Acórdão nº 343/09.8T2ALD.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 17 de Abril de 2012

Magistrado ResponsávelHENRIQUE ANTUNES
Data da Resolução17 de Abril de 2012
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 1.

Relatório.

B… Lda., propôs, no Juízo de Pequena e Média Instância Cível de Albergaria-a-Velha, da Comarca do Baixo Vouga, contra P… e Banco …, SA, acção declarativa de condenação, com processo comum, sumário pelo valor, pedindo a declaração de nulidade do contrato de empreitada que celebrou com o primeiro demandado e a condenação deste no pagamento da quantia de € 21.780,00, acrescida de juros, à taxa legal desde a citação, até pagamento, e a condenação solidária, do segundo demandado, a pagar-lhe igual quantia, também acrescida de juros, desde a citação até pagamento.

Fundamentou estas pretensões no facto de, no dia 21 de Março de 2009, ter celebrado com o réu P… um contrato de empreitada, pelo preço de € 17.280,00, tendo-lhe entregue, para o pagamento, nove cheques pré-datados, do Banco …, de € 1.920,00 cada, o primeiro para o dia 31 de Março e os restantes para o final de cada mês seguinte, de aquele réu, no dia 30 de Abril, ter abandonado a obra, de ter negociado na errada convicção de que o contrato de empreitada seria concluído no dia 30 de Abril de 2009, pelo que, se estivesse esclarecida de que a empreitada não estaria concluído nessa data, não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou, que, por isso, deve ser considerado nulo, e de aqueles cheques continuarem a ser depositados no Banco … que, apesar de interpelado, não procedeu à sua revogação.

O réu P…, citado editalmente, não contestou. O Ministério Público, citado em representação dele, também não contestou.

O réu Banco …, SA, defendeu-se alegando que, por carta de 23 de Outubro de 2009, a Mandatária do autor, solicitou a revogação dos cheques datados de 31 de Agosto, 30 de Setembro, 31 de Outubro e 30 de Novembro de 2009, por justa causa, com fundamento no vício da formação da vontade de emitir os cheques, tendo respondido que não considerava haver motivo que fundamentasse a oposição ao pagamento dos cheques.

A sentença final da causa - depois de observar que o pagamento dos cheques não pode, com fundamento em vício na formação do contrato, ser recusado durante o prazo de apresentação a pagamento, pelo que a actuação do Banco … ao pagar os cheques se mostra conforme ao direito, que a factualidade dos autos consubstancia uma situação de incumprimento por parte do réu P…, e que estamos não no domínio do erro, mas no domínio das regras do cumprimento contratual, e que é imputável aquele réu incumprimento definitivo, pelo que o credor pode resolver o negócio – condenou o réu P… a restituir à autora a quantia de € 17.280,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, e absolveu o réu Banco …, SA, do pedido.

E esta sentença que a autora impugna por via do recurso ordinário de apelação, no qual pede a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a acção procedente.

A recorrente condensou a sua alegação nestas conclusões: ...

Na resposta, o réu Banco …, SA, depois de obtemperar que apesar da ordem de revogação respeitar apenas a quatro cheques, o pedido formulado contra o Banco abrange a sua totalidade – concluiu pela improcedência do recurso.

  1. Factos provados.

O Tribunal de que provém o recurso julgou provados os factos seguintes: ...

3.

Fundamentos.

3.1.

Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Maneira que, tendo em conta a vinculação temática deste Tribunal ao conteúdo das conclusões da alegação do recorrente e do recorrido e da decisão sob recurso, a questão concreta controversa que importa resolver é a de saber se a sentença impugnada deve ser revogada substituída por acórdão que condene o apelado no pedido.

A resolução deste problema vincula ao exame do contrato ou da convenção de cheque, das condições em que é lícito ao sacador do cheque revogar o cheque ou ordenar ao sacado o seu não pagamento e, enfim, do regime do erro-vício na formação do negócio jurídico.

3.2.

A convenção de cheque, a revogação do cheque e a ordem de não pagamento do cheque.

A abertura de conta e o depósito bancário são operações, rectior, contratos bancários, reservadas a banqueiros (artºs 362 do Código Comercial e 4 e 8 nºs 1 e 2 do RGIC, aprovado pelo DL nº 298/92, de 31 de Dezembro).

As operações bancárias são reguladas pelas disposições especiais respectivas aos contratos que representarem ou que afinal se resolverem (artº 363 do Código Comercial).

As noções de abertura de conta e de depósito bancário devem ser cuidadosamente recortadas e separadas.

A abertura de conta é, muitas vezes, confundida quer com a conta-corrente quer com o depósito bancário. Trata-se, porém, de realidades bem distintas.

A abertura de conta é um contrato celebrado entre um banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos e diversas práticas bancárias[1]. Trata-se de um contrato bancário nuclear ou central, que, embora sem regime legal explícito, constitui a moldura dos diversos actos bancários subsequentes[2].

O contrato de abertura de conta conclui-se pelo preenchimento de uma ficha, pela aposição da assinatura em local bem demarcado e tem por conteúdo necessário uma conta-corrente bancária, como operação associada o depósito bancário e, como elemento eventual, entre outros, o negócio de concessão de crédito por descoberto em conta.

A conta-corrente bancária é uma conta-corrente comum mas celebrada entre o banqueiro e o cliente que se inclui no negócio jurídico mais vasto representado pela conta bancária: através dela fica assente o modo pelo qual a conta é movimentada em termos de débito e de crédito e tem por elemento nuclear o saldo, verdadeiramente autónomo em relação aos créditos que o antecedem (artº 344 do Código Comercial).

Se é perfeitamente admissível a conclusão de um contrato de abertura de conta, com a inerente conta-corrente bancária, sem um depósito inicial, a verdade é que o depósito é uma operação que surge, normalmente, associada a uma abertura de conta: aquando da conclusão deste último contrato, surge para o banqueiro, em regra, a obrigação de receber depósitos bancários.

O depósito bancário, em sentido estrito ou próprio, ou depósito de dinheiro ou disponibilidades monetárias, é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, que dela passa a dispor livremente e se obriga a restituí-la, a solicitação do depositante, nas condições convencionadas (artºs 408 do Código Comercial e 1 do DL nº 430/91, de 2 de Novembro)[3].

O depósito bancário, proprio sensu, é portanto, um depósito em dinheiro constituído junto de um banqueiro, operação que surge sempre associada a uma abertura de conta. Tratando-se de depósitos à ordem, existe uma única convenção, anexa à abertura de conta e que vincula o banqueiro a receber, levando à conta, as diversas remessas feitas a título de dinheiro depositado.

A natureza jurídica precisa do depósito bancário é muito discutida. Alguma doutrina, e sobretudo a jurisprudência[4], considera-o um depósito irregular; outra sustenta que tem a natureza de mútuo[5]; finalmente há quem o encare como figura unitária, típica, autónoma, próxima do depósito irregular[6].

Um outro negócio subsequente à abertura de conta é a convenção de cheque, que tanto pode ser expressa como meramente tácita. Em regra, a convenção de cheque surge associada a um contrato de abertura de conta. Trata-se, porém, de uma convenção autónoma e não um simples acto integrado no negócio mais vasto da abertura de conta.

De forma deliberadamente simplificadora, bem pode dizer-se que o cheque é um documento, em regra normalizado, do qual consta uma ordem de pagamento, dada por um cliente ao seu banco, para que proceda a um determinado pagamento a um terceiro, ao portador ou até ao dador dessa ordem (artº 1, 2 e 12 nº 2 da LUCh)[7].

O cheque enuncia uma ordem de pagamento que se dirige a um banqueiro, no estabelecimento do qual devem existir fundos à disposição do primeiro, em regra uma provisão constituída pelo emitente do título (artº 3 da LUCh). É assim cheque o meio pelo qual se mobilizam fundos, quer em benefício do emitente – cheque a favor do depositante – quer a favor de um terceiro. O cheque pode apresentar-se como título de crédito à ordem quando indica o nome do beneficiário da ordem de pagamento; é então correntemente denominado cheque nominativo, designação, contudo, imprópria, dado que a sua forma de transmissão é o simples endosso (artº 12, 1º § da LUCh). Quando seja ao portador, o cheque transmite-se por simples traditio (artº 5 da LUCh).

O cheque pressupõe, portanto, uma convenção de cheque e uma relação de provisão, de harmonia com a qual o banqueiro deve ter fundos à disposição do emitente do título. Não é necessário que o sacador tenha previamente depositado esses fundos no banco; basta, por exemplo, que este tenha concedido àquele um limite de crédito.

A convenção de cheque é, assim, o contrato, expresso ou tácito, pelo qual o depositante fica com o direito de dispor de uma provisão, por meio de cheque, obrigando-se o banco a pagar o cheque até ao limite da quantia disponível, quer esta...

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