Acórdão nº 911/19.0T8LRA-A.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 30 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelRICARDO COSTA
Data da Resolução30 de Março de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Processo n.º 911/19.0T8LRA-A.C1.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação de Coimbra, ... Secção Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I) RELATÓRIO 1.

Uma vez declarada a insolvência de «M..., Unipessoal, Lda.», foi requerida pelo credor AA a abertura do incidente de qualificação como culposa da referida insolvência, tendo sido identificado o respectivo gerente, BB, como pessoa que deveria ser afectada pela qualificação da insolvência.

  1. O Administrador da Insolvência bem como o Ministério Público pronunciaram-se em Pareceres no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa, no âmbito de aplicação do art. 188º do CIRE.

    O Requerido deduziu Oposição, sustentando o carácter fortuito da insolvência.

  2. O Juiz ... do Juízo de Comércio de Leiria proferiu sentença com o seguinte dispositivo: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, e em face do disposto no art. 186º, nº 2, al. f), do CIRE qualifico a presente insolvência de M..., Unipessoal, Lda. como culposa e, nessa conformidade, decido: 1) - Declarar BB como afetado com a declaração da insolvência como culposa; 2) - Declará-lo inibido para a administração de patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, por um período de dois anos, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo mesmo período; 3) - Condená-lo a indemnizar os credores da insolvente no correspondente ao valor dos bens elencados no ponto 26. dos factos provados (à data da declaração de insolvência), que não se lograram apreender para a massa insolvente, e até ao limite dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente, tudo sem prejuízo do limite associado ao património pessoal do responsável, a quantificar em incidente de liquidação, nos termos da parte final do nº 4 do art. 189º do CIRE.

    ” 4.

    Inconformado com a decisão de 1.ª instância, o Requerido BB interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), que conduziu a ser proferido acórdão, sendo julgada improcedente a reapreciação da matéria de facto (factos provados 26. e 27.) e julgado improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.

  3. Sem se resignar, o Requerido interpôs recurso de revista para o STJ, visando a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que absolva o Recorrente, rematando as suas alegações com as seguintes Conclusões: “I – A violação de lei substantiva, consubstanciada tanto no erro de interpretação como de aplicação – artigo 674.º n.º 1 a) do CPC: 1. Ao decidir manter a qualificação de insolvência, mesmo após retirar a decisão de primeira instância quanto à verificação do favorecimento da empresa K..., o tribunal a quo incorreu em violação do artigo 186.º n.º 1 e n.º 2 al. f), interpretando e aplicando ambos os preceitos referidos de forma incorreta.

  4. Pois o tribunal da Relação, não invoca quais os factos dados como provados que, licitamente, suportam e ilustram o uso contrário aos interesses da devedora M... e o proveito pessoal do recorrente resultante daquele uso.

  5. Os Venerandos Desembargadores, para fundamentar tal proveito pessoal, lançam mão da outorga, pelo recorrente, de uma procuração a CC, gerente da K..., datada de 3 de abril de 2019.

  6. Com tal juízo, equivocaram-se os decisores da Relação de Coimbra, porquanto o ato de assinar a referida procuração (datada de 3 de abril de 2019) é posterior ao início do processo de insolvência (19 de março de 2019), pelo que, não cabe no âmbito do artigo 186.º n.º 1 do CIRE.

  7. Entendemos, assim, que o Tribunal da Relação de Coimbra violou o conteúdo normativo da al. f) do artigo 186.º n.º 2 e n.º 1 do mesmo artigo do CIRE.

  8. Importa atentar que foi única e exclusivamente com base na al. f) daquele preceito que tanto a primeira instância como a Relação de Coimbra proferiu decisão de qualificação, não o tendo feito, como nem tão pouco podia, com base na verificação de qualquer outra das circunstâncias descritas no n.º 2 do 186.º.

  9. Dissecando as circunstâncias ínsitas na alínea f), temos que, para ser qualificada a insolvência com base na mesma, o administrador tem que ter praticado atos, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência de: - uso do crédito ou bens do devedor contrário ao seu interesse e para proveito pessoal, ou; - uso do crédito ou bens do devedor contrário ao seu interesse e para favorecimento de empresa terceira.

  10. Afastada que ficou no acórdão em crise a qualificação pela segunda parte da al. f), ou seja, a parte relativa ao uso do crédito ou bens do devedor contrário ao seu interesse e para favorecimento de empresa terceira, temos que entendeu a Relação de Coimbra manter a qualificação pela al. f) apenas e somente pela primeira parte deste preceito, ou seja: por alegado uso do crédito ou bens do devedor contrário ao seu interesse e para proveito pessoal do recorrente.

  11. Fê-lo sem identificar, contudo, a Relação, em que se traduziu esse proveito pessoal, lançando mão apenas, quando a este ponto, ao insuficiente ato de outorga de uma procuração do recorrente ao gerente da K..., em data posterior ao início do processo de insolvência.

  12. Ora, a simples outorga da procuração não é suscetível de ilustrar qualquer proveito pessoal ou sequer uso dos bens da devedora contrário ao interesse da mesma, quando vem desacompanhada de factualidade adjacente ao uso dos poderes inseridos naquela mesma procuração.

  13. Para além de que, tal como ensina o Ac. da Relação de Guimarães, de 2016-02- 25, proferido no Processo nº 1857/14.3TBGMR-DG1, “apenas os atos praticados nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência serão relevantes para efeitos do preenchimento do nº. 2 do mencionado art. 186º.” 12. Aplicando ao caso concreto, só podem relevar para a qualificação da insolvência nos presentes autos, e sabendo que o início do processo de insolvência datou de 13 de março de 2019, as condutas do recorrente que medeiam tal data e 13 de março de 2016.

  14. A procuração aqui em causa, repetimos, foi outorgada em data posterior ao início do processo de insolvência pelo que, extravasa já o hiato determinado no corpo do artigo 186.º n.º 1.

  15. Afastando assim da equação legal do artigo 186.º n.º 1 e 2 f) do CIRE o ato de outorga da procuração da equação, nada mais é apontado pela Relação no sentido de ilustrar o referido proveito pessoal retirado pelo recorrente, pelo que cai por terra a possibilidade de manutenção da qualificação.

  16. Resulta também líquido que não foi a outorga da procuração que determinou ou agravou a situação de insolvência da M..., pois já correndo o processo de insolvência os seus termos aquando daquela outorga, então, com toda a certeza, em momento anterior à outorga da procuração, já a sociedade devedora se encontrava em situação de insolvência.

  17. No mesmo sentido temos, pois, a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 06.10.2020, Processo 3422/19.0T8VIS-B.C1 e relatora Maria João Areias: “Não se discute que sendo a responsabilidade nascida da qualificação da insolvência indissociável de um comportamento especialmente censurável, para tal efeito só se terá por relevante o comportamento ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.” 17. Isto implica que mesmo que se apurem factos dos quais resulte ter havido, por parte dos administradores da insolvente, uma atuação dolosa ou com culpa grave, que tenha criado ou agravado a situação de insolvência da devedora, tais factos deverão ter sido cometidos dentro do período dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; caso assim não suceda, os factos em causa serão irrelevantes para efeitos da qualificação como culposa da insolvência, que não poderá ser decretada com tal fundamento.

  18. Fundamenta-se no Acórdão em crise que “dos actos do apelante resultaram um empobrecimento da devedora, a M... em consequência do desvio de bens do seu acervo patrimonial” 19. Mas na verdade, é o próprio acórdão que sublinha não estar em causa uma ocultação ou desaparecimentos de bens previstos na al. a), não estando igualmente em causa al. d). do artigo 186.º n.º 2 do CIRE.

  19. Que atos do apelante resultaram, então, segundo o entendimento da Relação de Coimbra, no empobrecimento da M... aos quais se refere então o acórdão recorrido? Foca-se apenas a Relação, neste contexto, na amplitude de poderes inseridos na procuração outorgada a 3 de abril de 2019 – com data posterior ao início do processo de insolvência.

  20. Note-se bem que não se provou que os bens que não foram localizados pelo AI tenham sido alienados ou ocultados pelo recorrente, o que afastou a aplicação da al. a) e d), pelo que, não podendo entrar a procuração no hiato temporal legalmente relevante para qualificação da insolvência e afastado que está, no próprio acórdão, o favorecimento de empresa terceira, então, não se pode manter a qualificação de insolvência.

  21. A douta decisão em crise acaba mesmo por afirmar que “não podemos afirmar que o destino final dos aludidos objectos foi ou seria a K..., tal como não sabemos igualmente se tais bens foram ou não vendidos pela internet ou por outra forma ou para onde foram deslocados.” 23. Perante o exposto, o que sobra então que sustente e mantenha a qualificação com base na al. f) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE? Salvo o devido respeito, nada. Nos factos dados como provados, não há prova nem referência a mau uso do crédito ou bens da devedora pelo recorrente.

  22. E mesmo que se considerasse, como cremos que não pode suceder, existir mau uso pelo simples facto de ter sido outorgada procuração com amplos poderes a favor de CC, vimos já que a mesma está fora do hiato temporal relevante para o efeito.

  23. Mais: ainda que a procuração tivesse sido outorgada no hiato temporal de 3 anos previsto no n.º 1 do artigo 186.º, nem por isso se provou que a mesma tivesse sido usada e desse uso tenha advindo qualquer prejuízo para a sociedade insolvente.

  24. Não...

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