Acórdão nº 397/06.9 PBFIG de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 23 de Janeiro de 2008

Magistrado ResponsávelFERNANDO VENTURA
Data da Resolução23 de Janeiro de 2008
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de CoimbraI. Relatório [1] Nos presentes autos com o nº 397/06.9 PBFIG do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, foi o arguido A...

, condenado como autor material de um crime continuado de burla qualificada, sob a forma consumada, p. e p. nos arts. 217º,n.º 1 e 218º,n.º 2, al. b) C.P., na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; absolvido da autoria material de um crime de burla qualificada, sob a forma tentada, p. e p. nos arts. 22º, 23º,n.º 1, 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. b), todos C.P., condenado como autor material de um crime de roubo, p. e p. no art. 210º, n.º 1 C.P., na pena de 15 (quinze) meses de prisão; absolvido da autoria material de um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P.; e condendo como autor material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos arts. 143º, n.º 1, 146º, n.º 2 e 132º, n.º 2, al. j), todos C.P., na pena de 8 (oito) meses de prisão. Em cúmulo jurídico, nos termos do art. 77º, nºs. 1 e 2 C.P., foi o arguido condenado na pena única de 3 (três) anos de prisão, cuja execução foi suspensa por 4 (quatro) anos, com regime de prova.

[2] Inconformado com essa decisão, veio o magistrado do Ministério Público interpor recurso, com a seguinte síntese conclusiva Transcrição.

: I) Discorda-se da não aplicação, contrariamente ao pugnado na acusação, do instituto da reincidência, uma vez que o Tribunal não indica quaisquer elementos que objectivamente fundamentem a conclusão da matéria não provada de que «não obstante a condenação em pena de prisão efectiva acima aludida no ponto 28 (da matéria de facto provada), não tenha o arguido interiorizado o "aviso" em tal condenação contido», não sendo admissível que o Acórdão se baste na fundamentação genérica de que "por fim os factos dados como não assentes resultaram da falta de produção dos elementos probatórios respectivos".

II) A fundamentação de uma sentença, na parte da matéria provada e não provada, deve indicar factos e enumerar os elementos de prova em que se socorreu para formar a sua convicção e não fórmulas imprecisas como "nada mais se provou", juízos de valor ou conceitos que não dão a indispensável garantia de que todos os factos relevantes que não surgem discriminados na decisão sobre a matéria de facto foram objecto de apreciação nos termos legais.

III) A nosso ver, mal iria a justiça que justificasse o afastamento da reincidência dos arguidos nos crimes patrimoniais apenas pela necessidade de satisfação de proventos económicos dos respectivos agregados familiares: mais valia então que legalmente se excepcionasse a reincidência para tal tipo de ilícitos! IV) O A... vive essencialmente deste tipo de actividade ilícita, habituou-se à prática deste género de condutas e de certo modo especializou-se nelas (recorde-se que além das situações concretamente descritas, a factualidade fixada no art.7 e 12 da matéria de facto), passando a adoptá-las em circunstâncias de repetição e multiplicidade demonstrativas de que a sua prática é por ele olhada como" normal"e desculpabilizante. Se tal postura é relevante para agravar a conduta delituosa por habitualidade e torna difícil por si a contenção desse modo de vida, certo é também que a anterior condenação em prisão efectiva nem por isso o afastou ou dissuadiu do mesmo.

  1. A reincidência não é automática e a mera falta de prova do que o requisito de que a condenação ou condenações anteriores não foram advertência suficiente para o arguido não continuar a delinquir, afastam a sua aplicação. Contudo, tendo em conta a prova produzida, documental e testemunhal, bem como a matéria dada como provada, a questão é, pelo contrário, a ausência de fundamentação convincente ou raciocino lógico e razoável que suporte a convicção do Tribunal recorrido no sentido de afastar a aplicação da reincidência.

    VI) Da acusação resulta a expressa invocação da verificação concreta da reincidência, resultando da fundamentação de facto do Acórdão que o arguido tem vindo a praticar de forma reiterada factos descritos nos pontos 1 a 6, 9 e 10 (burlas com telemóveis) -art.21- que vive também deste tipo de actividade -art.25 — e que à data da prática dos factos o arguido havia já sido julgado e condenado em pena de treze meses de prisão que cumpriu até 24/11/03, pelos crimes de sequestro, roubo e burla-art.28.E compulsados os autos, verifica-se a fls.29 a 41, que tal condenação resultou de sentença proferida e transitada em julgado a 19/03/02 do 1°Juízo deste mesmo Tribunal e que posteriormente, para além deste processo, o arguido já respondeu e foi condenado em pena de multa pelo crime de burla simples no processo comum colectivo n°990/02.9 PBFIG do 3°Juízo (fls.508).

    VII) Para a verificação do requisito da reincidência de que a condenação anterior não constituiu suficiente prevenção contra o crime basta a demonstração de factualismo concreto que estabeleça uma relação entre a falta de efeito de condenação anterior e o novo crime, designadamente que o arguido se vem dedicando à prática de crimes contra o património, sem ter dado provas de pretender abandonar essa actividade delituosa.

    VIII) O Tribunal recorrido julgou de forma incorrecta a questão da reincidência porque de modo infundado e divergente com a matéria factual fixada, que tem de ser avaliada a partir dos dados factuais confirmados e não de juízos de valor ou mera enunciação dos próprios termos legais do referido instituto. Como, tal na medida da pena deveria ter sido levado em consideração o agravamento de um terço no limite mínimo da pena, nos termos dos art. 75 e 76 do C.Penal, pelo que não os aplicando violou o Tribunal a quo tais dispositivos legais.

    IX) O mero aproveitamento de um cenário ou delineação de um plano de actuação de um arguido para levar a cabo uma certa actividade criminosa não é uma situação exterior a ele e reveladora de menor culpa, antes indicia e pelo contrário, o eclodir de factos criminosos por força de uma disposição interior para os praticar, que pode ou não questionar se existe uma única resolução criminosa ou concurso de crimes, mas não inculca de modo nenhum uma menor censurabilidade.

  2. Para que exista crime continuado não basta uma pluralidade de acções violadoras do mesmo tipo de crime ou de várias que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico, sendo ainda necessário que o agente tenha sido influenciado por circunstâncias exteriores que facilitem a repetição dos actos criminosos, pois é este o condicionalismo legal que concorre para diminuir o grau de culpa, ao tomar menos exigível comportamento diverso e uma vez que envolve em si mesmo uma atenuação correspondente (pelo menos relativamente à situação derivada do concurso real).

    XI) O arguido tem idade e condições para desempenhar actividade laboral ou comercial (que aliás de quando em quando executa com a venda de perfumes e roupas), sendo que demonstrou "engenho e arte", nalguns casos até empatia, no contacto com as pessoas que abordou e conseguiu ludibriar, o que evidencia a sua apetência para a actividade de venda comercial directa. Não foi aliás dado como provada qualquer situação preocupante ou de sério risco de sobrevivência financeira do agregado familiar respectivo que estabeleça uma relação causal com o cometimento dos crimes.

    XII) Embora exista uma proximidade temporal entre as diversas condutas e uma repetição de actos criminosos, falta a solicitação exógena, não só facilitadora destes mas ainda significativamente diminuidora da culpa do agente. Tal não se confunde com o grau de ilicitude dos actos, o modo de execução destes e gravidade das suas consequências (a ponderar na medida da pena nos termos do art.71-n°2-alínea a) do CP), mas com a menor culpa unificadora e derivada da mesma situação exterior a sugerir e facilitar as subsequentes repetições.

    XIII) A situação económico-familiar do arguido deve ser levada em conta na determinação da medida da pena (art.71-n°l e n°2-alínea d) do CP), mas não é uma solicitação exógena facilitadora da execução e diminuidora do grau de culpa para efeitos da verificação do crime de continuação criminosa, parecendo claro que dos factos descritos no acórdão resulta a verificação do circunstancialismo previsto no art.30-n°1 do CP e não pode ser afastado o concurso de crimes, como fez o Tribunal recorrido, de forma vaga e inconsistente.

    XIV) No caso, o A...não só não foi "arrastado" para o crime, procurando sim em diversos locais desta cidade os possíveis "compradores" de telemóveis (sem qualquer ligação entre si) e renovando a sua conduta à medida das suas necessidades económicas. Importa aliás ter presente que quando aqueles não acediam ao"negócio" nem por isso o mesmo se inibiu da prática de roubo para obter dinheiro, como sucedeu com a ofendida Sandra Margarida da Cruz Queirós (art.16 a 18 da matéria provada), sendo assim claro que o aproveitamento das potenciais vítimas não se reduz sequer à maior ou menor "receptividade" com que estas aderiam ao "negócio" da aquisição barata de telemóveis.

    XV) O arguido deve ser condenado pela prática de três crimes de burla qualificada, pp. art.217-n° 1 e 218 — n°2 — alínea b) CP e não de um único crime sob a forma continuada, uma vez que esta ultima interpretação viola a regra do disposto no art.30º n°1 do CP, aplicável ao caso em apreço.

    XVI) Tendo-se em conta os critérios do art. 71 do CP e ainda o que se encontra destacado pelo Tribunal quanto às circunstâncias em que os crimes foram cometidos, as consequências pouco graves daqueles e situação pessoal do arguido, entende-se dever ser de aplicar pelo limite mínimo as penas concretas parcelares dos crimes de burla e roubo ou seja as penas de dois anos e oito meses de prisão por cada um dos crimes de burla, quinze meses de prisão pelo crime de roubo, mantendo-se a pena de oito meses de prisão pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.

    XVII) Em cúmulo jurídico, nos termos do art.77-n°1 e 2 da CP...

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