Acórdão nº 02836/18.7BEPRT de Tribunal Central Administrativo Norte, 15 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelHelena Ribeiro
Data da Resolução15 de Julho de 2022
EmissorTribunal Central Administrativo Norte

Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo: I.RELATÓRIO 1.1.

G...EM, pessoa coletiva de direito privado, com o NIPC ... e sede no ... ..., intentou a presente ação administrativa contra AA, pedindo a condenação do demandado a pagar-lhe as rendas já vencidas, no montante de € 492,75, acrescidas de indemnização pela mora, juros vencidos e vincendos à taxa legal até integral pagamento.

Alega, para tanto, em síntese, que em 27/12/2010 celebrou contrato de arrendamento com o réu, sujeito ao regime previsto nos Decretos-Lei n.ºs 163/93 e 166/93, ambos de 07 de maio, nos termos do qual deu de arrendamento ao mesmo a fração autónoma correspondente ao 1º Direito, Entrada ...1, Bloco ... do Empreendimento de BB, em regime de propriedade horizontal, de tipologia T3, sito na Rua ..., freguesia ....

Mais alega que perante a falta de pagamento das rendas devidas ao abrigo do mesmo contrato, o réu procedeu à entrega da habitação.

1.2. Citado, o réu não apresentou contestação.

1.3. A autora apresentou alegações escritas, nas quais reiterou a sua argumentação constante da p.i..

1.4.Por despacho de 26/01/2022, foi suscitada oficiosamente a exceção dilatória da falta de interesse em agir.

1.5.

A Autora pronunciou-se, pugnando pela improcedência da referida exceção, aduzindo, em suma, que pela sua natureza e forma social, não é uma pessoa coletiva de direito público, nem praticou, porque não pode, nenhum ato administrativo impositivo do dever de pagamento de quantias pecuniárias, razão por que não se lhe aplica o disposto no artigo 179.º do CPA, devendo a ação seguir a sua tramitação normal.

1.6. Fixou-se o valor da causa em € 1.130,15.

1.7.O TAF do Porto proferiu decisão que julgou procedente a exceção dilatória da falta de interesse em agir, constando a mesma do seguinte segmento decisório: «Pelo exposto, decide-se julgar procedente a exceção dilatória de falta de interesse em agir e, em consequência, absolver o réu da instância.

Custas pela autora.» 1.8. Inconformada com o assim decidido, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões: «1. Andou mal o Tribunal a quo ao indeferir liminarmente a petição inicial apresentada pela Recorrente por entender que existe falta de interesse em agir desta ao recorrer à ação administrativa comum, sob o argumento de que a Recorrente disporia de um mecanismo de autotutela declarativa e executiva, previsto na Lei 81/2014, de 19 de dezembro e no artigo 179.º do CPA que lhe permite declarar o seu direito a receber rendas e, em falta de cumprimento voluntário, proceder à sua cobrança coerciva.

  1. Decorre do artigo 179.º do CPA que a cobrança coerciva de obrigações pecuniárias mediante processo de execução fiscal será possível quando se verifiquem cumulativamente os seguintes pressupostos: i) as prestações pecuniárias sejam devidas por força de um ato administrativo; e ii) estas devam ser pagas a uma pessoa coletiva pública, ou por ordem desta.

  2. Conforme decorre claramente do artigo 1.º dos respetivos Estatutos, bem como do artigo 19.º n.º 4 do RJAEL, a G...EM é uma pessoa coletiva de direito privado, possuindo autonomia patrimonial, financeira e administrativa.

  3. O facto de uma entidade privada estar habilitada por um ato jurídico público a exercer poderes públicos de autoridade não a transforma numa pessoa coletiva pública.

  4. A distinção entre pessoa coletiva de direito público e pessoa coletiva de direito privado é relevante na medida em que o próprio Código de Procedimento Administrativo continua, em certos casos e disposições legais específicas (como é o caso do artigo 179.º do CPA), a referir-se expressamente a pessoas coletivas de direito público, mesmo que tal norma se integre numa parte do Código que à partida será aplicável a entes públicos e entes privados, sendo certo que a referida distinção é essencial na definição da titularidade da capacidade de direito público em sentido formal, isto é, a aptidão de uma pessoa para praticar atos administrativos e para celebrar contratos administrativos.

  5. As empresas locais apenas podem ser admitidas a exercer poderes públicos de autoridade mediante habilitação legal expressa (diploma legal, estatutos ou contrato de concessão) , nos termos do disposto no artigo 22.º do Regime do Setor Público Empresarial (DL n.º 133/2013, de 3 de outubro), que elenca taxativamente quais os poderes que as empresas públicas podem exercer, referindo no seu n.º 2 que os poderes especiais são atribuídos por diploma legal, em situações excecionais e na medida do estritamente necessário à prossecução o interesse público, ou constam do contrato de concessão.

  6. A G...EM está legal e expressamente habilitada a celebrar contratos de arrendamento sob o regime de renda apoiada, a receber as respetivas rendas, bem como a proceder ao despejo administrativo em caso de incumprimento da obrigação de desocupação e entrega da habitação à entidade detentora da mesma.

  7. A G...EM não está expressamente habilitada a recorrer à execução fiscal para cobrança de valores em dívida, uma vez que inexiste norma legal ou estatutária que a invista nesse poder, que o legislador reservou para as entidades públicas.

  8. O artigo 28.º da Lei 32/2016 de 24 de agosto, apenas determina genericamente que “a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo” sem se referir, em parte alguma, à possibilidade de execução coerciva – a qual sempre estaria afastada em concreto, face ao teor do artigo 179.º do CPA.

  9. A interpretação extensiva não pode ser utilizada para sustentar interpretações que não tenham um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, conforme decorre do artigo 9.º n.º 2 do Código Civil, e, muito menos, para sustentar interpretações contra legem, como é o caso da propalada pelo Tribunal a quo, que contraria totalmente a letra do artigo 179.º do CPA.

  10. Se o legislador pretendesse conceder às empresas locais a possibilidade de execução coerciva de obrigações pecuniárias, tê-lo-ia feito, retirando a expressão “pessoa coletiva pública” da norma inserta no artigo 179.º do CPA, o que não fez porque quis intencionalmente reservar a possibilidade de recurso à execução fiscal às pessoas coletivas públicas.

  11. A Recorrente não está a atuar por ordem de uma pessoa coletiva pública ou como sua “delegada”, uma vez que as empresas locais, como é a G...EM, gozam de autonomia administrativa, financeira e patrimonial e não atuam sob as ordens diretas dos seus acionistas.

  12. O artigo 179.º do CPA configura uma norma geral e abstrata, não se tratando de um diploma legal ou contrato de concessão e jamais poderia ser esta norma a atribuir um novo poder público (o da remessa para processo de execução fiscal): o exercício do poder público é o pressuposto e não o resultado da aplicação do Código.

    Sem prescindir, 14. O artigo 17.º n.º 2 da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 32/2016 (regime do arrendamento apoiado para habitação) determina que o contrato de arrendamento apoiado tem a natureza de contrato administrativo (e não ato administrativo).

  13. O artigo 179.º n.º 1 do CPA, quando consagra o recurso ao processo de execução fiscal, tal como regulado na legislação do processo tributário, faz depender tal possibilidade de as prestações pecuniárias devidas a uma pessoa coletiva pública o serem “por força de um ato administrativo”.

  14. As prestações pecuniárias em dívida – as rendas – não são devidas em função de um ato administrativo, mas em virtude de um contrato, (o contrato de arrendamento celebrado entre a Recorrente e o respetivo inquilino, onde as partes convencionaram direitos e obrigações recíprocas), mais concretamente, do incumprimento do contrato (pagamento das rendas) por parte do inquilino.

  15. Deixando uma das partes de cumprir os deveres a que contratualmente se obrigou, in casu o dever de pagar pontualmente a renda, verifica-se uma situação de incumprimento contratual que carece de tutela jurisdicional.

  16. O legislador consagrou expressamente na Lei determinadas prerrogativas da entidade – como modelar o conteúdo do contrato, resolvê-lo, proceder ao despejo administrativo, – e se fosse o seu intento, teria também consagrado expressamente a possibilidade de recorrer à execução fiscal para a cobrança dos valores em dívida, o que não sucedeu.

  17. Decorrendo a obrigação do pagamento das rendas da celebração do contrato de arrendamento e não de um ato administrativo e não sendo a Empresa Municipal em causa uma pessoa coletiva pública nem estando a agir por ordem de uma, não estão – duplamente – preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 179.º do CPA, que não atribuiu às empresas locais o poder de emitir certidões com o valor de título executivo, com vista à instauração dos processos de cobrança coerciva das dívidas.

  18. De acordo com as regras de interpretação estabelecidas pelo artigo 9.º do Código Civil, na fixação do alcance do artigo 179.º do CPA, presume-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, pelo que ao usar as expressões “pessoa coletiva pública” e “ato administrativo”, pretendeu restringir o âmbito de aplicação do artigo 179.º do CPA àquelas específicas circunstâncias.

  19. Sendo a entidade demandante uma Empresa Municipal, é inequívoco o seu interesse em agir, sendo a ação nos Tribunais Administrativos o meio idóneo para tal fim.

  20. A procedência da exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir determina que a Recorrente veja ser-lhe absolutamente negada a possibilidade de cobrar os valores em dívida! 23. E ao ser proferida depois de longa tramitação processual, na qual o processo foi várias vezes sujeito a escrutínio judicial, fere de morte o princípio da economia processual.

  21. A decisão ora em crise que julgou verificada a exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir, indeferindo...

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