Acórdão nº 5130/20.0T8VIS.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 16 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelFERNANDO BAPTISTA
Data da Resolução16 de Março de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível I – RELATÓRIO AA e BB, intentaram a presente ação contra Seguradoras Unidas, S.A.

, peticionando a sua condenação a pagar aos autores a quanta de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos por si e pela sua falecida mãe, CC, quantia essa acrescida de juros à taxa legal, contados desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento, bem como no pagamento das custas e encargos com o processo.

Para fundamentarem o seu pedido alegam que o falecimento de sua mãe ocorreu na sequência de um acidente com um tractor munido de uma fresa mecânica que, por culpa do condutor deste tractor, foi posta em funcionamento quando a vítima se encontrava entre a roda traseira do tractor e a fresa, causando-lhe a morte.

* Contestou a R., por excepção, alegando que o acidente em causa constitui acidente de laboração, por essa via excluído, bem como os respectivos danos, das garantias do contrato de seguro titulado pela apólice nº ...37 e ainda a preterição de litisconsórcio necessário no que se reporta à indemnização pelo dano morte.

Impugnou, ainda, os factos relativos ao acidente, cuja culpa imputa à vítima, bem como os danos invocados.

Foi proferido despacho saneador, identificando-se o objeto do litígio, enunciando-se os temas da prova e admitindo-se a prova apresentada pelas partes, após o que teve lugar a audiência final, sendo proferida sentença na qual o Juiz a quo, considerando incluir-se este acidente nos riscos decorrentes da circulação do veículo, decidiu “1- Condeno a Ré Seguradoras Unidas, S.A. a pagar à autora AA, a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a títulos de danos não patrimoniais, quantias essas acrescidas dos juros legais contados desde a presente data e até efetivo e integral pagamento.

2 - Condeno a Ré Seguradoras Unidas, S.A. a pagar ao autor BB, a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a títulos de danos não patrimoniais, quantias essas acrescidas dos juros legais contados desde a presente data e até efetivo e integral pagamento.

3- Condeno a Ré Seguradoras Unidas, S.A. a pagar aos autores AA e BB a quantia de 20.000,00 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima CC e a quantia de € 70.000 (setenta mil euros) pela perda do direito à vida da vítima CC, quantias essas acrescidas dos juros legais contados desde a presente data e até efetivo e integral pagamento.

4 - Custas da ação a cargo dos autores e Ré, na proporção do respetivo decaimento.” * Não conformada com esta decisão, a Ré SEGURADORAS UNIDAS, S.A., interpôs recurso de apelação, vindo a Relação de Coimbra, em acórdão, a “julgar procedente o recurso interposto pela R. Seguradora, revogando a decisão recorrida e absolvendo a apelante do pedido formulado”.

* Por sua vez inconformados, vêm os Autores AA E BB interpor Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando alegações que rematam com as seguintes CONCLUSÕES 1. Não existem dúvidas de que o acidente dos autos foi causado por um veículo para efeitos da Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro, e para efeitos do RSORCA (Regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, sucessivamente alterado), sendo irrelevante de qual das suas partes componentes proveio o dano; 2. Constituindo assim um veículo para o qual existe obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, nos termos impostos pelo DL nº 291/2007, de 21/08 (RSORCA), e conforme resulta designadamente do disposto no art. 4º, nº 1 daquele diploma legal (cfr. ponto 1.25 dos Factos Provados); 3. O acidente descrito nos autos constitui um acidente de circulação, que se integra no âmbito da designada “circulação de veículos” e que desencadeia a responsabilidade prevista nos arts. 3º, parágrafo 1º da Directiva, 4º, nº 1 e 11º, nº 1 do RSORCA (já que a vítima era uma passageira que dele descarregava bens acabados de transportar), e não um acidente de laboração resultante da utilização de um veículo em funções meramente agrícolas ou industriais e que exclui aquela responsabilidade nos termos do art. 4º, nº 4 do RSORCA (o referido tractor ainda não tinha iniciado a pretendida operação de sementeira, pois a vítima nem sequer teve tempo para retirar de cima da fresa a referida saca de milho, não existindo assim um acidente de laboração); 4. Perante os factos dos autos, é imperioso concluir que o acidente ocorre no contexto da utilização principal do veículo na sua função habitual de meio de transporte ou de circulação (a passageira tinha acabado de descer do tractor e preparava-se para descarregar a saca de milho transportada na fresa quando foi colhida por esta), qualificando-se o mesmo como acidente de circulação e convocando-se a responsabilidade da seguradora Ré/Recorrida; 5. Não se podendo olvidar também que o tractor desempenhava igualmente a função de transporte da própria fresa, que lhe estava acoplada, uma vez que esta não é suscetível de circular de forma autónoma e independente (constituindo para o efeito uma peça integrante do próprio tractor); 6. Se dúvidas houvesse, bastaria recordar a factualidade (abundante) dada como provada nos pontos 1.1, 1.2, 1.3, 1.4, 1.5, 1.6, 1.9, 1.10, 1.11, 1.12, 1.13, 1.23, 1.24, 1.25, 1.26, 1.27, 1.28, 1.29, 1.35 da Fundamentação de Facto, toda ela demonstrativa de que no momento do acidente o veículo em causa estava sobretudo ou também a desempenhar a sua função de meio de transporte (a passageira tinha acabado de descer do tractor e estava a descarregar do tractor/fresa a saca de milho); 7. Estamos, pois, perante um dano sofrido numa situação que é uma "etapa natural e necessária" da utilização do veículo na sua função de meio de transporte - numa palavra, para a circulação; 8. Pois conforme afirmado repetidamente pelo TJUE, a circulação compreende toda a utilização do veículo na sua função normal como meio de transporte.

Por sua vez, a função de meio de transporte do veículo abrange o momento em que este está parado e mesmo com o motor desligado.

Esta função abrange situações e condutas instrumentais face ao momento em que o veículo se encontra efectivamente em movimento, e que configuram "etapas naturais e necessárias" da sua utilização como meio de transporte. Sendo que o próprio Tribunal expressamente alarga o conceito de circulação aos casos de carga e descarga de bens a transportar ou que acabam de ser transportados no veículo (ac.

Baltic Insurance Company, n.º 36); 9) Estas conclusões não se alteram pelo facto de a parte do veículo causadora do dano ser a alfaia agrícola instalada no seu reboque.

Como o TJUE afirmou no processo Línea Directa Aseguradora e reafirmou no processo Bueno Ruiz, não há que apurar qual das peças do veículo provocou o acidente ou as funções que esta peça desempenha.

O princípio da protecção das vítimas implica que o acidente esteja coberto em qualquer caso; 10) Ou quanto muito deve-se concluir que o acidente ocorre no contexto de duas utilizações concorrentes do veículo, ou seja, na sua função habitual de meio de transporte ou de circulação e na sua função de instrumento de laboração; 11) No plano dos factos, não há porque concluir que uma destas utilizações é a utilização principal; as duas concorrem no acidente, uma por parte da vítima e outra pela parte do lesante.

Como tal, mostra-se arbitrário concluir que a utilização principal é a que corresponde à actividade de laboração, e, mobilizando a jurisprudência Rodrigues de Andrade, recusar a cobertura; 12. E no plano do Direito, perante duas utilizações concorrentes do veículo para funções diversas, ao tempo do acidente, o princípio da protecção das vítimas consagrado no direito europeu determina que se dê prevalência à função de meio de transporte ou de circulação, ou seja, à qualificação do acidente como acidente de circulação; 13. Tal entendimento está de acordo com a última evolução da legislação europeia e jurisprudência do TJUE posterior a 2017, designadamente da proferida nos acórdãos Baltic Insurance Company, Línea Directa Aseguradora, Bueno Ruiz, entre outros; 14. A jurisprudência Rodrigues de Andrade tão-pouco contraria estas conclusões. No processo Rodrigues de Andrade, o veículo encontrava-se imobilizado e a funcionar como máquina de laboração agrícola, tendo atingido terceiros que tão-pouco utilizavam o veículo como meio de transporte. Não havia aí dúvidas de que a utilização absolutamente principal do veículo, senão mesmo sua utilização exclusiva, era como instrumento de laboração; 15. Embora a Directiva 2021/2118, que altera a Directiva vigente em matéria de seguro de responsabilidade civil automóvel, não tenha ainda sido transposta para o ordenamento interno, cabe dizer que os seus termos amparam as considerações precedentes, tendo aditado ao art. 1.º da Directiva o novo ponto 1-A; 16. Ademais, deve frisar-se que o art. 4.º, n.º 4, do RSORCA, que retira certas utilizações dos veículos do perímetro da cobertura obrigatória, apenas vale quando "os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais"; 17. Sendo que a norma vai mais longe do que a jurisprudência Rodrigues de Andrade na protecção das vítimas, já que apenas prevê a exclusão de veículos utilizados em funções exclusivamente - meramente - laborais (agrícolas ou industriais), e não principalmente laborais. Esta protecção reforçada que o ordenamento nacional confere às vítimas é perfeitamente legítima, já que a Directiva não pretende estabelecer um patamar máximo de protecção das vítimas de todos acidentes que envolvam veículos; 18. Ou seja, o Direito positivo português prevê legitimamente uma protecção reforçada das vítimas a este respeito, prevendo que o acidente apenas não qualifica como acidente de circulação quando os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais (art. 4.º...

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