Acórdão nº 464/19.9T8LRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 08 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelSÍLVIA PIRES
Data da Resolução08 de Março de 2022
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra Como consta do relatório da decisão recorrida e, que aqui se transcreve, a Autora intentou a presente acção declarativa de condenação: Peticionando que seja a R. condenada a pagar à A. a quantia global de € 74.101,10, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos até integral pagamento.

Alega para tanto e em suma, que no âmbito da sua atividade comercial, a Ré comprou à Autora 22 contentores de feijão frade, distribuídos e enviados em três embarques distintos.

Já com a chegada do segundo lote, a Ré reclamou que a carga teria chegado com gorgulho vivo e grãos furados; porém, no seu entender, a Ré não seguiu o protocolo que decorria do contrato assinado entre ambas, limitando-se a enviar fotos não perceptíveis.

Posteriormente, em 9 de Maio de 2018, chega o terceiro lote.

A Ré não procedeu ao pagamento deste lote, tendo a R. dito à A., através de e-mail, que, em virtude do segundo lote ter gorgulho vivo e grãos furados, não podia comercializar o referido produto.

Com esse fundamento, peticionou a R. que pudesse proceder à analise do terceiro lote antes de proceder ao seu pagamento, algo com que a A. não concordou, remetendo para os termos do contrato assinado entre ambas e informando que os contentores não poderiam ficar tanto tempo no porto sem serem abertos, sob pena do seu conteúdo se estragar.

A A., depois de tentar contactar, sem sucesso, o sócio da Ré, decidiu enviar um funcionário do Brasil para Portugal para resolver a situação, suportando assim uma despesa de USD 6.929,20 (o equivalente a €1.645,10).

Na sua óptica, a Ré abandonou a carga no porto, servindo-se de um suposto prejuízo com o segundo lote para não pagar o terceiro, pretendendo com isso aproveitar-se da queda do preço do feijão no mercado.

Invoca assim ter ocorrido um incumprimento contratual definitivo da parte da Ré, peticionando indemnização pelos danos sofridos.

Regulamente citada, veio a Ré contestar.

Começa por reproduzir os termos do contrato por si celebrado com a A., destacando que o transporte corria por conta da A., sendo o pagamento efectuado contra entrega dos documentos.

Sustenta que já com o primeiro carregamento, de 6 contentores, foi detectada a presença de gorgulho, morto e vivo, em vários estágios (adultos, larvas, pupas e ovos), pelo que a R. não descarregou tal carregamento, tendo solicitado, de imediato, à C..., Lda., que procedesse à análise desse feijão, dado que essa entidade possuía certificação de qualidade IFS (International Featured Standards), o que lhe permitia analisar e atestar as características de qualidade do referido feijão.

A entidade em causa veio a concluir, precisamente, que o carregamento se encontrava contaminado, o que foi comunicado à Autora.

Tendo a Ré apurado que o feijão apenas tinha sido fumigado com 2 g de fosfina por m2, durante 35 minutos, o que é manifestamente insuficiente para a erradicação de insectos – sendo a dose recomendada pela Direcção-Geral de Agricultura e Veterinária de 5,5 g de fosfina por m2.

De igual modo, chegado o segundo carregamento, que foi integralmente pago pela R. à A., este também se encontrava contaminado por gorgulho, facto que foi igualmente constatado pela C..., Lda. e comunicado à A.

Em face do estado em que se encontravam os dois primeiros carregamentos, a R., por email, afirmou junto da A. a sua pretensão de verificar o estado do terceiro carregamento no porto, o que não foi autorizado pela A., que exigiu pagamento antes da abertura dos contentores.

A 2/7/2018, sem prévia informação à R., um representante da A., AA, deslocou-se ao Centro de Empresas do M..., em ..., e solicitou o levantamento dos documentos relativos ao terceiro carregamento, tendo o M... perguntado à Ré se o poderia fazer, no que a Ré anuiu.

Ficando, dessa forma, impossibilitada de pagar o preço do terceiro carregamento e de proceder ao levantamento da mercadoria em causa.

Assevera ainda a Ré que o referido AA – que estava em Portugal em trânsito para a Índia - apenas comunicou à Ré que estava em Portugal e se pretendia reunir com os representantes desta no próprio dia 2/7/2018, data em que o colaborador da R. que estava inteirado do assunto não se encontrava em Portugal, pelo que não pode reunir com aquele no dia em causa (2/7/2018).

Conclui a sua contestação pugnando pela total improcedência dos pedidos formulados e absolvição da R. dos mesmos.

Foi proferida sentença que julgou a causa nos seguintes termos: Nestes termos e pelo exposto, decide-se: a) Julgar parcialmente procedente, por provada, a presente acção, condenando-se a Ré R..., LDA., a pagar à A. a quantia de USD 82.500,00, ou seja, €69.690,8322 (sessenta e nove mil, seiscentos e noventa euros e oitenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor para as operações civis, desde à citação até efectivo e integral pagamento; b) Absolver a Ré R..., LDA., do demais peticionado.

* A Ré interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: 1ª- Pela douta sentença recorrida, foi a ação julgada parcialmente procedente, tendo a ré/recorrente sido condenada a pagar à autora/recorrida a quantia de € 69.690,83, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento, correspondente ao preço da terceira tranche de feijão que a autora vendeu à ré e esta comprou àquela por contrato comercial de compra e venda sobre documentos.

  1. - Atento o disposto no art. 5º, nº 1, do CPC, o facto dado como provado na douta sentença recorrida sob o nº 78 – «[o] referido AA restituiu os documentos ao M... de ... no dia 4/7/2018» – não podia tê-lo sido, dado que é nuclear – pese embora, ainda assim, insuficiente – de uma contra exceção relativamente à matéria invocada pela ré nos arts. 83º a 86º da contestação e não foi alegado nos autos, pelo que tal sentença padece da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d), segunda parte, do CPC, devendo esse facto ser tido por não escrito.

  2. - Por outro lado, tendo a autora, no contexto descrito na factualidade provada, perante o impasse então existente, enviado a Portugal um funcionário seu para «desbloquear o problema», e tendo o mesmo solicitado o levantamento dos documentos referentes ao terceiro carregamento de feijão no M..., em ..., o qual, depois de ter perguntado à Ré se podia efetuar essa entrega e esta haver anuído, lhos entregou, o que inviabilizou o pagamento do preço do referido feijão, a obtenção dos aludidos documentos e o levantamento dessa mercadoria por parte da Ré nos termos contratuais, qualquer declaratário normal, colocado na posição desta, depreenderia que a Autora não mais pretendia que ele pagasse o preço, obtivesse os documentos e levantasse a mercadoria em causa, tendo-se desinteressado de manter o negócio nesta parte, o que representava uma desistência inequívoca, categórica e definitiva deste relativamente a essa parcela final.

  3. - Se alguma dúvida pudesse existir quanto a ser este o sentido a extrair do referido levantamento dos documentos relativos ao terceiro carregamento de feijão no aludido contexto, atento o disposto no art. 237º do CC, sempre essa atitude deveria ser assim entendida, dado estar-se perante um negócio oneroso e tal entendimento conduzir ao maior equilíbrio das prestações, uma vez que a Ré já havia pago à autora mais de 72% (€ 182.617,48) do total do preço desse negócio, para nada, dado que o feijão que esta lhe fornecera estava estragado.

  4. - Por conseguinte, ainda que se considere que a Ré se encontrava em mora, o que, pelo que adiante se dirá, não se concede, tendo em conta quadro referido, não pode deixar de se concluir que a Autora, pese embora tacitamente, mas de forma clara e categórica, manifestou àquela que não mais pretendia que o contrato em causa fosse cumprido por qualquer das partes relativamente ao terceiro e último carregamento de feijão, não querendo que a Ré lhe pagasse o preço de tal carregamento, nem tencionando facultar a esta os respectivos documentos e, consequentemente, esse feijão, tendo assim ocorrido incumprimento definitivo do contrato, na modalidade de recusa antecipada ou, talvez melhor, de incumprimento definitivo ipso facto, por parte da autora, pelo que não assiste a esta o direito a haver da ré o montante do referido preço.

  5. - Foi justamente por isso que na contestação a Ré concluiu que, ante o incumprimento definitivo da Autora, não devia ser condenada a pagar a esta o preço do terceiro carregamento de feijão.

  6. - Mostrando-se inócuo, ainda que não seja tido por não escrito, o facto de o sobredito funcionário da autora, que esta enviou a Portugal para resolver o assunto, dois dias depois de ter levado do M... os documentos relativos ao terceiro carregamento de feijão, ter tornado a entregá-los a este Banco, uma vez que não foi alegado pela Autora, nem ficou provado, que a ré tenha sabido dessa restituição e, portanto, que aqueles documentos voltaram a estar aí para serem pagos e levantados, podendo esta fazê-lo.

  7. - Mas mesmo que assim não se entendesse, sempre seria de considerar que, no descrito contexto, o referido comportamento da autora, conjugado com a anuência da Ré, manifestada a solicitação do M... e perante este, para que o funcionário daquela levasse os documentos referentes ao terceiro carregamento de feijão, representou uma revogação tácita, por mútuo acordo, do contrato em apreço, relativamente a este carregamento.

  8. - Consequentemente, deve a douta sentença recorrida ser revogada e a ré absolvida dos pedidos.

  9. - Ainda que assim não se entenda, o referido levantamento dos documentos relativos ao terceiro carregamento de feijão no descrito contexto gerou na Ré a convicção de que a Autora não mais pretendia que ela recebesse esses documentos e, consequentemente, o respetivo feijão, nem que pagasse o preço de tal mercadoria, tendo-se desinteressado de manter o negócio em apreço e dando-o sem efeito no que concerne a essa (última) dimensão do...

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