Acórdão nº 174/23 de Tribunal Constitucional (Port, 30 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Assunção Raimundo
Data da Resolução30 de Março de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 174/2023

Processo n.º 706/20

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Assunção Raimundo

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. A., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, notificado da sentença proferida pelo Juízo Local Criminal de Guimarães, a 22 de maio de 2018, que o condenou pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º e 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (abreviadamente, RGIT), na pena de 150 (cento e cinquenta dias) de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis) euros, e com a mesma não se conformando, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 17 de dezembro de 2018, declarou verificado o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão e, consequentemente, determinou o reenvio do processo para novo julgamento limitado às concretas questões elencadas, com as alterações na decisão de facto e de direito que se imponham.

Em conformidade com o decidido, foi realizado novo julgamento e, em 10 de outubro de 2019, proferida sentença, que manteve a condenação anterior.

Inconformado, deduziu novo recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 13 de julho de 2020, julgou o recurso parcialmente procedente, declarando que a conduta do arguido se subsume ao disposto no artigo 105.º, n.ºs 2, 4 e 7, do RGIT e, em tudo o mais, confirmou a sentença recorrida.

2. Releva para melhor compreensão dos presentes autos, que se inscrevem no âmbito de processo que correu termos no Juízo Local Criminal de Guimarães sob o n.º 250/15.5IDBRG, que, para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 40.º do RGIT, em 22 de agosto de 2015, a Autoridade Tributária e Aduaneira comunicou aos serviços do Ministério Público, enquanto autoridade judiciária que dirige funcionalmente o inquérito, o incumprimento pela B., Lda., do prazo de pagamento do IVA, referente ao período de outubro de 2014, no valor de € 11.412,71, em violação dos artigos 27.º, n.º 1 e artigo 41.º, n.º 1, alínea a), do CIVA, punido pelo artigo 105.º do RGIT.

Instaurado o processo de inquérito por crime fiscal contra a B., Lda., em 15 de outubro de 2015, o ora recorrente, na qualidade de gerente da mencionada sociedade, foi constituído arguido (cf. fls. 55).

Na mesma data, o ora recorrente prestou declarações perante o Núcleo de Investigação Criminal da Divisão de Justiça Tributária de Braga, tendo afirmado, nomeadamente que sabia da falta de entrega do IVA no período em causa e das respetivas consequências criminais e que era sua intenção efetuar o pagamento do imposto, respetivos juros e coimas, efetuando o correspondente pedido de pagamento em prestações (cf. auto de interrogatório de arguido, a fls. 56 e 57 dos autos).

Em cumprimento do despacho externo n.º DI201503707, em 28 de outubro de 2015, foi iniciado procedimento de inspeção tributária tendo por sujeito passivo a B., Lda., ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º, da alínea b) do artigo 13.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), tendo o ora recorrente, na referida qualidade, procedido à assinatura da respetiva credencial.

No decurso da ação inspetiva, os serviços de inspeção procederam: 1) à recolha dos documentos de suporte das operações (faturas e notas de crédito emitidas) junto dos serviços administrativos do próprio sujeito passivo, nomeadamente por intermédio dos funcionários afetos a este setor da empresa existente nas instalações visitadas; 2) à recolha daqueles mesmos documentos de suporte, bem como dos demais documentos com relevância contabilística que sustentam os registos subjacentes às obrigações fiscais já cumpridas, arquivados junto da atual técnica oficial de contas; 3) à recolha dos comprovativos de recebimento junto dos principais clientes que figuram como destinatários das faturas de venda de bens e prestações de serviços, e demais documentos processados por referência ao período de imposto de outubro de 2014, mediante a concretização da correspondente circularização (cf. fls. 69 dos autos).

Em 2 de novembro de 2015, terminou o procedimento inspetivo, com a conclusão da recolha de elementos probatórios, tendo, em 10 de novembro de 2015, sido elaborado o relatório de inspeção tributária, que foi comunicado ao Núcleo de Investigação Criminal da Divisão de Justiça Tributária de Braga. Não se mostrando regularizado o pagamento do imposto, no prazo previsto no n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, em 4 de fevereiro de 2016, o relatório de inspeção, acompanhado do parecer a que alude o n.º 3 do artigo 42.º do RGIT, foi remetido ao Ministério Público (cf. fls. 66 a 79 dos autos).

3. O Tribunal da Relação de Guimarães, no acórdão de 13 de julho de 2020, ora recorrido, na parte relevante da respetiva fundamentação, entendeu o seguinte:

«[…]

[O] arguido invoca ainda que a sua condenação assentou em prova proibida, consubstanciada na informação da inspeção tributária e respetivos anexos de folhas 66 e ss.

Baseia o recorrente este seu entendimento na circunstância de a obtenção de provas tendentes à verificação da existência, ou não, de crime por parte da administração fiscal, não poder ocorrer antes da constituição do recorrente como arguido, sob pena de violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.

Este princípio é, inquestionavelmente, a pedra de toque que permite diferenciar o modelo processual de estrutura acusatória,do modelo processual de estrutura inquisitória. Vigora na ordem jurídica da generalidade dos modernos Estados de Direito e, bem assim, nos documentos internacionais que protegem os Direitos do Homem. É nele que se projetam os princípios fundamentais como a dignidade humana e a presunção de inocência, a liberdade humana. A nossa Lei Fundamental (artigo 32º e 20 nº 4) atesta-o e, bem assim, a lei processual penal ao consagrar o direito ao silêncio e à proibição da sua valoração contra o arguido e ao impor quer às autoridades judiciárias, quer aos órgãos de polícia criminal o dever de informação e esclarecimento sobre os direitos decorrentes daquele princípio (artigo 61º, nº 1, alínea h), 141, nº 4, 343, nº 1 todos do CPP), a proibição da valoração de declarações prevista no artigo 58º, nº 5 do CPP e obviamente das provas obtidas mediante tortura, coação, ameaça, perturbação da memória ou da capacidade de avaliação ou meios enganosos (artigo 126º).

(…)

Entende o recorrente que a obtenção da prova documental que permitiu a sua condenação é violadora do referido princípio, uma vez que não podia ter sido obtida sem antes ser constituído como arguido o recorrente. Assim, entende o recorrente que a prova obtida nos autos o foi de forma ilícita e, portanto, não pode ser valorada, na medida em que existe um nexo de causalidade entre a violação da lei e a sentença condenatória.

O recorrente defende, então, que quer a produção da prova, quer a valoração da prova são proibidas e, portanto, não poderiam levar à sua condenação, porque o arguido, de certa forma, colaborou na sua condenação ao disponibilizar documentação antes da sua constituição como arguido e, portanto, da formalização da informação de quais os seus direitos e deveres processuais.

Colhe-se dos autos que a notícia do crime teve lugar em 29/04/2015 (fls. 6) a partir da constatação de que o sujeito passivo B., lda gerida pelo recorrente (fls. 33) não entregou simultaneamente com a declaração periódica que apresentou dentro o prazo legal, a prestação tributária necessária para satisfazer totalmente o imposto exigível.

Nessa sequência foi ordenada, em 24/08/2015, a recolha de cópia de faturas emitidas no mês de Outubro de 2014 e das cópias dos comprovativos de pagamento e respetiva análise (fls 29).

Foi depois ordenada a notificação do recorrente, nos termos da alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT e, bem assim, para a prestação de TIR e constituição como arguido, a qual veio a ocorrer em 15/10/2015 (fls. 54). A documentação que se mostra anexada aos autos, que sustenta a acusação e na qual se baseou a sentença foi colhida em 28/10/2015, como resulta dos próprios documentos (anexo vi, fls. 23 e ss). Ora, esta conjugação de datas basta para que não seja aplicável aos autos o decidido no Ac TC nº 298/2019 de 15.05., não tendo ocorrido qualquer violação da lei fundamental.

Acresce que não decorre dos autos, nem foi alegado pelo recorrente, que a obtenção das provas e do contributo do arguido para elas foi violadora do exercício esclarecido da liberdade do recorrente. Não resulta sequer que a disponibilização da documentação tenha partido do arguido, sendo certo, contudo, que sempre seria possível obter tal documentação, por exemplo, por meio de buscas o que se traduziria num procedimento conforme à lei e seguramente mais lesivo do que a obtenção, ao abrigo do dever de cooperação previsto no artigo 9º do Regime Complementar de Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira.

Não se percebe assim como é que o recorrente identifica a obtenção da documentação com as ofensas que constam da alínea a) do nº 2 do artigo 126º do CPP que prevê como ofensivas da integridade física e moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante perturbação da liberdade da vontade ou da decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis e enganosos, quer porque não resulta que tenha sido o arguido levado enganadoramente a colaborar com a investigação, quer porque à obtenção da prova documental sempre seria indiferente a colaboração do arguido.

Não há, pois, qualquer violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare ínsito nos art. 32 e 20 nº 4 da CRP, uma vez que não se identifica em qualquer...

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