Acórdão nº 00029/15.4BEBRG de Tribunal Central Administrativo Norte, 10 de Março de 2023
Magistrado Responsável | Helena Ribeiro |
Data da Resolução | 10 de Março de 2023 |
Emissor | Tribunal Central Administrativo Norte |
Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo: I. RELATÓRIO 1.1.
AA, residente na Estrada ..., Edifício ..., 2, ..., ..., moveu a presente ação administrativa contra a Unidade Local de Saúde U..., E. P. E.
, pessoa coletiva número ..., com sede na Estrada ..., ... ..., com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito decorrente de erro médico, pedindo que a ação seja declarada procedente e consequentemente: «a). Deve reconhecer-se e declarar-se que ocorreu erro médico determinado por culpa grave ou negligência grave e grosseira ou mera negligência, na realização das cirurgias e tratamentos relatados nesta petição, designada e nomeadamente, na primeira intervenção cirúrgica de histerectomia total (extração do útero) a que a Autora se submeteu, e que todas as sequelas clínicas das quais a A. padeceu após tal cirurgia, são resultantes directa e necessariamente desse mesmo erro ou erros médicos.
b). Reconhecer-se que advieram para a Autora as sequelas e danos descritos nesta petição, como resultado directo e necessário do acto ou dos actos médicos culposos ou negligentes.
c). Deve condenar-se o Réu a pagar à Autora as seguintes indemnizações reparatórias dos danos causados: - € 70.000,00 (setenta mil euros) para indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da incapacidade parcial permanente; - € 100.000,00 (cem mil euros) para indemnização pelos danos não patrimoniais ou morais.
- € 1.063,81 (mil e sessenta e três euros e oitenta e um cêntimos) para reembolso de despesas realizadas pela Autora.
Num total de € 171.063,81 (cento e setenta e um mil e sessenta e três euros e oitenta e um cêntimos), a que deverão acrescer juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação do Réu até efectivo e total pagamento.» Para tanto, e em síntese, alega que foi submetida a intervenção cirúrgica, realizada nas instalações e por médicos da Ré, que consistiu em histerectomia total, da qual se veio a constatar ter resultar repuxamento dos ureteres, o que lhe causou infeções urinárias, incontinência e necessidade de se submeter a vários tratamentos e outras cirurgias, para correção, o que lhe causou enormes dores, angústias e desgostos, bem como danos de natureza patrimonial. As lesões que sofreu, e que lhe causaram aqueles danos, devem-se a negligência por parte dos médicos da ré, pelo que deve ser esta responsabilizada pelo respetivo ressarcimento.
1.2. Citada, a Ré contestou, defendendo-se por impugnação, alegando, em suma, a inexistência de qualquer espécie de negligência médica, já que foi explicado à autora o procedimento em causa e os seus riscos, o que aceitou, e dos quais fazem parte a lesão ureteral. Esta lesão nem sempre é detetada no decorrer da cirurgia, e, em todo o caso, está descrita na literatura médica. Refuta, assim, qualquer espécie de responsabilidade pelos danos que a Autora alega ter sofrido.
Conclui, pugnando pela improcedência da ação.
1.3. Realizou-se audiência prévia, em que se proferiu despacho saneador, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova. Foram ainda admitidos os meios de prova requeridos pelas partes, bem como determinada a realização de prova pericial.
1.4.Foram juntos aos autos os relatórios periciais.
1.5. Realizada audiência final, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, constando da sentença recorrida a seguinte parte decisória: «Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação administrativa comum parcialmente procedente e, em consequência: a) Condeno a Ré a pagar à Autora a quantia de € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais; b) Condeno a Ré a pagar à Autora a quantia de € 1.063,81 (mil e sessenta e três euros e oitenta e um cêntimos), a título de danos patrimoniais/despesas realizadas; c) Condeno a Ré a pagar à Autora os juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias referidas nas alíneas anteriores, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento; d) Absolvo a Ré quanto ao demais peticionado pela Autora.
** Condeno as partes no pagamento das custas processuais, por terem ficado vencidas, e na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 77% para a Autora, e em 23% para a Ré – cf. art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, e artigos 6.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, e tabela I-A, do RCP [sem prejuízo, quanto à Autora, do apoio judiciário].
** Registe e notifique.» 1.7. Inconformada com a sentença assim proferida que julgou a ação parcialmente procedente, a Ré interpôs o presente recurso de apelação cujas alegações encerra com as seguintes CONCLUSÕES: «1. No presente processo cabe apurar a responsabilidade extracontratual da Ré / Recorrente ULSAM no diagnóstico e tratamento que foi dado à Autora, a qual invoca que na intervenção cirúrgica realizada em 25.10.2013, os médicos da ULSAM terão violado as leges artis a que estão adstritos.
2. Essa imputação aponta para a alegada negligência dos Dr.s BB e CC, na realização de uma histerectomia abdominal total, em resultado da qual ocorreu lesão ureteral provocada por repuxamento dos ureteres da Autora.
3. O sintoma que motivou a consulta foi hemorragia menstrual abundante, e a histerectomia total é o tratamento mais eficaz e efectivo; 4. Existindo, pois, um dever de informação que recai sobre o médico nos termos supra enunciados, resulta de forma clara dos factos provados que este dever de informação não foi omitido, antes tendo sido o Autora informada da cirurgia e quanto aos riscos associados à mesma e tendo prestado o seu consentimento à realização da cirurgia.
5. Riscos esses cujos factores integram, entre outros, a obesidade (a Autora mede 1,68m e à data da realização da cirurgia pesava 90Kg, a dimensão do útero (com 12cm x 6,5cm x 6,5cm) e a anterior realização de uma apendicectomia – cfr. doc. n.º ... junto à contestação.
6. Não se suscitam pois quaisquer dúvidas que o consentimento da Autora se reconduz a uma forma de manifestação da sua vontade, em respeito pelo seu direito, enquanto doente, a decidir sobre a sua própria saúde.
7. Conclui-se assim que a subscrição, pela Autora, do termo de consentimento, configura prestação de consentimento informado, o qual exclui a ilicitude, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 340.º do CC.
8. E ainda que o consentimento da Autora não se verificasse, sempre haveria de ter-se por presumido, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 340.º do CC, segundo o qual «Tem-se por consentida a lesão, quando esta se deu no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade presumível».
9. As lesões ureterais são uma das complicações mais graves da histerectomia e, embora não sejam as mais frequentes, ocorrem em menos de 1% dos casos; 10. A literatura médica refere que até 75% das lesões ureterais iatrogénicas não são identificadas durante a cirurgia; 11. Esta percentagem consta referida a fls. 216 do estudo junto aos autos como doc. n.º ... em 4.11.2019 onde se refere expressamente que «Até 75% das complicações intra-operatórias do ureter não são diagnosticadas durante a cirurgia.» 12. Na realização de uma histerectomia abdominal total, pode ocorrer uma lesão ureteral ou vesical sem que sejam violadas as leges artis; 13. O repuxamento dos ureteres verificada após a histerectomia abdominal é uma possível intercorrência deste tipo de intervenções.
14. Como consta referido a fls. 10 do estudo junto aos autos como doc. n.º ... em 4.11.2019, de entre os factores de risco associados às histerectomias, destacam-se a obesidade, a dimensão do útero e a anterior realização de cirurgias; 15. Do documento n.º ... junto com a contestação consta que no exame físico realizado na primeira consulta de ginecologia nos serviços da Ré / Recorrente realizada no dia 20.06.2013, ficou a constar da respectiva anamnese: a) que a Autora apresentava uma altura de 1,68m e um peso de 90Kg; b) que a Autora apresentava um útero globoso, com ecoestrutura heterogénea, polimiomatoso, e com as dimensões de 12cm x 6,5cm x 5,5cm; c) que a Autora tinha como antecedente cirúrgico, a realização de uma apendicectomia.
16. Relativamente à primeira consulta de ginecologia da Autora nos serviços da Ré / Recorrente ULSAM, importa atentar na seguinte passagem do depoimento da Dr.a DD, com registo áudio na aplicação SITAF, com início às 2:38:28 (h.m.s.) até às 3:11:18 (h.m.s.), do dia 7.02.2022, aos minutos e segundos que abaixo se indicam: «(...) (02:44:28 – 02:44:38) Advogado da Ré (AR): Tem o seu nome, tem o dia, tem aqui a hora do atendimento... isto tem aqui uma... uma... uma série de elementos, portanto, fala aqui do peso da Sra., 90 quilos...
(02:44:38) Médica: Sim.
(02:44:38 – 02:44:46) AR: Fala da altura da Sra., 1 metro e 68... fala não, está escrito. Tem a dimensão do útero que está aí referido também.
(02:44:46) Médica: Sim.
(02:44:46 – 02:44:50) AR: Portanto, essa medida que aí está... estes...
(02:44:50 – 02:44:51) Médica: 12 cm.
(02:44:51 – 02:44:52) AR: Isto é cm? (02:44.52) Médica: Cm.
(02:44:52 – 02:44:53) AR: Este... este...
(02:44:53 – 02:44:55) Médica: 12 cm por 6,5 é centímetros...
(02:44:55 – 02:44:56) AR: Isto é centímetros, não é? (02:44:56) Médica: Centímetros.
(02:44:56 – 02:44:57) AR: Não tem aqui a... a...
(02:44:57 – 02:44:59) Médica: Não, não tem, mas é cm (vozes sobrepostas) (02:44:59 – 02:45:10) AR: Temos o peso, naturalmente quilos... (vozes sobrepostas) a altura... e tem esta... esta, portanto... e tem também uma referência a uma intervenção cirúrgica a que a Sra. foi submetida...
(02:45:10) Médica: Sim...
(02:45:10 – 02:45:12) AR: Anteriormente, não tem nada a ver com isto, não é? (02:45:12) Médica: Sim.
(02:45:12 – 02:45:16) AR: Uma apendicectomia. (vozes sobrepostas) isto, digamos, faz parte do histórico dela.
(02:45:16 – 02:45:17) Médica: Dos antecedentes, sim.
(02:45:17 – 02:45:19) AR: Foi a Dra. que escreveu isto? (02:45:19) Médica: Sim.
(02:45:19 – 02:45:20) AR: E foi estes elementos...
...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO