Acórdão nº 002143/21.8BEPRT de Tribunal Central Administrativo Norte, 23 de Junho de 2022

Magistrado ResponsávelHelena Ribeiro
Data da Resolução23 de Junho de 2022
EmissorTribunal Central Administrativo Norte

Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo: I.RELATÓRIO 1.1.

G...EM, pessoa coletiva de direito privado, com o NIPC ... e sede no ... ..., intentou a presente ação administrativa contra AA, pedindo a condenação deste a pagar-lhe as rendas já vencidas, no montante de € 751,34, acrescidas de indemnização pela mora, no montante de € 300,14, juros vencidos, no montante de € 78,67, e juros vincendos à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

Como fundamento da sua pretensão alega, em síntese, que é uma pessoa coletiva de direito privado, de natureza municipal, dotada de personalidade jurídica e de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, que está sujeita à tutela e superintendência da Câmara Municipal ... e tem por objeto, por delegação do Município ... nos termos do n.º 1 do artigo 17.° da anterior Lei n.º 53- F/2006, de 29 de Dezembro e das alíneas a), b), c) e e) do nº1 do artigo 48º da Lei nº 50/2012, de 31 de Agosto, o ordenamento do território e gestão urbanística, a reabilitação urbana, o desenvolvimento da habitação e a promoção do desenvolvimento local no concelho ....

Nessa qualidade, celebrou com o Réu, a 10 de julho de 2012, um contrato de arrendamento com o número .../2012/DPAC.GS, sujeito ao regime previsto no DL 163/93 e nº 166/93 e demais legislação aplicável, pelo qual deu de arrendamento a este, a fração autónoma correspondente ao 2º Direito, Entrada ...1, Bloco 1 do Empreendimento de ..., em regime de propriedade horizontal, de tipologia T3, sito na Rua ..., freguesia ....

A renda anual relativa ao imóvel foi estabelecida em € 647,64 (seiscentos e quarenta e sete euros e sessenta e quatro cêntimos), a pagar em regime de duodécimos mensais de € 53,97 (cinquenta e três euros e noventa e sete cêntimos), até ao dia 8 do mês a que respeitasse, a que acrescia a comparticipação nas despesas das zonas comuns, fixada no montante de € 5,00 (cinco euros).

Acordou-se ainda que que ultrapassado o prazo de pagamento dos valores devidos sem que o mesmo se realizasse, a Autora teria o direito de exigir o pagamento das rendas devidas acrescidas de uma indemnização igual a 15%, no caso do pagamento ser efetuado nos 15 dias posteriores ao seu vencimento ou, no caso de o pagamento não ser feito depois de decorrido o prazo de 15 dias e antes de decorrido o prazo de sessenta dias, a Autora teria o direito de exigir o pagamento das rendas devidas e em atraso acrescida de uma indemnização de 50%.

Convencionaram que esgotados aqueles prazos sem que se procedesse ao respetivo pagamento das rendas devidas e a correspondente indemnização, assistiria à A. o direito de considerar resolvido o contrato de arrendamento celebrado.

Posteriormente, no âmbito do processo de atualização de rendas sociais referentes ao ano de 2018 e de acordo com os critérios legais aplicáveis, a A. notificou o R. da atualização do valor da renda, o qual passou então a fixar-se em € 139,88 (cento e trinta e nove euros e oitenta e oito cêntimos), a partir do mês de abril de 2018.

A mesma notificação referia que, no âmbito da aplicação do regime de atualização faseada do valor da renda, o valor mensal devido ascenderia, a partir de abril de 2019, a € 225,79 (duzentos e vinte e cinco euros e setenta e nove cêntimos).

O R. não procedeu ao pagamento das rendas relativas aos meses de agosto e setembro de 2018 e abril e junho de 2019, nem do valor devido a título de indemnização pela mora no pagamento das mesmas.

Além do mais, a renda referente ao mês de dezembro de 2018 apenas foi paga em maio de 2019, sem que o R. tenha, no entanto, procedido ao pagamento do montante devido pelo referido atraso, que ascendia a 50% da valor da renda.

No dia 9 de setembro de 2019, o R. procedeu à entrega da habitação, de livre vontade e por sua iniciativa.

Naquela mesma data, foi comunicado ao R. que se encontrava em dívida o valor referente aos quatro meses de renda já mencionados, totalizando o montante de € 751,34 (setecentos e cinquenta e um euros e trinta e quatro cêntimos), acrescido do valor devido a título de indemnização pela mora no pagamento das sobreditas rendas que ascende a € 300,14 (trezentos euros e quatorze cêntimos).

O R. nada pagou, nem então, nem posteriormente, pelo que, não tendo cumprido o contrato conforme dispõe o artigo 406.º do Código Civil, assiste à autora o direito de exigir o pagamento do valor em dívida, referente a rendas vencidas, respetivos juros de mora, e à penalização prevista na cláusula 4 do contrato de arrendamento, no montante global de € 1.130,15 (mil cento e trinta euros e quinze cêntimos).

1.2.

Por despacho de 06/10/2021, foi suscitada oficiosamente a exceção dilatória da falta de interesse em agir.

1.3.

A Autora pronunciou-se, pugnando pela improcedência da referida exceção, aduzindo, em suma, que pela sua natureza e forma social, não é uma pessoa coletiva de direito público, nem praticou, porque não pode, nenhum ato administrativo impositivo do dever de pagamento de quantias pecuniárias, razão por que não se lhe aplica o disposto no artigo 179.º do CPA, devendo a ação seguir a sua tramitação normal.

1.4.

Fixou-se o valor da causa em € 1.130,15.

1.5.

Em 04/11/2021, o TAF do Porto proferiu decisão que julgou procedente a exceção dilatória da falta de interesse em agir, constando a mesma do seguinte segmento decisório: «Pelo exposto, decide-se julgar procedente a exceção dilatória de falta de interesse em agir e, em consequência, indeferir liminarmente a p.i..

Custas pela autora.» 1.6.

Inconformada com o assim decidido, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões: «1. Andou mal o tribunal a quo ao indeferir liminarmente a petição inicial apresentada pela Recorrente por entender que existe falta de interesse em agir desta ao recorrer à ação administrativa comum, sob o argumento de que a Recorrente disporia de um mecanismo de autotutela declarativa e executiva, previsto na Lei 81/2014, de 19 de dezembro e no artigo 179º do CPA que lhe permite declarar o seu direito a receber rendas e, em falta de cumprimento voluntário, proceder à sua cobrança coerciva.

  1. Decorre do artigo 179.º nº1 do CPA que a cobrança coerciva de obrigações pecuniárias mediante processo de execução fiscal será possível quando se verifiquem cumulativamente os seguintes pressupostos: i) as prestações pecuniárias sejam devidas por força de um ato administrativo; e ii) estas devam ser pagas a uma pessoa coletiva pública, ou por ordem desta.

  2. Conforme decorre claramente do artigo 1º dos respetivos Estatutos, bem como do artigo 19º n.º 4 do RJAEL, a G...EM é uma pessoa coletiva de direito privado, possuindo autonomia patrimonial, financeira e administrativa.

  3. O facto de uma entidade privada estar habilitada por um ato jurídico público a exercer poderes públicos de autoridade não a transforma numa pessoa coletiva pública.

  4. A distinção entre pessoa coletiva de direito público e pessoa coletiva de direito privado é relevante na medida em que o próprio Código de Procedimento Administrativa continua, em certos casos e disposições legais específicas (como é o caso do artigo 179º CPA), a referir-se expressamente a pessoas coletivas de direito público, mesmo que tal norma se integre numa parte do Código que à partida será aplicável a entes públicos e entes privados, sendo certo que a referida distinção é essencial na definição da titularidade da capacidade de direito público em sentido formal, isto é, a aptidão de uma pessoa para praticar atos administrativos e para celebrar contratos administrativos.

  5. As empresas locais apenas podem ser admitidas a exercer poderes públicos de autoridade mediante habilitação legal expressa (diploma legal, estatutos ou contrato de concessão), nos termos do disposto no artigo 22º do Regime Jurídico do Sector Público Empresarial (DL n.º 133/2013, de 03 de outubro), que elenca taxativamente quis os poderes que as empresas públicas podem exercer, referindo no seu n.º 2 refere que os poderes especiais são atribuídos por diploma legal, em situações excecionais e na medida do estritamente necessário à prossecução do interesse público, ou constam do contrato de concessão.

  6. A G...EM está legal e expressamente habilitada a celebrar contratos de arrendamento sob o regime de renda apoiada, a receber as respetivas rendas, bem como a proceder ao despejo administrativo em caso de incumprimento da obrigação de desocupação e entrega da habitação à entidade detentora da mesma.

  7. A G...EM não está expressamente habilitada a recorrer à execução fiscal para cobrança de valores em dívida, uma vez que inexiste norma legal ou estatutária que a invista nesse poder, que o legislador reservou para as entidades públicas.

  8. O artigo 28º da Lei 32/2016 de 24 de agosto, apenas determina genericamente que “a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada em simultâneo com a decisão do despejo” sem se referir, em parte alguma, à possibilidade de execução coerciva – a qual sempre estaria afastada em concreto, face ao teor do artigo 179º do CPA.

  9. A interpretação extensiva não pode ser utilizada para sustentar interpretações que não tenham um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, conforme decorre do artigo 9º n.º 2 do Código Civil e, muito menos, para sustentar interpretações contra legem, como é o caso da propalada pelo tribunal a quo, que contraria totalmente a letra do artigo 179º CPA.

  10. Se o legislador pretendesse conceder às empresas locais a possibilidade de execução coerciva de obrigações pecuniárias, tê-lo-ia feito, retirando a expressão “pessoa coletiva pública” da norma inserta no artigo 179.º do CPA, o que não fez porque quis intencionalmente reservar a possibilidade de recurso à execução fiscal às pessoas coletivas públicas.

  11. A Recorrente não está a atuar por ordem de uma pessoa coletiva pública ou como sua “delegada”, uma vez que as empresas locais, como é a G...EM, gozam de autonomia...

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