Acórdão nº 179/23 de Tribunal Constitucional (Port, 30 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelCons. José Eduardo Figueiredo Dias
Data da Resolução30 de Março de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 179/2023

Processo n.º 570/2022

2.ª Secção

Relator: Conselheiro José Eduardo Figueiredo Dias

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, em que é recorrente o Ministério Público e recorridos A. e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (doravante, IGFSS) – Secção de Processo Executivo de Bragança, foi interposto recurso obrigatório, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, 75.º, n.º 1 e 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante LTC), do despacho daquele Tribunal, de 07 de março de 2022.

2. O recorrido A., na qualidade de executado em processo executivo instaurado pelo recorrido IGFSS e que correu termos na secção de processo executivo de Bragança, deduziu oposição à execução.

Nessa sequência, os autos foram remetidos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, para apreciação da sobredita oposição, tendo este Tribunal proferido o despacho ora recorrido, no qual recusou a aplicação da norma dos artigos 3.º-A, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09 de fevereiro, na redação dada pelo artigo 415.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, em conjugação com o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09 de fevereiro, interpretados como uma alteração da competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal, com fundamento na sua inconstitucionalidade, e, considerando-se territorialmente incompetente para a causa, julgou competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.

3. Desta decisão o Ministério Público junto do Tribunal a quo interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (cfr. fls. 26 e 27), que foi admitido por despacho de 26 de abril de 2022.

4. Subidos os autos e verificando-se que se encontravam preenchidos os pressupostos processuais, as partes foram notificadas para apresentar as suas alegações.

5. O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou alegações, sustentando o não conhecimento do objeto do recurso e, subsidiariamente, a procedência do recurso interposto, concluindo nos seguintes termos:

“1. O M.mo Juiz a quo fundamenta o seu despacho recorrido, de 07-03-2022, na interpretação normativa, conclusivamente formulada, no sentido em que «(…) o n.º 3 do artigo 3.º-A, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, na redacção dada pelo art.º 415.º da Lei n.º 2/2020, de 31/03, em conjugação com o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, interpretados como uma alteração da competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal, designadamente do TAF de Mirandela, são inconstitucionais porque violam o disposto nos art.º 32.º, n.º 9 e art.º 112.º da CRP».

2. Uma tal interpretação normativa afigura-se-nos, por si só, insubsistente no sentido de fundamentar a inconstitucionalidade de qualquer norma, designadamente por suposta por afronta aos artigos 32.º, n.º 9 e 112.º da CRP.

3. Nessa formulação, o M.mo juiz a quo certamente pretenderia mobilizar o ponto 3 da Deliberação do Conselho Diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., de 2 de Julho de 2020, enquanto fundamento para implicar a alteração dos critérios (legais) de fixação de competência territorial dos tribunais com competência em matéria tributária.

4. Fê-lo noutro passo do despacho recorrido, em que refere que «(…) os preceitos citados, na interpretação referenciada, conferiram a uma "Deliberação" o poder de modificar ou revogar a própria lei de atribuição de competência territorial dos tribunais administrativos e fiscais quanto à natureza especifica e espécie dos processos em causa; e, por outro lado, se os regulamentos assumem uma relação de dependência da lei que visam regulamentar (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, IN CRP anotada, 2005, Coimbra Editora, pag. 260), por maioria de razão uma "Deliberação" não pode contrariar a lei que a prevê nem a Lei da Organização do Sistema Judiciário».

5. Parece-nos, contudo, que tal interpretação não resiste a uma análise mais aturada dos preceitos em causa, designadamente convocando o argumento histórico e a mens legis da génese e alterações do art. 3.º-A, n.º 3 do Dec.-Lei n.º 42/2001.

6. Na verdade, é a lei que continua a determinar os critérios de fixação da competência territorial dos tribunais com competência em matéria tributária. Pode, ou não, concordar-se com eles.

7. Não deve é forçar-se uma interpretação de disposições infraconstitucionais – que instrumentaliza o conteúdo de uma “Deliberação”, com suposta “eficácia legal” – para contrariar a finalidade legítima e autorizada do legislador, quanto à determinação do critério de fixação da competência territorial dos tribunais tributários, emergente do art. 5.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 42/2001.

8. Por isso, em rigor, e para além de, apesar de o recurso ter sido interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do art. 70.º da LTC, a interpretação jurídica sub judice e exarada no despacho recorrido, carece de verdadeira dimensão normativa, o que poderia, desde logo, obstar ao conhecimento do objeto do recurso.

9. Mas, ainda que assim não se entenda, não nos parece que a hipótese subjacente ao recurso encerre verdadeiramente um problema de constitucionalidade, uma vez que o mesmo é ancorado numa dada interpretação de preceitos infraconstitucionais da qual se extrai uma conclusão que, em rigor, não é aplicável ao caso.

10. Pode, por isso, aplicar-se, com propriedade, a consideração expendida no Ac TC n.º 677/2016, segundo a qual:

«Não cabe à jurisdição constitucional, em princípio, sindicar a interpretação que os tribunais comuns fazem da lei ordinária. Assim é porque o Tribunal Constitucional tem a sua razão de ser na especialidade dos problemas que se lhe colocam, e que dizem respeito à interpretação de uma lei diferente das outras – a lei constitucional – e à realização de uma justiça diferente das outras – sobre normas. A interpretação e aplicação das leis ordinárias a litígios é o domínio próprio e exclusivo dos tribunais comuns.

Mas é justamente por essa razão que não pode o Tribunal Constitucional conhecer do objeto de recursos de constitucionalidade artificiais, ainda que ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Recursos esses em que se não coloca um genuíno problema de constitucionalidade normativa, porque a «norma» desaplicada, não sendo aplicável ao caso, é uma realidade apenas virtual no processo. É isso que resulta do entendimento pacífico de que os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental no processo.»

11. Mas mesmo admitindo que os pontos 3. e 19. da Deliberação 793 do CD do IGFSS, I.P., integrassem a norma, parece-nos que o tribunal a quo – ao não distinguir, desde logo, regras que determinam a competência dos tribunais tributários de 1.ª instância (art. 5.º do Dec.-Lei n.º 42/2001) das regras que determinam a competência dos serviços de execução (art. 3.º-A) – parte da premissa de que as duas são equivalentes; como se, afinal, o legislador – sabendo que o «juiz/tribunal legal» é o juiz/tribunal da área «onde corre a execução» – ao atribuir ao IGFSS, I.P., competência para, por Deliberação, definir em certos casos os serviços «onde correm as execuções» (segundo os seus próprios critérios gestionários), o tivesse “habilitado”, na prática, a “alterar” as regras de competência territorial dos tribunais, ou a codeterminar os tribunais em concreto competentes – não só de 1.ª instância, note-se – por um certo conjunto de casos.

12. Afigura-se, assim, que não deve conhecer-se do objeto do recurso.

13. Para a eventualidade hipotética de assim não se entender, diremos que o recurso merece ser julgado procedente, pelos seguintes fundamentos.

14. Apesar de o art. 32.º, n.º 9, da Constituição conter uma formulação aparentemente imperativa, segundo a qual «[n]enhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior», é duvidoso que se possa retirar daí «uma absoluta proibição da “retroatividade” da determinação do tribunal penal competente» (cfr. J. FIGUEIREDO DIAS, «Sobre o Sentido do Princípio Jurídico-Constitucional do “Juiz Natural”», Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 111.º, n.º 3615, p. 85») e, porventura, por maioria de razão, de qualquer outro tribunal. Segundo o mesmo Autor, «(…) o princípio do juiz natural não obsta a que uma causa penal venha a ser apreciada por tribunal diferente do que para ela era competente ao tempo da prática do facto que constitui o objeto do processo; só obsta a tal quando, mas também sempre que, a atribuição de competência seja feita através da criação de um juízo ad hoc (isto é, de exceção), da definição individual (e portanto arbitrária) da competência, ou do desaforamento concreto (e portanto discricionário) de uma certa causa penal, ou por qualquer outra forma discriminatória que lese ou ponha em perigo o direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial» (loc. cit., p. 86).

15. Retirando o qualificativo “penal” que surge no excerto, aproximar-nos-emos do alcance do princípio relativamente a todos os tribunais. Deste modo, o conteúdo do dever de conformação do legislador no que toca ao princípio do juiz natural abrange a determinação o mais possível inequívoca e precisa do tribunal competente para conhecer de uma determinada causa. Essa exigência de determinação deve entender-se, enquanto mandato de otimização, como uma exclusão de margens de livre decisão permitindo a fixação da competência do juiz caso a caso.

16. Assim, o dever de conformação do legislador (ou dos órgãos de administração judiciária a quem caiba concretizar as orientações fixadas pelo legislador) no quadro do princípio da garantia do...

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