Acórdão nº 1047/20.6T8GRD-A.C2 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 18 de Janeiro de 2022

Magistrado ResponsávelMOREIRA DO CARMO
Data da Resolução18 de Janeiro de 2022
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

I – Relatório 1. A., SA, com sede em ..., intentou execução, para pagamento de quantia certa, contra B., Lda, com sede em ..., C., D., E., e Herdeiros de F., todos residentes em ..., com base em contrato de mútuo, no montante de 95.000 €, com hipoteca e fiança, celebrado entre os executados, a primeira como mutuária, os segundo e terceiro como fiadores e principais pagadores, os quarto e quinto como garantes hipotecários, e a H., estando em dívida o valor de 76.695,49 €, de capital (46.800 €), juros vencidos, despesas e taxa de justiça, a que acrescem juros vencidos, tendo a mutuante cedido o seu crédito à exequente. E. deduziu embargos, alegando que a exequente não é parte legítima, por esta não ter comunicado aos executados a invocada cessão de créditos. Mais, a escritura pública dada à execução não é exequível por não estar acompanhada de comprovativo da transferência para a mutuária/devedora da quantia mutuada, pelo que o título executivo é insuficiente, padecendo, ainda, o título de iliquidez.

A exequente contestou, dizendo que a cessão foi comunicada à mutuária/devedora e aos dois fiadores, por carta registada e por eles recepcionada. Ademais, todos os executados autorizaram a cessão de créditos no contrato de mútuo. Que a quantia mutuada foi creditada na conta bancária indicada da mutuária/devedora, conforme doc. nº 5 que junta. Que a escritura pública é documento autêntico e nela a mutuária/devedor reconheceu a dívida proveniente do mútuo. Inexiste iliquidez, pois no requerimento executivo referiu que os executados tinham em dívida 46.800 € do capital mutuado de 95.000 €, e quando entraram em incumprimento até foram interpelados pela mutuante H.. Os embargos devem ser improcedentes.

O embargante respondeu, impugnando o dito doc. Nº 5. * Seguidamente foi proferido saneador-sentença que julgou os embargos improcedentes, e determinou o prosseguimento da execução.

* 2. Na sequência de recurso do embargante, foi proferida decisão singular, pelo presente relator que julgou o recurso improcedente relativamente à questão da ilegitimidade da exequente e anulou oficiosamente a sentença recorrida, relativamente à questão da inexistência/insuficiência, inexequibilidade, inexigibilidade do título, devendo ser proferida uma nova decisão em que elenque a matéria provada. * Seguidamente foi proferido novo saneador-sentença que julgou os embargos improcedentes, e determinou o prosseguimento da execução.

* 3. O embargante recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões: 1)- A Exequente, sem nada a tal propósito alegar, juntou com a sua Contestação o documento 5, que presume demonstrar a disponibilização do quantitativo previsto no título dado à execução; o embargante impugnou o teor de tal documento, por isso que o mesmo não tem qualquer valor processual.

2)- Acresce que o documento 5, junto pela Exequente com a sua Contestação, não demonstra a existência da dívida exequenda pois trata-se de mero print de um aludido extracto de movimentos, dele não constando a origem, nem se é conta corrente do primitivo banco credor ou de outro qualquer banco, pois não tem qualquer timbre ou cabeçalho identificativo do banco a que se reporta.

3)- Tal suposto extracto é um simples documento onde, sobre papel branco, apócrifo, sem nenhuma menção que se reporte à sua natureza, sem identificação do banco primitivo credor, sem qualquer assinatura (seja daquele ou dos executados), timbre ou outra forma de garantir por quem foi exarado, se apuseram letras, números e dizeres.

4)- Tal documento não cumpre, por incompletude e pela forma, não obstante o nome que lhe dá a Exequente, os necessários requisitos para que possa considerar-se um Extracto, com a segurança que lhe é própria, muito menos um demonstrativo da existência de qualquer obrigação por parte dos executados.

5)- Dessa tabela, também não resulta se houve, ou não, transferências de valores, e, em caso afirmativo, por ordem de quem.

6)- Assim, um mero documento sem se saber a sua origem não pode dar ao Tribunal a segurança necessária de que tais operações ocorreram, em que termos e datas, e muito menos qual foi a origem de tais transferências.

7)- E, assim sendo, não podia ter sido dado como provado o circunstancialismo apreendido em 15. dos factos considerados como provados na Sentença aqui em crise -por isso que deve tal circunstancialismo deixar de ser dado como provado.

8)- Mas, ainda que se entenda que o dito documento junto sob o n.º 5 com a Contestação aos embargos de executado (apesar de expressamente impugnado pelo embargante) faz fé nos seus precisos termos, do exame detalhado do mesmo resulta que o valor total creditado ascendeu a € 47.800,00 (e não a € 95.000,00), e que o saldo devedor final (em 2017/10/12) ascendia a € 19.500,00.

9)- E por isso, sem jamais prescindir do que supra se alegou sobre o valor probatório do documento ora em análise, a consideração errónea plasmada em 15. dos factos considerados como provados.

10)- O mútuo bancário, ora em causa, distingue-se de quaisquer outros não apenas por ser celebrado por um banqueiro, como mutuante, agindo no exercício da sua profissão, mas também no que concerne à forma, às taxas de juros e a prazos; outra das suas particularidades é a de poder ser um mútuo de escopo, uma vez que, contratualmente, o mutuário pode ficar adstrito a dar determinado destino à importância recebida; porém, nenhuma destas particularidades retira ao contrato de mútuo bancário as características marcantes do contrato de mútuo na sua expressão civilista.

11)- O empréstimo de uma quantia em dinheiro implica assim a transferência desse dinheiro do mutuante para o mutuário, tornando-se propriedade deste.

12)- Por tudo isto, também no mútuo bancário a efectiva transferência de dinheiro efectuada pelo mutuante é elemento constitutivo ou integrante do contrato, de tal forma que este não existe sem que o banqueiro proceda à entrega efectiva da quantia mutuada, só então nascendo a obrigação do mutuário restituir a quantia mutuada e a respectiva remuneração.

13)- Ora, da factualidade dada como assente nos presentes autos resulta que foi dado à execução um Contrato de Mútuo com Hipoteca e Fiança, no montante de € 95.000,00 (noventa e cinco mil euros)- mas já não pode ser dado por assente que tal quantia tenha sido efectivamente entregue aos aqui executados; e do título dado à execução também não resulta a entrega (aos executados) do dito quantitativo pecuniário.

14)- No caso vertente, não foi alegado, nem pode ser dado como provado, que ocorreu entrega de qualquer quantia pecuniária por força do contrato dado à execução; por conseguinte, ao contrato de mútuo que, como título executivo, serve de base à presente execução falta um dos elementos essenciais deste contrato – a efectiva entrega de dinheiro.

15)- E, assim, se a entrega/disponibilização do montante alegadamente mutuado não resulta do título (e complementarmente nada se alega, nem prova…), o documento dado à execução não se apresenta como constitutivo/certificativo da obrigação que o credor pretende coactivamente realizar – por isso que, salvo o devido respeito e melhor opinião, estamos perante título manifestamente insuficiente, o que deve conduzir à extinção da execução.

16)- De qualquer forma, e sem prescindir, sempre poderia dizer-se que do documento junto pela Exequente com a sua Contestação, sob o nº 5, resulta que foram entregues aos executados quantias determinadas.

17)- A este propósito dir-se-á em primeiro lugar que não cabe ao embargante, nem aos executados, e muito menos ao Julgador, perscrutar em documentos as quantias que presumidamente tenham sido disponibilizadas em cumprimento do título dado à execução, escolhendo o que melhor entenderem –é que, apesar de cada vez mais mitigado, o ónus de alegação das partes ainda consta do art.º 5º do Cód. Proc. Civil.

18)- E, por isso, devia a Exequente complementar a junção de tal documento com a alegação (que, desde logo deveria ter acontecido no próprio requerimento executivo, cf. art. 715.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil) da entrega, em que momento, e por que forma (uma ou mais vezes…), do quantitativo previsto no título executivo – o que a Exequente não fez, antes se limitando a juntar um documento apócrifo.

19)- E, assim, da falta de alegação dos factos que vêm de referir-se resulta que não podem os mesmos ser considerados e muito menos dados como provados (até porque o embargante impugnou o teor do documento do qual presumidamente resulta a disponibilização de tal quantitativo) -donde a procedência dos embargos de executado aqui em apreço.

20)- Na verdade, a Exequente não só não alegou nada no requerimento executivo, como também não o alegou posteriormente, nem sequer esclareceu…, antes se limitando a juntar uma folha de papel com uns dizeres que nada demonstram, nem vinculam quem quer que seja, não se sabendo mesmo quem é o seu autor…; e, assim, o título dado à execução, desacompanhado do extrato que concretiza as operações subsequentes de disponibilização do capital ao mutuário, manifestamente, não tem a virtualidade de se poder perfilar como título executivo - e a inexistência de título executivo implica a extinção da execução.

21)- Não resulta dos factos considerados como provados que tenha sido dirigida qualquer comunicação ao recorrente, e por este recepcionada, dando a conhecer a cessão de créditos apreendida em 2) dos factos provados.

22)- Conforme decorre do artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil, a cessão de créditos só produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada ou desde que ele a aceite; assim, a cessão de créditos deverá ser notificada ao devedor, seja...

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