Acórdão nº 0894/21.6T8FNC-A.L1.S1 de Tribunal dos Conflitos, 01 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelMARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Data da Resolução01 de Março de 2023
EmissorTribunal dos Conflitos

Acordam no Tribunal dos Conflitos: 1. Em 23 de fevereiro de 2021, Tâmega Engineering, S.A. intentou no Juízo Central Cível do Funchal do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira uma acção contra a Região Autónoma da Madeira, formulando o seguinte pedido: “deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência: a. Declarada nos termos dos artigos 282.° e 283.° do CC a modificação do negócio jurídico celebrado entre a Autora e a Ré por o mesmo ser usurário, através da qual dever-se-á: i. dar sem efeito o perdão de juros concedido à Ré ao abrigo do Acordo de Princípio de 28.12.2012, da Declaração de 15.05.2013, da Adenda de 03.07.2013 e da Declaração de 06.05.2014; ii. dar sem efeito a renúncia a reclamações de valores relativos a compensações no âmbito de empreitadas identificadas no Anexo III à Declaração de 15.05.2013, em montante superior a 17,5% e dar sem efeito a renúncia ao direito da Autora proceder à sua cobrança; iii. dar sem efeito o perdão de juros concedido à Ré ao abrigo do Acordo de Regularização de Dívida de 30.03.2015 e das respetivas Adendas de 05.11.2015, de 18.12.2017 e de 26.11.2018; e iv. dar sem efeito o desconto concedido à Ré ao abrigo da Adenda ao Acordo de Regularização de Dívida de 26.11.2018 b. Consequentemente, deverá a Ré ser condenada no pagamento à Autora das seguintes quantias: i. € 30.910.927,07, valor correspondente ao perdão de juros de mora; ii. € 90.000,00, valor correspondente ao desconto em virtude de antecipação de pagamento.

  1. Em consequência do pedido em a. ii., mais se requer que seja reconhecido o direito à Autora a reclamar valores relativos a compensações no âmbito de empreitadas identificadas no Anexo III à Declaração de 15.05.2013, em montante superior a 17,5% e a proceder à respetiva cobrança.

”.

Alega, em suma, que entre as partes foi celebrado um conjunto de acordos, adendas e declarações, com benefícios verdadeiramente excessivos e injustificados para a ré, que configuram um negócio jurídico usurário que a autora pretende ver modificado nos termos peticionados.

Citada, a ré contestou, excepcionando, além do mais, a incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, para conhecer da lide.

Sustentou que a ré tem natureza pública e é dotada de poderes de autoridade, tendo actuado nessa qualidade nas relações jurídicas que estabeleceu com a autora, tanto nas iniciais (contratos de empreitada) como nas subsequentes (negócios jurídicos que modificaram os pressupostos financeiros e de cobrança iniciais).

Concluiu que entre a autora e a ré existe uma relação jurídico-administrativa, cabendo à jurisdição administrativa a competência para apreciar o presente litígio.

Por despacho de 4 de Fevereiro de 2022, o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Juízo Central Cível do Funchal – Juiz 2 pronunciou-se pela não verificação da invocada excepção de incompetência absoluta, afirmando a sua competência para conhecer da lide, porquanto está em causa um acordo de natureza privatística, com vista à restruturação de uma dívida da ré para com a autora, que não foi outorgado no âmbito de normas de direito público.

Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação da decisão que julgou improcedente a excepção dilatória de incompetência material, defendendo serem os Tribunais Administrativos os tribunais materialmente competentes para a apreciação da causa.

A autora contra-alegou, afirmando a competência dos Tribunais comuns.

Por acórdão de 26 de Maio de 2022, o Tribunal da Relação de Lisboa concedeu provimento à apelação, revogou a decisão recorrida e absolveu a ré da instância, por incompetência absoluta, entendendo que cabe à jurisdição administrativa a competência “para apreciar esses pedidos de condenação das obrigações emergentes dos contratos de obras públicas celebrados entre as partes”, nos termos do disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: “Contudo, com a presente lide, a autora pretende seja a ré condenada no cumprimento das suas obrigações emergentes daqueles mesmos contratos de obra pública, anulando-se (por padecerem do vício de usura) as modificações constantes daqueles Acordos (de transacção) celebrados posteriormente.

E a competência da Jurisdição Administrativa para apreciar esses pedidos de condenação das obrigações emergentes dos contratos de obras públicas celebrados entre as partes resulta cristalina do art. 4º, nº1, e) do ETAF, supra citado.

Aliás e se tal não bastasse, a referida alínea e) demonstra, como já sucedia antes da revisão de 2015 (ou seja, desde a redação inicial do ETAF de 2002), que a jurisdição administrativa, em matéria de contratos, não se circunscreve aos contratos administrativos, continuando a estender o âmbito da jurisdição administrativa a “quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas de direito público ou outras entidades adjudicantes”, ou seja, “o âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos é mais amplo do que a categoria dos contratos administrativos: o critério do contrato administrativo é um dos critérios adotados pelo art. 4. °/1 do ETAF, mas não é o único critério do qual ele faz depender a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos, pois há outro critério, o da submissão do contrato a regras de contratação pública, como refere Mário Aroso de Almeida, in Manual de Processo Administrativo, 6ª edição, pg. 173.

A ampliação da atribuição aos tribunais administrativos do julgamento de questões que, em princípio, não lhes caberia substancialmente conhecer, é manifesta em matéria de contratos, na medida em que a referida alínea e) do art. 4.°/1 do ETAF (na revisão de 2015), “(...) no que se refere às questões de interpretação, validade e execução de contratos, não abrange apenas os contratos administrativos, mas também quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. (...) Trata-se de uma opção tomada na revisão de 2015, que tem a vantagem de sujeitar a generalidade dos contratos celebrados pela Administração à jurisdição administrativa, eliminado algumas diferenciações feitas na versão de 2002, que eram causa de obscuridade e de dúvida, sem sequer terem o mérito da coerência substancial., citando Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa, 17ª edição, pg. 104.

E visto o Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, constatamos que, desde logo, nos termos do art. 1º, nº 2, o regime da contratação pública estabelecido na parte II é aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código e não sejam excluídos do seu âmbito de aplicação.

A ré, ora recorrente, é uma entidade adjudicante caracterizada como contraente público, nos termos do disposto nos arts. 2º, nº 1, b) e 3º, nº1, a) do mesmo Código.

E a contratação de empreitadas de obras públicas bem como a alteração subsequente a essas contratações, por sucessivos contratos de transacção (quadro negocial complexo em causa nestes autos), não se mostra excluída do âmbito de aplicação deste CCP, nos termos dos seus arts. 4º e 5º.

Dúvidas não nos restam que, pretendendo modificar parcialmente as obrigações emergentes dos contratos de obras públicas pré-existentes, no que tange ao perdão de juros concedido, à renúncia ao direito de reclamar os valores relativos a compensações no âmbito das empreitadas identificadas e ao desconto concedido à Ré, a resolução do presente litígio envolve não apenas a aplicação do regime civil de usura e do contrato de transacção, mas também do regime jurídico aplicável àqueles contratos de obras públicas, sujeitos evidentemente a regras de contratação pública.

Sendo que a causa complexa desses pedidos é formada, não apenas pelo incumprimento dos referidos contratos de obras públicas por parte da ré (na perspectiva da autora), mas também pela modificação das alterações às obrigações emergentes dos mesmos, em virtude do vício de usura das mesmas alterações.

No que se refere ao pedido de remessa dos autos ao tribunal competente, suscitado nas alegações da recorrida, o mesmo será apreciado na 1ª instância...

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