Acórdão nº 211/23 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução20 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 211/2023

Processo n.º 600/2021

3ª Secção

Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), do despacho daquele Tribunal, de 20 de fevereiro de 2020, que: (i) recusou a aplicação, por violação do artigo 219.º, n.º l, da Constituição, do artigo 11.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos («CPTA»), na redação conferida pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, na parte em que dispõe que o Estado não tem que ser representado pelo Ministério Público nos processos que corram nos tribunais administrativos; e (ii) interpretou restritivamente o disposto no artigo 25.º, n.º 4, do CPTA, na redação dada pela Lei n.º 118/2019, no sentido de que nas ações que correm nos tribunais administrativos e em que o Estado é Réu a citação do Estado é remetida para o Centro de Competências Jurídicas do Estado, que tem o dever de a enviar para o Ministério Público a quem incumbe a representação do Estado e a quem incumbe decidir, de acordo com as regras estatutárias aplicáveis, os termos da sua intervenção em juízo.

2. A., aqui recorrido, instaurou junto do Tribunal a quo uma ação administrativa comum contra o Estado Português.

A citação foi dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, nos termos do artigo 25.º, n.º 4, do CPTA, que a transmitiu ao ora recorrente.

2.1. O Ministério Público, agindo em nome próprio, arguiu junto do Tribunal a quo a «inconstitucionalidade material do conjunto formado pelas normas constantes do segmento final do n.º 1 do art.º 11.º e do n.º 4 do art.º 25.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos», bem como, na qualidade de representante do Estado-Administração, a «nulidade, por falta de citação», com a consequente anulação do processado subsequente à petição inicial.

2.2. Apreciada a questão, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa concluiu o seguinte:

«O Ministério Público pede a anulação de todo o processado após a apresentação da petição inicial e que seja ordenada a citação do Estado Português no Ministério Público junto deste tribunal, com fundamento na nulidade decorrente da falta de citação do réu Estado Português, prevista no artigo 187. º, alínea a), do CPC2013.

Para tanto, e em síntese, o Ministério Público alega que as normas do artigo 11.º, n.º 1, parte final, e 25.º, n.º 4, do CPTA, na redação introduzida pela Lei 118/2019, de 17/09, são inconstitucionais porque violam a regra de representação do Estado pelo Ministério Público, prevista no artigo 219.º, n.º 1, da CRP, e a autonomia do Ministério Público, consagrada no artigo 219.º, n.º 2, da CRP.

O autor foi notificado para se pronunciar e não apresentou pronúncia.

As questões a resolver são as seguintes:

1.ª questão: saber se as normas do artigo 11.º, n.º 1, parte final, e 25.º, n.º 4, do CPTA, na redação introduzida pela Lei 118/2019, de 17/09, violam o disposto no artigo 219.º, n.ºs 1 e 2, da CRP quando aplicadas a ações que correm nos tribunais administrativos contra o Estado;

2.ª questão saber se se verifica a nulidade prevista no artigo 187.º, alínea a), do CPC2013.

l.a questão

As normas cuja inconstitucionalidade é suscitada são as seguintes, ambas resultantes da Lei 118/2019, de 17/09, que alterou o CPTA:

- artigo 11.º, n.º 1, do CPTA: «Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público.».

- artigo 25.º, n.º 4, do CPTA: «Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.».

Antes de se apreciar a conformidade destas normas com o artigo 219.º da CRP, importa interpretá-la, pois só determinado o seu sentido é que se pode aferir se o mesmo se mostra desconforme com a CRP.

A norma do artigo 25.º, n.º 4, do CPTA, é complexa.

Desde logo abarca diversos tipos de ações: (i) ações em que os réus são Ministérios (i.e. ações em que o Estado não é parte); (ii) ações em que é demandado pelo menos um Ministério e o Estado e (iii) ações em que é demandado pelo menos o Estado.

Por outro lado, é uma norma atributiva de competência, deslocada do seu diploma próprio.

Efetivamente, o DL 149/2017, de 06/12, que aprova a orgânica do Centro de Competências Jurídicas do Estado, define as atribuições do JurisAPP no artigo 2.º e entre elas não se encontram especificamente elencadas as atribuições que resultam do artigo 25.º, n.º 4, do CPTA.

Há que coordenar o artigo 2.º, n.º 2, alínea m), do DL 149/2017, com o artigo 25.º, n.º 4, do CPTA, para concluir que desde a entrada em vigor da Lei 118/2019, o JurisAPP tem, nos processos que correm nos tribunais administrativos em que são réus mais do que um Ministério ou em que é demandado o Estado, a atribuição de receber a citação, de a transmitir «aos serviços competentes» e de coordenar «os termos da respetiva intervenção em juízo».

Com relevância para a decisão da questão de inconstitucionalidade levantada, a norma do artigo 25.º, n.º 4, do CPTA, pode ser decomposta nos seguintes segmentos normativos:

(a) «Quando seja demandado o Estado (...) a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado (...)».

(b) «Quando seja demandado o Estado (...) [o] Centro de Competências Jurídicas do Estado (...) assegura a sua transmissão aos serviços competentes (...)».

(c) «Quando seja demandado o Estado (...) [o] Centro de Competências Jurídicas do Estado (...) coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.».

Vejamos da conformidade destes segmentos normativos com o artigo 219.º da CRP.

O primeiro segmento normativo extraído do artigo 25,º, n.º 4, do CPTA, diz respeito às formalidades da citação da pessoa coletiva Estado.

O artigo 23.º do CPTA manda aplicar as regras do CPC em matéria de citação, em tudo que não contrariar o CPTA.

Até à Lei 118/2019, de 17/09, o CPTA, não continha qualquer norma sobre a citação do Estado, pelo que se recorria ao disposto no artigo 223.º do CPC2013, conjugado com os artigos 51.º e 52.º, n.º 1, alínea c), do ETAF, e a citação era feita no magistrado do Ministério Público junto do TAF. Uma vez que o Estado não tem sede não era possível aplicar o disposto no artigo 246.º, n.º 2, do CPC2013.

O alcance do artigo 25.º, n.º 4, do CPTA, quando determina que «Quando seja demandado o Estado (...) a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado (...)», é derrogar aplicação do artigo 223.º do CPC2013.

Deste segmento normativo nada se retira, portanto, quanto à representação do Estado.

O artigo 219.º, n.º 1, da CRP, dispõe sobre a representação do Estado, mas não sobre as formalidades da citação do Estado. Deste modo, a norma do artigo 25.º, n.º 4, do CPTA, que manda que a citação do Estado seja dirigida ao JurisAPP passa no crivo do artigo 219.º da CRP.

O cerne da questão de inconstitucionalidade suscitada nos autos centra-se no 2.a segmento normativo que extraímos do artigo 25.º, n.º 4, do CPTA, o qual tem o seguinte teor:

«Quando seja demandado o Estado (...) [o] Centro de Competências Jurídicas do Estado (...) assegura a sua transmissão cios serviços competentes (...)».

A interpretação desta norma não é evidente.

O elemento literal é o ponto de partida e o limite da interpretação, o que significa que de entre os vários sentidos possíveis da norma o intérprete não pode eleger aquele que não tenha correspondência com a letra do preceito. Por outro lado, se a letra da lei admite mais do que um sentido deve o intérprete recorrer aos demais elementos da interpretação jurídica.

A letra do segmento normativo extraído do artigo 25.º, n.º 4, do CPTA, e supra transcrito, permite pelo menos duas interpretações com relevância para a questão a decidir:

1.ª) nas ações intentadas nos tribunais administrativos contra o Estado o JurisAPP está obrigado a remeter a citação para o Ministério Público;

Ou

2.ª) nas ações intentadas nos tribunais administrativos contra o Estado o JurisAPP pode remeter a citação para o Ministério Público, mas não está obrigado a fazê-lo podendo logo designar outro representante em juízo do Estado.

A 2.a interpretação enunciada é restritiva e tem o alcance de não atribuir à norma a intenção de bulir com o regime de representação do Estado.

Como veremos esta interpretação restritiva não está de acordo com os argumentos sistemático e teleológico da interpretação jurídica, mas é imposta pela necessidade de interpretar os preceitos em conformidade com o artigo 219.º da CRP, sob pena de inconstitucionalidade.

Vejamos.

A teleologia subjacente à solução do artigo 25.º, n.º 4, é compreensível quando na ação são demandados mais do que um ente público, pois neste caso a existência de uma entidade que sirva de pivô entre os vários réus tenderá a aportar ganhos de eficiência, designadamente, racionalizando a alocação de recursos, evitando a duplicação de esforços.

Porém, o artigo 25.º, n.º 4, do CPTA, não se aplica apenas a esta situação, abrangendo as ações em que o Estado é o único réu.

Neste caso a intencionalidade da solução vertida no artigo 25.º, n.º 4, do CPTA, foi outra e descobre-se através da leitura conjugada do artigo 25.º, n.º 4, do CPTA...

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