Acórdão nº 00364/19.2BEPNF de Tribunal Central Administrativo Norte, 27 de Outubro de 2021

Magistrado ResponsávelCarlos de Castro Fernandes
Data da Resolução27 de Outubro de 2021
EmissorTribunal Central Administrativo Norte

Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte: I – A Representação da Fazenda Pública – RFP (primeira Recorrente) e a Q., S.A.

(segunda Recorrente) vieram interpor recurso contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, pela qual se julgou parcialmente procedente a impugnação deduzida por esta última e direcionada contra a decisão de indeferimento da reclamação por esta apresentada contra a liquidação adicional de IRC do ano de 2014.

No presente recurso, a primeira Recorrente (RPF) formula as seguintes conclusões: A.

Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial, anulando a liquidação adicional de IRC, com o n.º 2018 8310006804, relativa ao ano de 2014, no montante de € 193.341,97, quanto às correções à matéria tributável decorrentes de correções relativas a períodos tributação anteriores.

B.

A liquidação impugnada tem subjacente, entre outras, a correção à matéria tributável relativa a períodos de tributação anteriores, no valor de €427.418,10, efetuada em sede de procedimento inspetivo, levado a cabo pelos SIT, da Direção de Finanças do Porto, ao abrigo da ordem de serviço OI201706120, de âmbito geral, incidente em sede de IRC, para o ano de 2014.

C.

Na génese da correção efetuada está o não cumprimento do regime de periodização económica previsto no artigo 18º, nº 2 do CIRC, na contabilização de gastos relativos a anos anteriores, que foram lançados a débito numa conta de rendimentos (conta 7881), porquanto grande parte daqueles gastos decorrerem da contabilização dos documentos internos nºs 595, 596 e 653, sem qualquer outro suporte documental que permitisse aferir o sentido de cada lançamento, afetando negativamente os resultados no período de tributação de 2014.

D.

A sentença recorrida considerou como assente a factualidade elencada nas alíneas A) a CC) do probatório, das quais se destaca, por terem relevância para a discussão, os factos levados ao probatório nas alíneas H), K), L), M), W), Y), Z) e BB).

E.

A convicção do Tribunal a quo alicerçou-se na “análise crítica de toda a prova produzida, particularmente na análise conjugada das informações e documentos constantes dos autos e do PA, que não foram impugnados, bem nos factos admitidos por acordo entre as Partes, conforme discriminado a propósito de cada alínea do probatório (cfr. artigo 607.º do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT)”.

F.

O Tribunal a quo, na douta sentença de que se recorre, apesar de constatar que os gastos reconhecidos e declarados no ano de 2014, pela impugnante, não reuniam os pressupostos previstos no nº 2 do artigo 18º do CIRC, concluiu, a final, pela procedência parcial da presente impugnação, considerando que, face à impossibilidade de a impugnante requerer a revisão das autoliquidações dos anos anteriores a 2014, nos termos do art.º 78 da LGT, por já se encontrar ultrapassado o prazo, deve ser feito apelo ao princípio da justiça (artigo 266º da CRP e artigo 55º da LGT), aceitando os referidos gastos, ainda que atinentes a períodos anteriores, anulando os atos de correção da matéria tributável subjacentes, por violação de lei, porquanto materialmente injustos.

G.

Ora, com a ressalva do sempre devido respeito, que é muito, não pode FP conformar-se com o doutamente decidido, como a seguir se demonstrará.

H.

O nº 1 do artigo 18º do CIRC determina que os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica, acrescentando o nº 2, do mesmo preceito legal, que as componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

I.

Decorre assim, do referido preceito legal, uma vinculação para a AT, que em regra, deve aplicar o principio da especialização dos exercícios na verificação das declarações apresentadas pelos contribuintes.

J.

Não obstante, a doutrina e a jurisprudência veem dizendo que o exercício desse poder de controlo pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, deve ser dado prevalência ao princípio da justiça, consagrado no artigo 266º, nº 2 da CRP e artigo 55º da LGT, por forma a impedir que se materialize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição.

K.

E que, nas situações em que não é possível a correção simétrica, “por razões de tempestividade, o custo ainda que indevidamente contabilizado, deve ser aceite, nomeadamente quando a respetiva imputação não tenha resultado de omissões voluntarias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios” (cfr. ac. STA, 19.05.2010, rec. 214/07).

L.

Ora, ancorada no entendimento sufragado pela abundante jurisprudência do STA e doutrina, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo decidiu aceitar fiscalmente os gastos reconhecidos e declarados em 2014, ordenando a anulação parcial do ato de liquidação impugnado e respetiva liquidação de juros, por vicio de violação de lei, na parte respeitante às correções relativas a períodos de tributação anteriores.

M.

Pese embora, no plano jurisprudencial e doutrinal, se defenda que o princípio da especialização deve ceder ao princípio da justiça, nas situações acima enunciadas, salvo o devido respeito por melhor opinião, é entendimento da FP que o caso sub judice não se enquadra no tipo de situações que a aplicação do princípio da justiça pretende salvaguardar, dado que os gastos contabilizados referentes a anos anteriores apenas tinham como suporte documental, documentos internos que não permitiam esclarecer de forma inequívoca os valores contabilizados e o sentido do lançamento.

N.

Aliás, dos factos provados, alíneas K), H), M) e W), dos quais o RIT e o parecer da DRFP deram conta, se infere que grande parte dos débitos lançados na conta 7881- Correções relativas a períodos anteriores, tiveram como suporte documental documentos internos de contabilização, com os nºs 595, 596 e 653, juntos aos autos, (cfr. fls. 48 a 50 do processo administrativo).

O.

Importa salientar ainda, que a impugnante não conseguiu provar a imprevisibilidade ou o manifesto desconhecimento dos gastos em causa, por facto não imputável à sua vontade.

P.

E, à exceção dos gastos relativos aos factos constantes das alíneas Y, Z, e BB do probatório, para os quais a impugnante apresentou justificação para a origem dos mesmos, não logrou provar, nos presentes autos, de forma inequívoca, a origem dos restantes valores contabilizados a débito na conta 7881, que se revelava fundamental para a demonstração da correção dos respetivos registos contabilísticos que pretendia ver reconhecidos em 2014.

Q.

Porém, em matéria de gastos que advenham, ou se contabilizem da decorrência de relações com terceiros, eles deverão ser, em regra, apoiados em documentos de entidades terceiras (neste sentido Acórdão Arbitral, Processo 236/1014-T de 4 de maio de 2015).

R.

Nestes termos, e pese embora o profundo respeito que nos merece o douto entendimento vertido, na douta sentença aqui em apreço, considera a FP, que o princípio da especialização dos exercícios deve ceder perante o princípio da justiça, nas situações em que os gastos se encontram devidamente justificados, obedecem às exigências de contabilidade organizada, que foram indevidamente contabilizados, mas que “a correção simétrica” já não é possível por razões de tempestividade, situações essas que efetivamente se revelam flagrantemente injustas, S.

e não, na situação dos presentes autos, em que os gastos que a impugnante pretendia ver reconhecidos em 2014, respeitantes a períodos anteriores, além de indevidamente contabilizados, estavam injustificados, e apoiados em documentos internos, e sem qualquer prova documental externa que permitisse demonstrar o sentido e a origem dos mesmos.

T.

Ademais, e salvo o devido respeito pelo douto Tribunal a quo, que é muito, entende a FP que não podia a sentença em análise considerar que se estava perante uma situação flagrantemente injusta, pois o ónus de manter a contabilidade devidamente organizada impendia sobre a impugnante, sendo que, aplicar o princípio da justiça no caso em apreço, é ignorar a obrigação, que sobre os contribuintes impende, quantos às exigências de contabilidade organizada e ao mesmo tempo permitir que fiquem de fora do sistema fiscal, inúmeros agentes económicos.

U.

Destarte, neste juízo de ponderação, entre a aplicação do princípio da especialização dos exercícios e o apelo ao princípio da justiça, importa ter em conta este último, na perspetiva dos contribuintes que cumprem as suas obrigações fiscais, que de outra forma seriam discriminados face aos que sistematicamente não as cumprem. Isso sim, seria uma situação injusta! V.

Pelo que o Tribunal a quo não podia concluir, como concluiu, anuláveis, por violação de lei, os atos de correção da matéria tributável respeitantes às correções relativas a períodos de tributação, por materialmente injustos, e consequente anulação parcial da liquidação.

W.

Em conclusão, e face a tudo o que vem exposto, entende a FP, sempre com o devido respeito, que a douta sentença sob recurso padece de erro de julgamento de direito, por errónea interpretação e aplicação do princípio da justiça, plasmado no artigo 266.º da CRP e artigo 55º da LGT.

Termina a Recorrente pedindo que seja julgado procedente o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida.

Por seu turno, a segunda Recorrente contra-alegou concluindo que: I- A decisão recorrida respeitou escrupulosamente na parte objeto do presente recurso o imperativo de proporcionalidade e justiça imposto pelo artigo...

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