Acórdão nº 3361/18.1T8VIS.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 23 de Novembro de 2021

Magistrado ResponsávelVÍTOR AMARAL
Data da Resolução23 de Novembro de 2021
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório 1.ª – M...

, 2.ª – F...

, e 3.ª – J...

, todas com os sinais dos autos, intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “A..., Portugal, Companhia de Seguros de Vida, S. A.

”, também com os sinais dos autos, pedindo que:

  1. Se declare «válido o contrato de seguro de vida celebrado entre a 1.ª autora, M (…) e o seu marido, J..., com a ré (…), em vigor desde 20/12/2009, a que correspondem as apólices n.º ...»; condenando-se a R.

  2. «a pagar o capital em dívida ao Banco P..., S. A.; capital esse que à data do óbito de J..., ocorrido em 31/01/2017, era de 32.082,56 € (…)»; c) «a pagar o remanescente do capital em dívida de 32.917,44 € às autoras, cônjuge e descendentes da pessoa segura e já falecida, J...»; d) «no pagamento às autoras dos juros moratórios vencidos e vincendos sobre o capital seguro até efetivo e integral pagamento, à taxa legal de 4%, perfazendo os vencidos» até à da entrada da petição inicial em juízo «3.732,60€».

    Para tanto alegou, em síntese, que: - no quadro de um crédito bancário à habitação, em que a 1.ª A. e o seu falecido marido, J..., eram mutuários, estes celebraram um contrato de seguro de vida, em 06/09/2000, em que o banco credor assumiu a qualidade de beneficiário irrevogável, seguro esse que foi substituído por outro em 20/12/2009, o qual viria a ser acionado por morte do aludido J..., vítima de doença terminal (tumor no pâncreas), cujo óbito ocorreu em 31/01/2017; - embora tenham cumprido a obrigação de pagamento do prémio de seguro e o falecimento se tenha devido a causas naturais, a R. não pagou ao banco beneficiário, como devia, o valor do capital ainda em dívida no âmbito do contrato de mútuo, garantido, além do mais, pelo seguro de vida; - nem pagou às AA. o remanescente do capital que tal seguro cobria.

    Contestando, a R. defendeu-se: - alegando que a sua falta de pagamento foi justificada pela circunstância de se dever considerar nulo o contrato de seguro de vida, no que à pessoa do falecido J... respeita, por este ter omitido intencionalmente, aquando da sua adesão ao contrato de seguro, na respetiva proposta de seguro, informações relevantes quanto ao seu estado de saúde (ocultou que já tinha sido submetido a cirurgia e que era um doente transplantado), as quais, se tivessem então sido conhecidas pela R., a levariam a não celebrar o contrato de seguro (cfr. art.ºs 25.º a 27.º da contestação); - assim pugnando pela improcedência da ação, com a absolvição da demandada dos pedidos formulados.

    No exercício do direito ao contraditório, as AA. negaram que o falecido J... tivesse omitido intencionalmente qualquer informação, impugnando a proposta de seguro, que não teria sido preenchida por aquele no que se reporta ao questionário clínico, sendo que não foram dele conhecidas partes daquela proposta de seguro.

    Na sequência, a R. pediu a condenação das AA., como litigantes de má-fé, em multa e indemnização, invocando conhecerem estas a falsidade do que alegaram quanto ao preenchimento e conhecimento integral da proposta de seguro.

    Proferido despacho saneador e definidos o objeto do litígio e os temas da prova, procedeu-se depois à realização da audiência final, a que se seguiu a sentença, esta com dispositivo absolutório: foi julgada improcedente a ação, com total absolvição da R. dos pedidos ([1]).

    De tal sentença absolutória vieram as AA. interpor o presente recurso, apresentando alegação e formulando as seguintes Conclusões ([2]): ...

    A R. contra-alegou, pronunciando-se sobre as questões suscitadas em sede de recurso e pugnando pela total improcedência do mesmo, com a decorrente confirmação da decisão impugnada.

    O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

    Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

    II – Âmbito recursivo Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais, como é consabido, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]) ([4]) –, importa saber, no essencial ([5]):

  3. Se está consubstanciada causa de nulidade da sentença – o invocado vício de excesso de pronúncia (cfr. conclusões 29.ª e segs. das Apelantes); b) Se ocorre contradição entre factos dados como provados e erro de julgamento quanto ao ponto 44 do factualismo julgado provado, este a dever ser julgado como não provado (conclusão 10.ª); c) Se não foi invocada a exceção da anulabilidade do contrato de seguro ou se esta deve improceder, por não demonstrada (conclusões 4.ª e segs.); d) Se ocorre sanação do vício ou caducidade do direito a invocar tal anulabilidade (conclusões 20.ª e segs.).

    III – Fundamentação

    1. Nulidade da sentença Do excesso de pronúncia Invocam as Recorrentes que a sentença enferma de vício de nulidade, por ter incorrido em excesso de pronúncia ao avançar para o conhecimento da matéria – exceção – da anulabilidade do contrato de seguro, matéria essa que, não sendo de conhecimento oficioso, não foi, a seu ver, suscitada/alegada pela R./Recorrida.

      A contraparte, em resposta, pugna pela improcedência desta argumentação das Apelantes, invocando ter alegado a matéria em causa, de molde a ter deixado, na sua contestação, deduzida adequadamente essa exceção.

      Vejamos.

      No campo das invalidades do negócio jurídico, a anulabilidade tem de ser invocada por quem tiver legitimidade para tal – as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece –, não constituindo, pois, matéria de conhecimento oficioso (art.º 287.º, n.º 1, do CCiv.), ao contrário da nulidade, que é de conhecimento oficioso (art.º 286.º do CCiv.).

      Assim, enquanto matéria de exceção que aproveita ao réu, cabe a este alegar e provar a factualidade tendente a demonstrar tal vício de anulabilidade (art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.).

      Dúvidas não restam, pois, de que cabia à aqui R., no caso dos autos, a alegação e prova quanto à matéria de anulabilidade do discutido contrato de seguro/adesão, para que, nessa senda, o Tribunal pudesse conhecer da questão.

      Com efeito, nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., é nula a sentença quando o juiz “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

      E, como também é consabido, são as conclusões formuladas pela parte recorrente, com reporte à decisão impugnada, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, devendo, por outro lado, ser respeitada a regra do duplo grau de jurisdição, também em matéria de direito, de molde a não prejudicar o direito ao recurso que assiste às partes, não cabendo ao Tribunal de recurso decidir questões que o Tribunal recorrido não apreciou (criar direito novo), mas sim sindicar a bondade do que haja sido decidido na instância inferior (apreciar o julgado por outro Tribunal).

      Ainda por outro lado, pode ocorrer que as partes, não concordando com o sentido da decisão proferida, venham invocar omissão ou excesso de pronúncia, a falta de decisão devida ou o extravasar para decisão indevida, para obterem um diverso veredito, uma inversão da decisão judicial proferida.

      Em tais casos, porém, o que pode ocorrer é uma divergência face ao sentido decisório adotado, o que se prende já, não com os vícios formais da decisão (nulidades da sentença), mas com o mérito da mesma, com o fundo da questão, o que já encerrará matéria de direito, prendendo-se com um eventual erro de julgamento de direito.

      Acresce ainda que, como vêm entendendo, de forma pacífica, a doutrina e a jurisprudência, somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista no aludido preceito legal.

      De acordo com Amâncio Ferreira ([6]), “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”.

      E, segundo Alberto dos Reis ([7]), “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

      Já Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes ([8]), por sua vez, referem que “a observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão”, sendo que “por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.

      Por seu turno, Antunes Varela ([9]) esclarece, em termos de delimitação do conceito de nulidade da sentença, que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.

      Na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender conhecer de questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não se tratar de questões de que...

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