Acórdão nº 01414/06.8BEBRG de Tribunal Central Administrativo Norte, 13 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelLuís Migueis Garcia
Data da Resolução13 de Dezembro de 2019
EmissorTribunal Central Administrativo Norte

Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo: M.M.M.P.S.

(Lugar de (…)) interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF de Braga, que julgou improcedente acção administrativa comum intentada contra o Hospital de (...), S. A.

(Campo da (…)), com vista a efectivar responsabilidade civil extracontratual, no âmbito da prestação de cuidados de saúde.

A Autora termina o seu recurso com as seguintes conclusões: 1.- O tribunal a quo não interpretou correctamente a prova – que se encontra nos autos em sede do processo clínico da A. – no sentido de admitir da existência de intercorrência cirúrgica que foi deliberadamente omitida ou desvalorizada e que determinou nomeadamente a rasura de elementos do processo clínico, ou a ausência de descrição da cirurgia de histerectomia programada e que apontavam para conclusões diferentes das preconizadas pela decisão recorrida e forçosamente para decisão diversa; 2.- O tribunal a quo não interpretou correctamente a prova na medida em que não valorizou a vontade declarada das testemunhas ao serviço da Ré em insistirem da desnecessidade e ausência de utensílios metálicos no decurso da cirurgia programada, no intuito de reforçarem da impossível verificação de qualquer “corte” no decurso da cirurgia; 3.- O tribunal a quo não contemporizou do interesse que as testemunhas ao serviço da Ré sempre tinham num determinado desfecho atento eventual direito de regresso; 4.- O tribunal a quo não interpretou elementos essenciais da prova documental – processo clínico da A. – pois não valorou a medicação que estava a ser ministrada à A. no pós operatório e que era susceptível de camuflar o estado febril da mesma, o que fez com que desvalorizasse as queixas e os sintomas que apresentava; 5.- Ainda que se tratasse de deficiente cicatrização, exigia-se aos serviços da Ré, atento o profissionalismo que em outros momentos lhe é emprestado pelo tribunal a quo, que cuidassem de ser vigilantes, de prevenir, tendente a evitar tal possibilidade, prejuízo que o Tribunal a quo não cuidou de valorizar, num acumular de erro que prejudicou a decisão final; 6.- A razão de entrada na urgência e a espera com diagnostico incerto durante 23 horas – momento é que é intervencionada no (...) – é demonstrador da prevaricação a esse nível, ou seja, os médicos, maxime a Ré, não cuidaram sequer de valorar ou equacionar essa hipótese; falta de cuidado esse que se prolongou desde o pré-operatório/operatório/pós operatório e se manteve e continuou depois da reentrada na Ré pela urgência pois, mesmo nessa altura o cenário que admitiram foi de “gases”; 7.- O Tribunal a quo interpretou erradamente o peticionado – ou denegou a aplicação da Justiça - ao não dar seguimento ao pedido de condenação da Ré também pela deficiente prestação de cuidados pós- operatórios; de facto, não obstante incluir e declarar nas primeiras linhas do Ponto V da sentença, sob a epigrafe Fundamentação Jurídica da pretensão da A. em pedir a condenação da Ré também pela deficiente prestação de cuidados pós operatórios, vem a fls. 21 da sentença menosprezar a factualidade dada como provada referente ao dia 29.10, supostamente porque a A. não abordou a questão por este prisma(!); 8.- O Tribunal a quo aplicou de forma errada a Lei ao não punir a omissão de cuidados verificada no circunstancialismo do dia 29.10, sendo certo que impendia sobre a Ré o dever de praticar o acto omitido – atentas as circunstancias da A. e atento o facto de se tratar de paciente a quem 48 horas antes havia sido dada alta e que havia sido naquele estabelecimento intervencionada – nomeadamente o dever de diagnosticar e tratar a A. de forma urgente e diligente evitando o agravamento do seu estado; sendo notório o nexo de causalidade entre o diagnostico e tratamento célere e a cura da A. ou, pelo menos, entre o diagnostico e o tratamento célere e a redução dos danos da A.; 9.- Impõe a prudência comum de qualquer acto medico ou equiparado, e assim as regras de carácter preventivo nomeadamente resultantes da Lei de Bases da Saúde, que deviam ser tidas em consideração os antecedentes, condicionantes, características da A., sintomas, queixas – tudo conforme se encontra dado como provado – que fosse expectável e exigível que cuidassem de ponderar eventual cicatrização menos própria, inclusive atentas as constatações dos médicos que realizaram a histerectomia e que resultam dos autos em suporte áudio, para onde se remete, da verificação da fragilidade de vasos e da zona visceral e da bexiga, aliás, conforme supra se deixou dito e conforme o próprio corpo da decisão recorrida admite a fls 20 paragrafo II; 10.- Posto isto, é forçoso concluir que a legis artis foi violada nomeadamente no pós operatório imediato e após a reentrada na urgência no dia 29.10 porquanto é categórico que foram negligenciados e portanto incumpridos deveres de cuidado exigidos no âmbito do exercício da actividade profissional dos serviços da Ré que se reconduzem numa deficiente prestação de cuidados de saúde, pelo menos no pós operatório e no que se seguiu à reentrada da A. na urgência; 11.- Se a decisão recorrida admite a fls 20 da verificação de uma maior sensibilização das paredes da bexiga fruto do acto de separação do útero e que tal estado sensível pode determinar ruturas tardias da parede da bexiga aquando do seu enchimento com urina, então, salvo o devido respeito, mais uma vez prevaricaram os serviços da Ré ao não contemplarem de forma preventiva tal possibilidade; o que equivale a dizer que, mais uma vez, o Tribunal a quo configura correctamente a realidade fáctica mas não a comina com a decisão que se impõe – a condenação; 12.- O tribunal a quo degradou o espírito do sistema ao não contextualizar a factualidade que dá como provada nos artigos 27. a 42. que determinam que a A. esteve 23 horas com resultado incógnito e sem tratamento por razões imputáveis apenas aos serviços da Ré quer na demora do atendimento quer na demora e errado diagnostico, operando uma contradição notória entre a matéria de facto provada e a decisão; 13.- A decisão recorrida apresenta, o que resulta do texto da própria decisão, por isso, vicio de contradição entre a matéria dada como provada e a decisão, contradição insanável entre o dispositivo e a decisão, porquanto assente tal factualidade, impunha-se decisão de condenação da Ré ainda que por referencia à verificação de falta de cuidado, ligeireza no que diz respeito ao pós operatório e ao que se seguiu após a reentrada na urgência da Ré no dia 29.10; 14.- Resulta dos autos documentação que impõem fossem dados como provada a matéria descrita nos artigos 3. e 4. dos Factos não Provados, o que sempre aconteceria se o Tribunal a quo interpretasse o processo clínico no que se refere à medicação que estava a ser ministrada à A. no pós operatório que era suficiente para camuflar inclusive o estado febril e, assim também o processamento das temperaturas tiradas á A.

O recorrido conclui: 1-Deve ser rejeitado o recurso no que à impugnação da matéria de facto diz respeito por incumprimento pela Apelante do ónus previsto no artigo 640º do c Pc.

2-Não merece a douta sentença recorrida qualquer reparo no que à matéria de facto dada por provada diz respeito, nem sequer tendo a Autora identificado qual o facto dado por provado, em concreto, que pretende ver revogado ou dado por não provado, muito menos qual dos factos dados por não provados pretende ver dado por provado, com referência a prova concreta, testemunhal ou documental apreciada livremente pelo Tribunal recorrido.

3-A douta decisão recorrida encontra-se devidamente fundamentada e solução de direito não merece reparo.

*O Exmº Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer (art.º 146º do CPTA).

*Após vistos, cumpre decidir.

*Os factos, tidos como provados pelo tribunal “a quo”: 1. A A. trabalhava na área da restauração, auferindo a quantia de € 350,00. (ponto U dos factos assentes) 2. A A. tinha 36 anos sendo uma pessoa sadia. – (ponto T dos factos assentes).

  1. A A. era uma pessoa alegre, simpática e voluntariosa.

  2. Foram detetados fibromiomas uterinos à A. e recomendada a realização de uma intervenção cirúrgica de histerectomia total. - cfr. docs. de fls. 90 dos autos.

  3. Em 22.10.2003 a A. deu entrada no serviço de ginecologia da R., no âmbito de uma admissão programada, para se submeter a uma histerectomia total. – cfr. docs. de fls. 67, 83, 90 dos autos.

  4. Em 23.10.2003 a A. foi submetida uma intervenção cirúrgica de histerectomia abdominal, tendo sido operador o Sr. Dr. F.C., ajudantes o Sr. Dr. D.M. e a Sra. Enf.ª M.P.Q e anestesista o Sr. Dr. A.M.. – cfr. doc. de fls. 72 dos autos.

  5. A A. deu entrada no Bloco Operatório às 10.00 horas. – cfr. doc. de fls. 83 dos autos.

  6. A cirurgia foi realizada sob anestesia geral. – cfr. doc. de fls. 83 dos autos.

  7. A histerectomia realizou-se da seguinte forma: - Desinfeção da parede abdominopélvica; - Colocação dos campos operatórios; - Abertura, mediante incisão com bisturi de lâmina, da parede abdominopélvica por planos; - Colocação de afastador na parede abdominopelvica e afastamento das ansas intestinais; - Laqueamento com pinça, seccionamento e sutura dos vários ligamentos e pedículos vasculares do útero; - Descolamento da bexiga, seguido de seção e sutura da parede superior da vagina e extração do útero; - Verificação da cavidade pélvica; - Encerramento da parede abdominopélvica.

  8. Os médicos cirurgiões intervenientes na cirurgia da A., realizaram inspeção à cavidade pélvica, previamente ao encerramento da parede abdominopélvica, conferindo o estado dos vasos sanguíneos e dos órgãos.

  9. Nessa inspeção não se detetou qualquer laceração ou rutura, designadamente na bexiga, ou perda de sangue.

  10. A intervenção cirúrgica à A. decorreu sem intercorrências.

  11. A A. regressou ao internamento pelas 11.15horas. – cfr. doc. de fls. 83 dos autos.

  12. Em 23.10.2003, após a cirurgia, a A. referia sentir dor elevada e moderada. –...

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