra opção no regime de 2008, a eventual inconstitucionalidade só existirá pela consideração conjugada do princípio da tutela da confiança, mas já não decorrerá da violação singela do direito fundamental ínsito no art.º 47.°, n.° 1, da CRP.

Da mesma forma, o [que] vem de dizer-se é válido para a consideração autónoma do princípio da proporcionalidade, quando associado a atos legislativos restritivos de direitos fundamentais.

[…]

Isto dito, a restrição do exercício ao mandato judicial por parte de agentes de execução que sejam também advogados não se nos apresenta como desproporcional, no sentido constitucionalmente previsto. Com efeito, existem até valentes razões de interesse público ou coletivo que o justificam, nomeadamente a confiança no próprio sistema de justiça, tendo em conta que os agentes de execução assumem, no atual regime da ação executiva, diversas funções que, anteriormente, estavam até cometidas ao tribunal. Essa assunção de novas competências exige que se reforcem as garantias de independência, bem como a transparência, na atuação dos agentes de execução, pelo que se justifica a intervenção legislativa sob este ponto de vista da proporcionalidade, sendo a restrição ao exercício do mandato judicial plenamente suportável do ponto de vista constitucional.

Voltemos, depois disto, ao real problema que se coloca, e que, depois de todo o enquadramento feito, se pode colocar nos seguintes termos: será inconstitucional, por violação do princípio da proteção da confiança, ínsito ao Estado de Direito, a leitura conjugada do disposto no art.º 3.°, n.° 13, da Lei n.° 154/2015, de 14.09, com o art.º 165.°, n.° 1, al. a), do Estatuto da OSAE, aprovado pela mesma Lei, quando daí resulta que os advogados que acederam ao exercício das funções de agente de execução ao abrigo das alterações introduzidas pelo DL n.° 226/2008, de 20.11, ficam também abrangidos pela proibição de exercer, em qualquer caso, o mandato judicial?

A resposta passa por aplicar os critérios e requisitos que acima se enunciaram, e que resultam da jurisprudência constitucional citada.

Vejamos.

O primeiro critério, v.g., a ocorrência de uma mutação na ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas não podiam contar tem de dar-se por preenchida. Com efeito, note-se que a alteração legislativa que veio permitir aos advogados aceder ao exercício das funções de agente de execução é publicada em 14.09.2008, por via do referido DL n.° 226/2008. Quem, sendo advogado, e colocado na posição das autoras, tenha visto aquele regime terá necessariamente ponderado se valia a pena abdicar do mandato judicial nos processos ali referidos, para assim poder exercer a função de agente de execução. O mesmo é dizer que o legislador fez crer aos interessados que podiam manter a advocacia, sendo agentes de execução, sendo abdicar na totalidade da possibilidade de exercer o mandato judicial.

Diga-se, ainda, que, à luz das alterações que então foram introduzidas ao Estatuto da Câmara dos Solicitadores pelo mesmo DL n.° 226/2008, de 20,11, o acesso à função de agente de execução não era automático, ou seja, não era suficiente ser advogado, antes impondo a realização de exames, estágios, e etc...

É por isso surpreendente que, volvidos cerca de 7 anos do anterior regime, o legislador venha a alterar esses status quo, modificando os pressupostos que estiveram subjacentes à tomada de decisão por parte daqueles que se encontravam na situação das autoras, v.g., de advogados que decidiram aceder às funções de agente de execução. Com isso não podiam contar as autoras, quando confiaram na prévia alteração legislativa.

Portanto, o primeiro critério está presente.

Em relação ao segundo critério, i. e., averiguar se aquela mutação da ordem jurídica não é ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes, devemos dizer que não vemos que interesses possam ser estes.

Ou seja, não conseguimos sequer antever que outros interesses ou direitos constitucionais possam prevalecer no sentido de permitir a manutenção do direito adquirido pelas autoras. Atente-se que isto não significa que não existam razões para limitar o exercício do mandato judicial àqueles que exerçam as funções de agente de execução, como se viu acima aquando da análise à suposta violação do princípio da proporcionalidade; o que aqui está em causa é algo diferente, ou seja, saber se existem razões para, em concreto, retirar às autoras o anterior direito a exercer o mandato judicial, embora já aí com limitações. E nesta perspetiva concreta não vemos que interesse constitucional possa ditar o sacrifício desse direito, em termos de prevalência sobre esta.

Pelo que também o segundo critério está preenchido.

Para além destes critérios, falta saber se estão reunidos no caso em apreço os quatro requisitos que da consideração daqueles resultam.

O...

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