Acórdão nº 21600/18.7T8LSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 02 de Fevereiro de 2023

Magistrado ResponsávelANA PAULA LOBO
Data da Resolução02 de Fevereiro de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

* I – Relatório AA, BB, e CC intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação da ré a pagar-lhes a quantia de € 2.000.000,00, acrescida de juros de mora vencidos desde 17-02-2017, no valor de € 129.753,42, bem como dos vincendos, à taxa legal.

Em fundamento da sua pretensão invocaram a sua qualidade de filhos e herdeiros legais de DD, falecido em ...-07-2016, em consequência de acidente de motociclo, durante um curso de condução, que contratara com a Ré, na qualidade de pessoa segura, o seguro de acidentes pessoais titulado pela Apólice n.º ...00, cujo capital é de € 2.000.000,00 (dois milhões de euros), tendo por beneficiários os autores.

A ré contestou a acção invocando estar excluída a específica cobertura de danos pessoais resultantes da condução de veículos de duas rodas.

A acção foi julgada parcialmente procedente pelo Tribunal de 1.ª instância e a Ré condenada a pagar aos A.A. a quantia de € 2 000.000,00 (dois milhões de euros), correspondentes ao capital da apólice n.º ...00, acrescida dos juros de mora contados desde 21-02-2017, até integral pagamento.

Em recurso de apelação interposto pela Ré, veio a ser proferido, em 13 de Setembro de 2022, o acórdão recorrido que alterou a decisão proferida sobre matéria de facto, e julgou a apelação procedente, revogando a sentença apelada, e absolvendo a ré do pedido.

Os A.A. interpuseram recurso de revista cujas alegações culminam com as seguintes conclusões: 1.

O douto acórdão, sob censura, opera uma reversão global da decisão da primeira instância, transformando uma condenação no pedido, numa absolvição, excedendo em muito, no entendimento dos recorrentes, aquilo que deve ser considerado um recurso da matéria de facto.

  1. Concretamente, o douto Acórdão impugnado procedeu a uma amplíssima reversão dos factos assentes e não provados, mormente: - Alterou-se a redacção dos pontos 10 e 19; - Aditaram-se os factos 10 a), 10 b), 10 c), 10 d), 10 e) e 10 f) - Eliminou-se o ponto 13 dos factos provados - Eliminaram-se os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20 dos factos não provados.

  2. O douto Acórdão recorrido, na extensão das modificações produzidas, quanto à matéria de facto, além de menorizar o Tribunal a quo, numa acção com seis aturadas sessões de julgamento, inobservou os princípios da imediação da prova e da oralidade, bem como, a livre convicção de consideração das provas produzidas, efectuada pela Mmª Juiz a quo.

  3. A douta decisão impugnada trocou, amiúde, o sim pelo não e o não pelo sim, ou seja, numa simplicidade jurisprudencial de câmbio vanguardista, fez, sem mais, um segundo julgamento, sem cuidar da possibilidade de poder ter suspeitas, ordenando, para esclarecimento de primordiais e potenciais dúvidas, a baixa dos autos à primeira instância, ao abrigo do nº 2 do artigo 662º do CPC.

  4. É por demais significativo que, de 22 factos não provados, a Relação os tenha reduzido a um único, subvertendo toda a livre convicção e arbítrio da Mmª. Juiz de primeira instância, todo o seu apurado labor em seis sessões de julgamento, toda a sua acuidade interpretativa na absorção da oralidade.

  5. Uma sentença bem motivada, como o foi a de primeira instância, explica, adequada e suficientemente, porque é que o juiz se convenceu, e não garante de modo algum, como no caso subjudice, que o controlo em recurso de tal convencimento, produza uma convicção melhor.

  6. Aliás, as cogitações, na rigorosa expressão adoptada pela Relação, são manifestas vontades interpretativas de absolvição e, ao mesmo tempo, correspondentes e consequentes excessos dos poderes de cognição do tribunal a quo, e, portanto, processualmente inadmissíveis.

  7. O acórdão recorrido não reconhece sequer que os seus poderes de decisão da matéria de facto sofrem limitações decorrentes da ausência de imediação e de oralidade, o que, associado à margem de livre apreciação da prova do juiz em julgamento, reduz consideravelmente as possibilidades de escrutínio da decisão de primeira instância, e, no caso dos autos, alterou-se o decidido em primeira instância sem que, sequer, as concretas provas indicadas pela recorrente impusessem decisão diversa da proferida.

  8. No entendimento do Tribunal a quo, bastará ao Apelante que cumpra o ónus impugnatório na forma legal para que, em tese, a decisão da primeira instância, quanto à matéria de facto, possa ser sindicada em toda a sua extensão e amplitude, sendo hipoteticamente viável que todos os factos dados como provados possam ser revertidos para não provados e vice-versa.

  9. Ora, o entendimento supra, sufragado pela Relação, não encontra suporte, nem na jurisprudência mais recente e insigne, nem na lei, citando-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ de 01-10-2015 e 19-05-2005 e da Relação de Guimarães de 30-11-2017, que se dão por reproduzidos, todos in www.dgsi.pt, dos quais resulta a prevalência, mesmo em sede de recurso, dos princípios da oralidade e da imediação e de que não cabe à Relação proceder a uma global revisão do julgamento em primeira instância.

  10. No caso dos autos, o Tribunal de primeira instância fundou a sua apreciação crítica na visão da prova produzida ao longo das seis sessões de julgamento, tendo o ensejo de avaliar, pessoalmente, a credibilidade, a postura e a razão de ciência de todas as testemunhas. Pôde sopesar as expressões faciais, as hesitações, os olhares, os nervosismos, as respostas evasivas e as contradições entre os depoimentos das testemunhas, bem como, diferenciar as respostas genuínas e espontâneas das respostas induzidas pelo modo como o mandatário coloca a pergunta.

  11. Em sede de Apelação, a Ré limitou-se a apresentar uma versão abreviada e montada do “filme do julgamento”, composto, essencialmente por trechos selecionados, dos depoimentos das testemunhas da Ré, em que primam pela exclusão os segmentos contendo as contra-instâncias e todas as partes susceptíveis de contrariar a estratégia de recurso.

  12. A Mma. Juiz de primeira instância teve, no entanto, todas as condições para, não só apreciar a prova na sua globalidade, como para cotejar o conjunto dos depoimentos prestados e aperceber-se da inconsistência de certas afirmações das testemunhas da recorrida.

  13. Na sentença recorrida pela Ré, não existiu erro, e muito menos manifesto, na livre apreciação das provas, que tivesse inquinado as respostas à matéria de facto e a respectiva motivação, pelo que, o acórdão em crise violou, iniludivelmente, o disposto no art. 662.º do C.P.C.

  14. E, quando assim não fosse, pugna-se que seria mais adequado que a Relação tivesse determinado a anulação do julgamento, o que não ocorreu, podendo agora o STJ, entendendo que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, fazer regressar o processo ao tribunal recorrido, nos termos do disposto no art. 682.º, n.º 3 do C.P.C, com o regime do art. 683.º do mesmo Código.

  15. Para os recorrentes não está em causa a reapreciação da prova, nos termos da delimitação objectiva efectuada pela recorrida, mas, tão só, o sentido da douta decisão, sustentada a jusante por juízos de valor, verdadeiramente excedíveis e especulativos, tais como os vertidos no último § da pág. 35 e início da 36 do aresto recorrido.

  16. Também fica demonstrada, no Acórdão da Relação impugnado, a imponderação do mesmo na profundíssima alteração da matéria de facto, eivada de juízos valorativos despiciendos, contundentes e insustentáveis, sendo certo que, (…) A alteração da matéria pela Relação deve ser realizada ponderadamente só devendo ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente coma globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro no julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente (Acórdão do da Relação do Porto de 27-04-2015).

  17. Constata-se, por outro lado, uma flagrante contradição entre os novos factos dados como assentes (10c e 10d) e os factos não provados nºs 21 e 22, que não foram objecto de eliminação, nem de impugnação expressa pela Ré, em sede de Apelação, o que gera a nulidade do Acórdão recorrido, nos termos do artigo 615º nº 1 c) do CPC, conjugado com o artigo 666º do mesmo código.

  18. Nos termos do artigo 662º nº 1 do CPC, o poder de alteração da decisão sobre a matéria de facto cinge-se às situações em que a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

  19. O douto Acórdão recorrido exorbitou o seu poder de conhecimento sobre a matéria de facto, ao transformar o ponto 13 dos factos provados em primeira instância, em facto não provado, sem qualquer sustentação na prova produzida em julgamento, fundando-se, apenas, na extração de uma presunção judicial, baseada em meras conjecturas, o que constitui violação dos limites de reapreciação da matéria de facto, estabelecidos no nº 1 do artigo 662º do CPC.

  20. De igual modo, a sobredita norma de direito adjectivo, foi violada no processo decisório que conduziu à fixação de novo facto provado, com o nº 10-B e concomitante eliminação do correlativo...

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