Acórdão nº 183/23 de Tribunal Constitucional (Port, 30 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução30 de Março de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 183/2023

Processo n.º 1019/22

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo - Sul, a Decisão Sumária n.º 90/2023 deste Tribunal Constitucional, apreciando o recurso de constitucionalidade interposto pela recorrente A., S.A, com base no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), em que se insurge contra acórdão daquele Tribunal, proferido em 14 de julho de 2022, não julgou inconstitucionais as normas ínsitas nos artigos 2.°, 3.°, 4.°, 11.° e 12.° do regime jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético, aprovado pelo artigo 228.° da Lei n.° 83°-C/2013, de 31 de dezembro e prorrogado para o ano de 2017 pelo artigo 264.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro.

2. Desta decisão, a recorrente apresentou reclamação para a conferência, ao abrigo do preceituado no artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, da qual consta que:

1. Segundo a Decisão Sumária, o Tribunal Constitucional (TC) já apreciou a inconstitucionalidade das normas objecto do presente recurso em vários Acórdãos e Decisões Sumárias, nos quais se decidiu pela não inconstitucionalidade das normas ínsitas nos artigos 2º. 3º, 4º, 11° e 12° do regime jurídico da "Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético" (CESE).

2. A Decisão Sumária reclamada foi, assim, proferida ao abrigo do n.° 1 do artigo 78°-A da Lei do TC: para o Relator dos autos, a questão colocada pela Reclamante é uma "questão simples, designadamente por a mesma já ter sido objecto de decisão anterior do Tribunal".

3. A ora Reclamante não ignora a jurisprudência a que o TC alude.

PORÉM:

4. Conforme se diz nessa jurisprudência (designadamente no primeiro acórdão proferido sobre o tributo em questão, o Acórdão n.° 7/2019), a CESE apresenta alguns problemas que colocam em dúvida a sua constitucionalidade, nomeadamente ao nível da escolha da base de tributação objectiva (o valor total dos activos dos sujeitos passivos) e subjectiva (pela abrangência de operadores que nada têm a ver com a principal questão regulatória que o Governo quis enfrentar com o tributo - a dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional (SEN) -, ou seja, sujeitos passivos cuja actividade em nada contribuiu para esse problema nem beneficiam especialmente da actuação do Estado na resolução ou atenuação do mesmo).

5. Sucede também que, segundo a mesma jurisprudência, esses problemas são resolvidos pela "circunstância de estarmos perante um tributo de natureza extraordinária, que por isso se requer de fácil implementação e aplicação para um período de aplicação transitório e certo, onde não se justificaria a implementação de critérios, porventura mais adequados, como 'a medida do impacto das economias de energia potenciais' (...), mas muito complexos e com elevados custos de cumprimento, ou seja, totalmente desajustados à urgência do caso pretendido" (sublinhado e negrito nossos).

6. Portanto, segundo o TC, a validade constitucional da CESE mantém-se enquanto ela for considerada uma medida extraordinária.

ALÉM DISSO:

7. Para o Tribunal (por exemplo, no Acórdão n.° 532/2021), saber se a CESE tem ou não natureza extraordinária é uma pergunta cuja resposta tem de ser determinada por um "critério conjuntural"', em cada ano de vigência, à luz da "verificação periódica de um certo estado de coisas".

PORTANTO:

8. Perante isto, é certo que, para o TC, a validade da CESE tem de ser apreciada ano a ano, de acordo com a manutenção ou não do contexto que justificou a sua criação.

9. Mas, para este raciocínio, o TC não se pode desviar de alguns princípios de essenciais.

10. Em primeiro lugar, sob pena de abrir a porta à maior arbitrariedade possível, o Tribunal, ao configurar as razões que justificam a continuidade do tributo na ordem jurídica, não pode estar permanentemente a pesquisar razões novas que sustentem, por exemplo, a natureza extraordinária da CESE.

11. E verdade que, potencialmente e em abstracto, em todos anos, até à eternidade, existirão por certo no Estado português circunstâncias de índole orçamental que poderão justificar a necessidade de receitas tributárias acrescidas, de natureza extraordinária; no entanto, quando o TC se debruça sobre uma determinada medida concreta, para averiguar se ela é (ou ainda permanece) constitucionalmente válida - desde logo à luz da sua eventual natureza extraordinária - , não se pode afastar dos motivos que levaram o legislador a criá-la: é que, se optar por esse afastamento, deixar de haver - ou deixa de ser impossível averiguar - qualquer correspondência entre a razão de ser do tributo e a necessidade de o exigir especificamente aos operadores económicos que são os seus sujeitos passivos.

12. Em vez de estar sempre a justificar a CESE com razões novas, ou com razões que, mesmo existindo à data da criação do tributo, não consta dos documentos legislativos ou de qualquer elemento do contexto da sua criação que tenham sido levadas em conta, aquilo a que o TC adstrito, para apreciar a manutenção da validade da CESE, é a perguntar se as razões que presidiram à implementação do tributo se mantêm ou não, ou se foram cumpridas com a receita gerada pela medida.

13. Caso contrário, nos termos do defendido pela ora Reclamante ao longo dos autos, estaremos perante uma medida violadora do princípio da proporcionalidade, por não existir correspondência entre a sua suposta necessidade e os objectivos determinado pelo legislador.

14. Nesse caso, só há duas hipóteses: ou a CESE tem de ser expurgada da ordem jurídica ou as suas regras têm de ser alteradas, com - nas palavras do Tribunal - “a implementação de critérios, porventura mais adequados" à vigência do tributo posterior ao momento extraordinário da sua criação.

15. De resto, diga-se também, em segundo lugar, que o TC não pode dar justificações para a CESE que alterem natureza do tributo, a não ser que daí retire das devidas consequências, por exemplo e desde logo, considerando que não se trata de uma contribuição financeira, mas sim de um imposto.

16. Lembre-se que a qualificação da CESE como uma contribuição, estabelecida no Acórdão n.° 7/2019, tinha por pressuposto que a actividade dos sujeitos passivos dava causa aos problemas que o tributo visava ajudar a resolver e/ou beneficiavam da actuação do Estado na resolução desses problemas.

17. Porém, se a CESE passar a ser justificada sem apelo a essa ideia de bilateralidade, então é porque é um imposto e tem de ser tratada como tal, de acordo com os princípios que conformam a constitucionalidade da criação de impostos.

POIS BEM:

18. É isso, antes de mais, que sucede na Decisão reclamada, porque o único argumento que o TC avança para justificar a validade da CESE em 2017, o ano aqui em causa, é o facto de que nesse ano Portugal, apesar de ter cumprido o Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) acordado entre as autoridades portuguesas, a União Europeia e o FMI (vigorou entre 2011 e 2014), ainda estava sob um procedimento por défice excessivo.

19. Repare-se que esse procedimento até é autónomo do programa de "resgate" aludido, no contexto do qual a CESE foi criada, essencialmente como instrumento de atenuação da dívida tarifária do SEN: pelo contrário, trata-se de um procedimento de controlo orçamental previsto no artigo 126° do TFUE.

20. Seja como for, o que importa sublinhar é que, na Decisão Reclamada, dá-se apenas uma justificação para a CESE de 2017 - e essa justificação é a necessidade de consolidação orçamental.

21. Esta circunstância transporta quatro significados importantes para o caso vertente:

EM PRIMEIRO LUGAR:

22. Desde logo, implica necessariamente que a CESE deve ser considerada naquele ano (pelo menos) como um verdadeiro imposto (isto é, um tributo cobrado para os fins gerais dos impostos) e apreciada nessa qualidade, de acordo com os princípios e todas as considerações que a Reclamante expende nos autos e que melhor poderá desenvolver nas suas alegações, quando para tal notificada em caso de deferimento da presente Reclamação.

EM SEGUNDO LUGAR:

23. Aliás, é bom recordar que, conforme a própria Decisão Sumária refere, o procedimento por défice excessivo terminou a meio de 2017 (em 16 de Junho desse ano, através da Decisão (EU) 2017/1225, da Comissão Europeia), o que nos leva a recordar também que, em 2017, o défice orçamental acabou por ser de 0,9% do Produto Interno Bruto, claramente abaixo dos 3% do limite aceite pela União Europeia enquanto padrão do equilíbrio das contas públicas.

24. E, mesmo se considerarmos o efeito one-off da recapitalização da Caixa Geral de Depósitos nesse ano (algo por que, como é obvio, as empresas do sector energético não podem responder), o défice total foi de 3% do PIB, não ultrapassando o valor referência.

25. Ou seja, o TC, na Decisão reclamada, justifica a vigência da CESE em 2017 com uma situação de emergência financeira e de desequilíbrio das contas do Estado que, pura e simplesmente, não existiu nesse ano.

26. Mais: em 2016, ano ainda durante o qual o Governo decidiu que a CESE era para prorrogar para o ano seguinte (na Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2017), já o défice estava abaixo limite de 3%. do limite, mais concretamente em 2,06% do PIB - "o valor mais baixo dos últimos 42 anos", segundo nota de regozijo do próprio Governo.

27. Portanto, no período temporal relevante para analisarmos a medida aqui em causa - 2016 (ano durante o qual ela foi decidida) e 2017 (ano durante o qual ela foi implementada) - não se verificava afinal, de todo, o "certo estado de coisas" extraordinário em que o Tribunal assenta a validade da CESE em 2017.

28. Só este circunstancialismo...

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