Acórdão nº 83/16.1T8ALR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 16 de Maio de 2019

Magistrado ResponsávelANA MARGARIDA LEITE
Data da Resolução16 de Maio de 2019
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: 1.

Relatório O Ministério Público intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra BB, que também usa o nome de BB, solteiro, CC e mulher, DD, EE e mulher, FF, melhor identificados nos autos, pedindo seja anulada a escritura de divisão de coisa comum outorgada pelos réus a 13-11-2013, através da qual declararam dividir em três parcelas um prédio rústico com a área de 10 920 m2 e adjudicar ao 1.º réu uma parcela com a área de 5460 m2, aos 2.º e 3.º réus uma parcela com a área de 2730 m2 e aos 4.º e 5.º réus uma parcela com a área de 2730 m2, e determinado o cancelamento do registo efetuado; a fundamentar o pedido sustenta que, aquando da celebração da escritura, os outorgantes não apresentaram parecer favorável da Direção Regional da Agricultura, que o prédio se destinava a cultura arvense de regadio e que passou a estar dividido em três parcelas de terreno com uma área inferior a 20 000 m2 cada, assim se mostrando o fracionamento contrário à lei.

Os réus contestaram, alegando que o prédio em causa foi objeto de divisão e doação há mais de 20 anos e que, desde então, exerceram a posse sobre a respetiva parcela, que invocam ter adquirido por usucapião; sustentam que se encontram edificadas em cada uma das três parcelas as casas de habitação que descrevem, não constituindo os terrenos circundantes solos aptos para cultura, mas sim os quintais ou logradouros das referidas habitações, o que sustentam impor a improcedência da ação, como tudo melhor consta do articulado apresentado.

Notificado para o efeito, o autor apresentou articulado no qual se pronunciou sobre a matéria de exceção arguida na contestação.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, após o que se identificou o objeto do litígio e se procedeu à enunciação dos temas da prova.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, nos termos seguintes: Em face do exposto, o Tribunal decide julgar totalmente improcedente a presente acção declarativa e, consequentemente, absolver os Réus do pedido.

Custas a cargo do Ministério Público, sem prejuízo das isenções legalmente previstas.

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e substituída por decisão que julgue a ação procedente, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:«1.ºA sentença recorrida ao dar como provado que «24. Os solos circundantes das três parcelas de terreno onde se encontram edificadas 3 casa de habitação melhor descritas supra não são aptos para cultura, constituindo os quintais ou logradouros das referidas casas de habitação.

» está em contradição manifesta com os factos dados como provados nos pontos 2., 3. , 5., 12., 15. e 20. da matéria de facto provada.

  1. De facto, deu-se como provado que os RR procederam à divisão de um prédio rústico com a composição indicada no ponto 2. dos factos provados, que estes por doação verbal entraram na posse de tais parcelas em 1990 e em data não apurada há cerca de 40 anos e que as parcelas resultantes da divisão que adquiriram são compostas de «cultura arvense de regadio, citrinos, pomar de prunoideas e arrecadação agrícola…», onde existe uma casa de habitação em que habitam (pontos 12, 15 e 20 dos factos provados).

  2. Pelo que, não só a natureza rustica do imóvel resulta da prova documental junta ao processo com a PI e designadamente da escritura pública celebrada pelos próprios RR;4.ºComo também se deu como provada a composição das parcelas de terreno em causa como sendo de prédio composto de cultura arvense de regadio, citrinos e pomar de pruneideas.

  3. Assim sendo, não podia dar-se como provado que tal prédio «não tem aptidão para cultura», estando tal facto em manifesta contradição com a prova documental produzida em julgamento e demais factos provados nos pontos 2, 3, 12, 15 e 20.

  4. Ao que acresce, que não é admissível que a construção clandestina de casas de habitação em terrenos rústicos, leve à conversão por decisão judicial da natureza do imóvel em urbano, com a consequente alteração do fim do imóvel.

  5. Sob pena de violação de regras imperativas referentes à proibição de construções clandestinas.

  6. Pelo que, deverá o ponto 24.º dos «factos provados» ser eliminado da sentença.

  7. Ademais, as normas vigentes que visam a proibição de fracionamento de prédios rústicos são normas imperativas que visam a preservação do ambiente, o ordenamento do território e a qualidade de vida,10.ºsão erigidos em normas que defendem os interesses de toda a coletividade e são exemplos de interesses difusos (art. 52º, nº 3, al. a) da Constituição), cuja defesa incumbe ao M. Público.

  8. Na sentença recorrida, conferiu-se prevalência aos interesses dos particulares intervenientes na escritura de divisão, e dando-se como provado que a aquisição das parcelas fraccionadas ocorreu por usucapião, admitindo-se a aquisição por usucapião de prédios rústicos ainda que com violação das normas de proibição de fracionamento, em detrimento das normas imperativas a que subjazem interesses de ordem pública, que proíbem o fracionamento de prédios rústicos.

  9. Tal interpretação não é, porém, consentânea com a regra definida no artigo 9.º do Código Civil, que prevê que na interpretação, deve ponderar-se a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

  10. Na verdade, na ponderação das normas em confronto (por um lado, as normas que regem o instituto de aquisição por usucapião e, por outro lado, as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos), o fulcro da questão está em saber o valor que a posse invocada para aquisição por usucapião tem, se a mesma se impõe mesmo contrariando normas de interesse público de valor constitucional (art. 66.º da Constituição).

  11. A pergunta que se coloca é: os atos de posse baseados num facto proibido pelas leis imperativas de interesse público permitem a aquisição por usucapião?15.ºSufragamos o entendimento que não é assim atualmente - como já se admitia que não o fosse no âmbito do Código de Seabra - «não obstante o artigo 1287.º do Código Civil excluir a usucapião quando haja "disposição em contrário" - no Código de 1867, o artigo 506.º, excluía do objeto da usucapião as coisas "que não forem exceptuadas por lei" - que o seu âmbito de aplicação é mais vasto, não sendo de excluir a usucapião apenas quando uma disposição legal o determine. Mencionava-se já no âmbito do Código de Seabra que a lei consentia exceções implícitas, tal o caso das coisas incorpóreas.»16.ºNa verdade como se referiu supra «A exclusão da usucapião sobre parcelas de propriedade justifica-se quando dela resulte ofensa de princípios de direito público; justifica-se igualmente noutros casos no sentido em que a usucapião, enquanto instrumento legal de aquisição originária de um direito, não pode servir, qual esponja que apaga o ato constitutivo da aquisição derivada da propriedade, para afastar normas imperativas que sujeitam quem adquiriu a coisa por aquisição derivada.»17.ºNão é, destarte, admissível a aquisição por usucapião de parcelas de prédios rústicos resultantes de fracionamento ilegal, por desrespeitar as regras proibição de fracionamento de prédios com a área mínima correspondente à unidade de cultura para a região.

  12. Já que, tal aquisição, contendendo com normas de caráter imperativo, que visam a tutela de interesses predominantemente públicos por traduzirem o reconhecimento jurídico de um bem que, em primeira linha, compete à comunidade, não pode considerar-se eficaz.

  13. Ao decidir em sentido contrário, a Mma Juiz a quo violou o disposto nos artigos 1376.º e 1379.º do Código Civil e Portaria n.º 202/70 de 21/04 (vd. atualmente a Portaria 219/2016, de 09/08) e o artigo 66.º da CRP e o artigo 294.º do Código Civil.

  14. A divisão que os Réus formalizaram através de escritura traduz-se em negócio contrário às normas legais imperativas que proíbem o fracionamento pretendido.

  15. Assim, in casu, quer a divisão operada pela escritura impugnada quer a invocada aquisição por usucapião são ilegais (contrária a normas legais imperativas)22.ºPelo exposto, é manifesto que estando demonstrado nos factos provados na sentença recorrida que os Réus operaram um fracionamento contrário a normas legais imperativas de um prédio rústico, a única decisão compatível com os factos apurados (com a supressão do artigo 24.º da matéria de facto nos termos supra propugnados) é a declaração de invalidade da escritura, bem como da aquisição das parcelas destacadas de forma ilegal por usucapião e consequente cancelamento do respetivo registo.

  16. Nestes termos e nos demais de direito, deve julgar-se procedente o presente recurso e, em consequência, ser a ação intentada pelo Ministério Público ser julgada procedente com todas as consequências legais.» Não foram apresentadas contra-alegações.

Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes: - da impugnação da decisão relativa à matéria de facto; - da violação da proibição do fracionamento do prédio rústico operado pela escritura de divisão de coisa comum e da aquisição por usucapião de cada uma das parcelas de terreno resultantes da divisão do prédio.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

  1. Fundamentos 2.1.

    Decisão de facto 2.1.1.

    Factos considerados provados em 1.ª instância: 1. Os cinco Réus foram outorgantes na escritura pública de divisão de coisa comum lavrada em 13 de Novembro de 2013 no Cartório Notarial de Clara Maria Pereira dos Santos Rodrigues, em Salvaterra de Magos, que consta de fls. 2 a 4 do livro de notas para escrituras diversas n.º 119-A, fazendo-se o 1.º Réu, BB, representar no acto por um procurador.

  2. Em tal escritura os cinco Réus declararam ser os donos e legítimos possuidores nas proporções de ½ indivisa para o 1.º Réu, de ¼...

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