Acórdão nº 1571/20.0T8LSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 31 de Janeiro de 2023

Magistrado ResponsávelMARIA JOSÉ MOURO
Data da Resolução31 de Janeiro de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Proc. nº 1571-20.0T8LSB.L1.S1.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção): * I - A «Massa Insolvente de G..., Lda.

», representada pelo administrador da insolvência, intentou acção declarativa com processo comum contra «Mediserviços – Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A.».

Alegou a A., em resumo: - Que a «G..., Lda.» foi declarada insolvente por sentença proferida em 2 de Março de 2015, no processo n.º 200/14...., a correr termos pelo Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca ..., sentença aquela já transitada em julgado; - Que até à declaração de insolvência, esteve integrada em grupo empresarial sob o domínio e participação da ora R.; - Que o «Laboratório de Análises Clínicas de M..., Lda.» estava, também, integrado no grupo de empresas sob a alçada da R.; - Que por documento escrito datado de 2 de Maio de 2013, denominado «Instrumento Particular de Assunção de Dívida», foi celebrado um acordo entre três partes, ou seja, a ora R., designada por cedente, a ora A., designada por cessionária, e a referida «Laboratório de Análises Clínicas de M..., Lda.», designada por credor, constando desse escrito que “a cedente assumia junto ao credor a dívida no montante de €753.985,44” e que “a cedente pretendia liberar-se da dívida transferindo-a para a cessionária e que esta aceita a transferência da dívida”, bem como que a ora A., assumia a totalidade da dívida, assim como os seus encargos, comprometendo-se a pagá-la ao credor, comprometendo-se a R. a pagar à ora A. aquela quantia de € 753.985,44, no prazo de oito anos; - Que a ora R. nenhum pagamento fez à ora A. por conta do contrato celebrado, sendo que o total em dívida pela R. à A. ascende à quantia de €789.557,03.

Pediu a A. a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de € 753.985,44, acrescida de juros à taxa comercial desde a data da interpelação para pagamento, em 13 de Maio de 2019.

Na contestação que apresentou a R. defendeu-se, por excepção, invocando a ilegitimidade do administrador da insolvência e a caducidade do direito de acção, e por impugnação. Referiu, nomeadamente, que a A. não pagou ao credor «Laboratório de Análises Clínicas de M..., Lda.», nem à sua massa insolvente (tendo sido encerrado o processo de insolvência em 2019) qualquer quantia do valor previsto no contrato de assunção da dívida, o que, também, não lhe foi exigido pela credora, pelo que a A. não tem direito ao valor peticionado, pretendendo a A. locupletar-se à custa alheia.

Concluiu pedindo que sejam julgadas procedentes as excepções alegadas, absolvendo-se a R. do pedido e que, se assim se não entendesse, fosse a acção julgada improcedente, absolvendo-se a R. do pedido.

Quando se pronunciou sobre as exceções invocadas, pediu a A. a condenação da R. como litigante de má fé.

No saneador foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade invocada pela R.. Posteriormente, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido formulado pela A. e, igualmente, improcedente o pedido de condenação da Ré como litigante de má fé.

A A. apelou, vindo a Relação de Lisboa a proferir acórdão em que decidiu julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida, esclarecendo embora, no que concerne à questão que delimitou como sendo a referente à «assunção de dívida e incumprimento da apelada», improceder a apelação «devendo manter-se a decisão recorrida, embora com diferentes fundamentos».

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando as seguintes conclusões: 1. Vem o presente recurso de revista interposto do douto acórdão que absolveu a Ré do pedido.

  1. Fundando-se no disposto no n.º 1 e n.º 3 (a contrario) do art.º 671.º do CPC, pois, não obstante ter mantido a decisão proferida em 1.ª instância que julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido, adoptou-se no aresto recorrido uma fundamentação essencialmente diferente; 3. Com efeito, os próprios termos do Acórdão a quo apontam em tal sentido, quando no mesmo se afirma que “improcede a apelação, também nesta parte, devendo manter-se a decisão, embora com fundamentos diferentes”.

  2. Mesmo que assim se não considerasse, deverá a presente revista ser admitida como excepcional, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC; 5. Dado que a “assunção de dívidas” tem sido objecto de controvérsia e reticências quanto à melhor interpretação e aplicação do regime jurídico regulamentador da matéria, motivando decisões dispares; 6. Controvérsia bem patente no sumário do Douto Acórdão proferido neste Supremo Tribunal no processo n.º 294/06.8TVPRT.91.S1, consultável em www.dgsi.pt, em que o Ilustre Conselheiro Álvaro Rodrigues refere o seguinte: «(…) Convirá recordar que a assunção da dívida como forma de transmissão singular de obrigações encontrou sempre alguma resistência da parte dos legisladores, designadamente não estando prevista no nosso Código Civil anterior ao vigente (Código de 1866, conhecido por Código de Seabra).» 7. Sendo, por conseguinte, admissível a presente revista.

  3. Como se deixou já enunciado, o Douto Acórdão a quo fez errada interpretação e aplicação das disposições legais aplicáveis aos factos controvertidos, o que resultou em erro de julgamento e não deixará de merecer a sua revogação por este mais Alto Tribunal, e a sua substituição por decisão que condene a Ré/Recorrida no pedido.

  4. Não obstante se louvar a correcção operada pelo Douto Acórdão recorrido da sentença de 1.ª instância no facto de ter centrado a questão num contrato de “assunção de dívida” e rejeitado categoricamente a ficção da existência de um “contrato de mútuo” a que a decisão inicial deu guarida, o certo é que, ainda assim, a fundamentação da mesma enveredou por um caminho que, salvo o devido respeito, não lhe tornou a jornada mais pacífica, quando entende que se trata, no caso dos autos, de “uma assunção onerosa de dívida”, e que, por conseguinte “não tendo a G... (leia-se C...) pago a dívida à credora, não está a R. Mediserviços obrigada a cumprir a sua parte do contrato (do sinalagma).» 10. Diremos que, se nos for permitida a boa disposição verbal, a Relação corrigiu o tiro, mas nem por isso acertou no alvo.

  5. Desde logo, a termos como acertada esta qualificação do contrato como uma assunção onerosa de dívida, devemos dizer que é totalmente falso e destituído de sentido afirmar que a ora recorrente e A. não tenha cumprido a parte que lhe cabia para com a Ré no âmbito do acordo estabelecido.

  6. Em abono da verdade, resulta da economia do contrato e do regime jurídico em causa que à Mediserviços seria indiferente que a G... cumprisse ou não a credora inicial, dada a desoneração total para com esta da sua obrigação de pagamento da dívida.

  7. Com efeito, nas relações para com a recorrida (Mediserviços) a obrigação que incumbia à recorrente (a insolvente G...) não era o pagamento à credora, mas sim a assunção da dívida que desonerou aquela, a devedora inicial.

  8. Ora, essa obrigação foi cumprida pela cessionária e aceite pela credora logo no momento da subscrição do contrato; 15. Tanto mais que a Mediserviços ficou totalmente desonerada da sua obrigação para com esta credora, como se disse.

  9. Por conseguinte, nos termos, e no âmbito, do contrato em causa, a Autora não se obrigou perante a Ré a “adiantar os meios necessários à satisfação do crédito do credor”.

  10. Na verdade, o dever de pagamento da devedora inicial/R., e “cedente” no contrato, do valor de €753.985,44 à A., estava apenas dependente da validade da assunção da dívida por esta A., o que não foi questionado em qualquer momento ou instância por quem quer que fosse. Daqui resulta que a A. - “cessionária” - só se obrigou para com a Credora.

  11. Por outro lado, a obrigação da R. não é de restituição, mas de cumprimento, para com a A. em virtude da assunção (e como contrapartida) de uma dívida daquela que esta aceitou, em desoneração definitiva da primeira, o que todas, incluindo a Credora, aceitaram como liberatória da recorrida, como se encontra provado nos autos através dos termos do contrato por todas firmado.

  12. Assim, o que se provou ter sido pactuado entre as partes outorgantes foi uma assunção onerosa de dívida, em que a assunção foi, efectivamente, liberatória porque nisso acedeu a Credora, e que envolveu o pagamento de um valor à Cessionária por parte da Cedente.

  13. Tal conclusão é a que resulta dos próprios termos do contrato, quando no mesmo se faz constar e subscreve o seguinte: “Considerando que a CEDENTE assumiu junto ao CREDOR a dívida no montante de € 753.985,44 (…); considerando que a CEDENTE pretende liberar-se da DÍVIDA, transferindo-a à CESSIONÁRIA e que esta aceita a transferência da DÍVIDA, nos termos e condições ora pactuados; pelo presente Instrumento particular, as partes nomeadas no presente contrato, doravante denominadas, respetivamente, CEDENTE e CESSIONÁRIA, acordam celebrar o presente Instrumento Particular de Assunção de Dívida (o “Contrato”) nos termos do art.º 595º e seguintes do Código Civil, que se regerá pelas seguintes cláusulas: 1. A CESSIONÁRIA assume a totalidade da Dívida, comprometendo-se a pagá-la na forma originalmente contratada com o CREDOR.

  14. Como contraprestação da assunção da dívida ora pactuada, a CEDENTE pagará, no prazo de oito anos, à CESSIONÁRIA, o valor acima declarado, pelo qual a CESSIONÁRIA dará a competente quitação (…)”.

  15. Como se vê, a contraprestação que a R. aceitou da A. não foi o pagamento da dívida à credora L..., mas sim a assunção liberatória pela G... da sua (da Mediserviços) dívida para com aquela L....

  16. Foi este o regime pelo qual as partes signatárias do contrato sub iudice optaram, que mais se compagina com o teor do contrato aceite nos seus precisos termos por recorrente, recorrida e Credora, fruto de negociação e elaboração dentro do que são os limites da liberdade contratual (art.º 405.ºdo CC), 23.E que, até doutrinalmente, se encontra há muito enquadrada no ensinamento que os Professores Pires de Lima e Antunes Varela enunciam na anotação...

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