Acórdão nº 559/19.9T8GRD-D.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 13 de Novembro de 2019

Data13 Novembro 2019
ÓrgãoCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra I – Relatório C (…) SA, com sede em (...) , intentou acção especial de insolvência contra A (…), com residência (…) (...) , pedindo que se decretasse a sua insolvência.

Citado, veio o A (…) requerer a “exoneração do passivo restante”, ao abrigo dos art. 235.º e ss. do CIRE; mais exactamente, apresentou requerimento com o seguinte teor (transcrição integral): “Para o efeito, vem expressamente declarar que preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos constantes do Capítulo I, Título XII, do CIRE”.

Tendo sido declarado insolvente por sentença proferida em 14/05/2019, transitada em julgado, e prosseguindo os autos, tendo em vista a requerida exoneração do passivo restante, foi o requerente (na exoneração) convidado a juntar o seu CRC (o que fez) e a pronunciar-se quanto às despesas mensais, tendo este dito que “vive em casa da filha (…), [com quem] divide as despesas de água e saneamento, energia eléctrica e gás, contribuindo com € 150,00 mensais para o efeito. Com alimentação, higiene e limpeza, gasta aproximadamente € 250,00. Tem ainda a sua participação na manutenção da filha mais nova, com a qual participa com a ex-mulher em € 400,00. Tais valores ultrapassam o seu rendimento actual, contando o insolvente com a ajuda da sua progenitora para viver (…). Pensa-se que, pela exposição supra, fica demonstrado que, neste momento, não tem rendimento disponível para entregar ao Sr. Fiduciário (…)” Entretanto, o AI, no Relatório do art. 155.º do CIRE, havia referido que o requerente “exerce funções de gerente na empresa Têxtil M (…) SA, auferindo o vencimento mensal líquido de € 601,00”, “que o agregado familiar é composto pelo próprio e uma filha, S (…) estudante de direito em (...) ”, que “as causas para a situação de insolvência emergem das responsabilidades que assumiu como avalista de vários financiamentos concedidos a empresas de que era sócio-gerente”, que, “no que se reporta a despesas, o insolvente encontra-se a morar numa casa de família, (…) e indicou de despesas o montante de € 800,00, a saber: alimentação, 250,00; água, gás e electricidade, € 150,00; e despesas com os estudos da filha, € 400,00”; e que, “no que concerne à exoneração do passivo restante, cumpre dizer que, dos elementos disponibilizados, não foram encontrados quaisquer indícios de que a ora insolvente pretendesse prejudicar os credores, não havendo assim nada a opor ao pedido”; tendo anexado o inventário e a lista provisória de credores, segundo a qual o total de créditos ascende a € 10.456.950,41.

Após o que, na Assembleia de Apreciação do Relatório, o M P, em representação da Autoridade Tributária, declarou nada ter a opor ao pedido de exoneração do passivo restante; a credora I (…)(mãe do devedor) votou a favor; o credor N (…) votou contra; e a Segurança Social absteve-se.

Conclusos os autos, a Exma. Juíza considerou não existir motivo legal para o indeferimento liminar de tal pretensão do devedor/insolvente e, entre outras coisas, veio a determinar que, durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível – tudo o que o devedor aufira e que exceda por mês o valor correspondente à remuneração mínima garantida em Portugal – se considera cedido ao fiduciário nomeado (o AI).

Inconformada com tal decisão, de admissão liminar do pedido exoneração do passivo restante, interpõe a credora S (…)SA, com os sinais dos autos, o presente recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outro que indefira liminarmente o pedido de exoneração.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões: (…) Não foram produzidas quaisquer contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

* II – Fundamentação Não será supérfluo começar por referir que o instituto, inovador, da “exoneração do passivo restante” significa a extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento[1].

“Depois do processo de insolvência e durante algum tempo, os rendimentos do devedor são afectados à satisfação dos direitos de crédito remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção dos créditos que não tenha sido possível cumprir por esta via, durante tal período”[2].

Antevendo-se o “sobressalto” que uma tal causa extintiva de obrigações produz sobre a liberdade contratual e a força vinculativa dos contratos[3], não pode a “exoneração” ser concedida ad libitum; devendo antes a sua concessão estar dependente da verificação de requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém[4].

Diz-se a tal propósito, no preambulo do CIRE, que “ (…) o código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica. (…)”.

Tem pois o instituto em causa como escopo a extinção das dívidas e a libertação do devedor e como ratio a ideia de não inibir todos aqueles – honestos, de boa-fé e a quem as coisas correram mal – “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores[5].

É pois uma medida (de protecção do devedor) que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor do devedor para se desresponsabilizar, uma medida cuja força atractiva/tentadora para o devedor não pode conduzir a “abusos de exoneração”; sendo antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar ou que, pelo menos, não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.

Ou seja: A exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade”[6].

A “exoneração” não se pode/deve...

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