Acórdão nº 389/20.5T8CDN.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 05 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelFONTE RAMOS
Data da Resolução05 de Abril de 2022
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I. Em 12.11.2020, o M.º Público instaurou a presente ação especial de acompanhamento em benefício de AA, nascida a .../.../1968, solteira, residente na Casa de Saúde ..., ..., ..., requerendo a aplicação das seguintes medidas de acompanhamento: a) Representação geral, com dispensa da constituição do Conselho de Família (art.º 145º, n.ºs 2 alínea b) e 4 do Código Civil/CC); b) Limitação do direito pessoal de testar (art.º 147º, n.º 2 do CC). E pediu a publicidade da decisão final por anúncios em sítio oficial (art.º 893º, n.º 2 do Código de Processo Civil/CPC).

Alegou, nomeadamente: a requerida é portadora de um quadro clínico compatível com o diagnóstico de esquizofrenia de tipo paranoide, doença que se manifesta por delírios, alucinações e alterações do comportamento; a requerida não tem crítica para a sua doença, e a necessidade da medicação, o que inviabiliza que possa ter vida autónoma; necessita de alguém que a represente de forma a suprir a sua incapacidade; não há notícia que tenha celebrado testamento vital ou outorgado mandato para gestão dos seus interesses.

Para exercer as funções de Acompanhante indicou BB, ... onde a requerida se encontra.

A ação foi publicitada mediante editais.

Face do teor da certidão negativa de citação, cumpriu-se o disposto no art.º 21º, n.º 2 do CPC (nomeação de defensor oficioso).

O “ACeS” do Baixo Mondego informou que a requerida não possui registo de Testamento Vital, nem procuração para cuidados de saúde.

Procedeu-se à audição pessoal da requerida Junto o relatório da perícia médico-legal (psiquiátrica) - no qual se concluiu que a examinada apresenta o diagnóstico de Esquizofrenia, ao qual se associa um processo de declínio cognitivo, sendo recomendável que continue a beneficiar, como até à data, do apoio, supervisão e cuidados por parte de familiares e/ou instituição para este tipo de casos, bem como de um regular acompanhamento médico-psiquiátrico -, o Mm.º Juiz a quo, ao abrigo do disposto nos art.ºs 138º e seguintes do CC e 891º e seguintes do CPC, decidiu[1] (reproduz-se o segmento injuntivo): «julgo a presente ação procedente e, consequentemente: 1. Decreto o acompanhamento da requerida, AA cometendo ao acompanhante, as seguintes medidas de acompanhamento: 1.1. Representação geral; 1.2. Administração total de bens; Nos termos do artigo 145º, n.º 4 do Código Civil, dispensa-se a constituição do conselho de família.

Nomeio acompanhante, BB, ... onde a Requerida se encontra.

Não se fixa regime de visitas ou de contactos entre acompanhante e acompanhada, uma vez que vivem na mesma residência.

Consigna-se que a maior acompanhada não outorgou testamento vital nem procuração para cuidados de prestação de saúde.

(...) Publicite a presente decisão através de anúncios em sítio oficial - cf. art.º 893º, n.º 2 do Código Civil.

Revisão da presente decisão: Decorridos cinco anos após a data do respectivo trânsito em julgado.

Ponha em alarme.

» Inconformada, a requerida apelou formulando as seguintes conclusões: 1ª - Na origem do presente processo de Acompanhamento de Maior, temos o processo n.º 9873/18...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ... – Juiz ... – Internamento Compulsivo, que sujeitou a Recorrente a um internamento compulsivo, com início no dia 26.12.2019, no Centro Hospitalar .../E..., EPE, por manter em casa 50 gatos, 1 pombo e 1 cão (fl. 19 dos autos).

2ª - O diagnóstico inicial emitido pelo .../E..., EPE aponta para uma Psicose SOE (fl. 17 dos autos).

3ª - Por falta de vagas nos hospitais daquela região de ..., a recorrente foi transferida para a Casa de Saúde ..., em ....

4ª - Tendo o caso sido sinalizado ao M.º ..., este deu início ao presente processo de Acompanhamento de Maior, onde pede como medidas de acompanhamento: a Representação Geral; e a Limitação do direito pessoal de testar, por apresentar um quadro clínico de esquizofrenia do tipo paranoide; e indica como acompanhante a CC, Sra. BB.

5ª - O M.º Público utiliza como prova da doença da Recorrente, uma informação clínica emitida pelo médico psiquiatra da Casa de Saúde ..., que, diferente do diagnóstico de Psicose SOE, diagnostica uma esquizofrenia, enquadrada na categoria F20.0, pela CID-10, 1993 (fls. 4 e 17 dos autos).

6ª - Diferente da esquizofrenia, a Psicose SOE, na maioria dos casos, pode ser tratada com medidas de apoio.

7ª - Na sequência, foi nomeada defensora à recorrente e oferecido prazo de 10 (dez) dias para contestar a ação.

8ª - Por falta de elementos, que não foram disponibilizados atempadamente pela Casa de Saúde ... - ..., a defensora não apresentou a contestação.

9ª - Entretanto, e após insistência da defensora, no dia 23.12.2021, a Casa de Saúde ... enviou informação social, informação do seu médico psiquiatra, informação clínica do Hospital .../E..., EPE e relatório social da recorrente, o qual foi junto aos autos (fls. 15-20 dos autos).

10ª - No dia 06.01.2021, o Tribunal a quo procedeu à audição da requerida/recorrente, tendo determinado que fosse solicitado exame médico ao INML, consignou que o processo passou a ter natureza urgente e determinou que a elaboração e remessa do relatório pericial deveria ser efetuada com a maior brevidade possível, no prazo de 30 dias (cf. fls. 22-23 dos autos).

11ª - Neste mesmo dia, o Tribunal a quo enviou ao INML... todos os documentos necessários para a boa elaboração do relatório, inclusive, informação social, informação do médico psiquiatra da Casa de Saúde ..., informação clínica do Hospital .../E..., EPE e relatório social da recorrente.

12ª - O relatório não foi elaborado no prazo determinado pelo Tribunal a quo, tendo o seu teor sido disponibilizado apenas 11 (onze) meses após, no dia 03.12.2021.

13ª - As peritas que realizaram os exames concluíram que: “embora seja expectável que a examinanda venha a desenvolver um processo de deterioração cognitiva mais grave, a extensão dos seus efeitos não nos surge como suficiente para considerarmos que, em razão dessa situação, esteja totalmente impedida do exercício pleno, pessoal e consciente dos seus direitos e deveres”; “incoerências entre os relatos da examinada e as informações constantes nas peças processuais”, “na generalidade a examinada estará numa fase inicial de um processo de declínio cognitivo”, um “insignificante prejuízo/dano funcional em competências adaptativas” (fls. 81 e 87-88 dos autos).

14ª - Apesar disso, acabam por concluir que: “No entanto, atendendo à evolução e ao impacto que a sua doença de base acarreta, e a que já existe o referido prejuízo a nível cognitivo, surge-nos que poderá beneficiar de medidas de representação especial para a administração de património” e, do ponto de vista médico-psiquiátrico, que “é recomendável que continue a beneficiar, como até à data, do apoio, supervisão e cuidados por parte de familiares e/ou instituição vocacionada para este tipo de casos, bem como de um regular acompanhamento médico-psiquiátrico” (fls. 81-82 dos autos).

15ª - Nenhum dos relatórios elaborados pelo INML... faz alusão ao motivo que levou a recorrente a ser internada de forma compulsiva, nem ao diagnóstico de Psicose SOE, que lhe serviu de fundamento.

16ª - O Tribunal a quo acompanhou a orientação das peritas, prolatando sentença no dia 06.12.2021, e decretando o Acompanhamento de Maior, com medidas de: Representação Geral; e Administração total de bens, nomeando como acompanhante, BB, Superiora e Assessora de Direção da Casa de Saúde ... - ... (cf. fls. 91-92).

17ª - Decreta o regime de acompanhamento, mesmo fazendo referência a “Nessa medida, entendemos, por ora, em face de tal quadro clínico, não limitar a capacidade da requerida quanto ao exercício pleno, pessoal e consciente dos seus direitos e deveres, pois não resulta de forma concludente e manifesta a impossibilidade do respectivo exercício”.

18ª - O processo de Acompanhamento de Maior tem como intuito proteger um indivíduo, que, “por razões de saúde, deficiência ou pelo seu comportamento”, não se mostre capaz de “exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres…”.

19ª - Desta forma, e por ser a limitação da capacidade de um indivíduo uma medida bastante gravosa, não deve e nem pode ser tomada sem prova robusta que conclua pela existência de doença impeditiva da pessoa exercer de forma livre e consciente todos os seus direitos e deveres.

20ª - O relatório médico-psiquiátrico, deve ser bem fundamentado e conter todos os requisitos constantes no n.º 1, do art.º 899º do CPC.

21ª - Temos um relatório que se funda basicamente em outros relatórios e na opinião, eivada de preconceitos religiosos, de uma enfermeira, que não tem em consideração a motivação do internamento compulsivo, que foi uma Psicose SOE (Sem Outra Especificação); que não especifica de forma detalhada quais são os delírios, as alucinações e alteração de comportamento que levaram os peritos a desenquadrar a Psicose SOE e enquadrar na esquizofrenia; não demonstra com clareza se o declínio cognitivo observado se deve à suposta doença ou se está ligado ao internamento que já tem uma duração de 2 (dois) anos, ao excesso de medicamentos ministrados, à ausência de convívio com pessoas saudáveis, que a remete para uma folie imposée ou uma folie induite, que são os efeitos do convívio.

22ª - Os relatórios periciais indicam que “a extensão dos seus efeitos não nos surge como suficiente para considerarmos que, em razão dessa situação, esteja totalmente impedida do exercício pleno, pessoal e consciente dos seus direitos e deveres”, mas, ao recomendarem a manutenção da atual institucionalização, acabam por orientar o Tribunal a quo na violação do disposto nos art.ºs 138º e seguintes do CC.

23ª - Na dúvida, o acompanhamento do maior não deveria ter sido decretado.

24ª - Desta forma, os art.ºs 138º e seguintes do CC deveriam ter sido aplicados apenas se se tivesse assegurada a existência do...

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