Acórdão nº 2749/09.3TBVIS.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 09 de Fevereiro de 2021

Magistrado ResponsávelFONTE RAMOS
Data da Resolução09 de Fevereiro de 2021
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Sumário do acórdão: 1. A Relação poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

  1. Na vida rural da segunda metade do séc. XX, sobretudo, a partir da década de 70, passaram a ser utilizados modernos instrumentos de trabalho, designadamente, tractores e outras máquinas agrícolas, com o progressivo desaparecimento dos meios rudimentares do passado em que o gado domesticado desempenhava papel fundamental.

  2. Tal realidade, também presente no meio rural do concelho de Viseu dos anos 60, 70 e 80 do séc. XX - a utilização do tractor teve um grande impulso na década de 70, acentuando-se nas décadas seguintes, à medida que desaparecia por completo (ou quase) a utilização de animais nos trabalhos agrícolas (ao ponto de, hoje, e desde há vários anos, dificilmente se poder encontrar aldeia, povo ou lugar onde ainda exista uma junta de bois!) -, permite fazer alguma (mas suficiente) luz sobre o caso sub judice, e é fundamental para a correcta apreciação e valoração da prova pessoal, afirmando a factualidade com maior grau de verosimilhança e mais próxima do “curso ordinário das coisas”.

  3. Numa visão hodierna e razoável da problemática do conteúdo das servidões de passagem, constata-se e afirma-se que, hoje em dia e desde há várias décadas, para colher e fruir todas as utilidades dos seus prédios (seja qual for a natureza deles) as pessoas passam a pé e mediante a utilização de tractores, máquinas agrícolas e outros veículos motorizados, mesmo em meios rurais. * Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I. Em 08.9.2009, A (…) e mulher T (…), M (…), P (…), F (…) e mulher P (…), A (…) e mulher C (…), por si e na qualidade de representantes da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de R (…) e J (…) instauraram a presente acção de processo comum contra J (…) e mulher J (…) e J (…) pedindo a condenação dos Réus a: a) reconhecerem e respeitarem que os prédios identificados nos art.ºs 2º e 3º da petição inicial (p. i.) pertencem à herança aberta por óbito de R(…) e J (…) b) reconhecerem que os AA. são co-proprietários desses prédios; c) os 1ºs Réus, à sua conta e no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença: i. retirarem todos os objectos e animais descritos em 22º e 23ºda p. i., bem como o lixo que vêm depositando na parte sul e poente do prédio identificado no art.º 2º da p. i.; ii. retirarem a malha de aço identificada em 24º da p. i.; iii. demolirem as paredes poente e norte da sua casa na parte ligada a cimento e que ocupa os muros em pedra de vedação dos prédios identificados em 2º e 3º da p. i.; iv. retirarem a parte da parede norte da sua casa que invade o prédio identificado no art.º 3º da p. i.; v. retirarem o portão colocado na entrada poente do prédio identificado no art.º 2º da p. i.; vi. a não mais invadir com animais, objectos ou materiais ou a passar de carro pelo prédio identificado em 2º da p. i.; d) indemnizarem os AA. na quantia global de € 7 500, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhes causaram, acrescida de juros de mora até integral liquidação; e) ser declarado nulo e sem qualquer efeito o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre os Réus e que incidiu sobre o prédio ou parte do prédio identificado no art.º 2º da p. i..

    Alegaram, em resumo: os falecidos R (…) e J (…) eram donos e legítimos possuidores dos prédios que identificaram em 2º e 3º (inscritos na matriz sob os art.ºs 238 e 235, respectivamente) e que integram a herança ilíquida e indivisa dos falecidos; os 1ºs Réus são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 15º - inscrito na matriz sob o art.º 237 - e que para acederem, a pé, ao prédio deles sempre atravessaram o seu (da herança) prédio/art.º 238 pela passagem com cerca de 40 m de comprimento e 80 cm de largura, sentido poente-nascente e em linha recta até à entrada nascente do prédio art.º 237; os 1ºs Réus invadiram os limites poente e sul do prédio 238, numa área de cerca de 1400 m2, arrancando árvores - corte que lhes causou um prejuízo de cerca de € 5 500 - e desta forma alargando o caminho para cerca de 4 m de largura em toda a extensão, altura em que também alargaram a abertura, colocando portão com essa largura; nessa mesma faixa de terreno os 1ºs Réus vêm depositando os objectos identificados em 23º, tendo também colocado malha de aço por cima do muro indicado; os 1ºs Réus construíram, há cerca de 2 anos, uma casa de habitação no limite poente do seu prédio, usando para tanto os muros de vedação indicados, avançando em cerca de 30 cm de largura e 2, 5 m de altura e numa extensão de cerca de 3 m a parede norte da casa para dentro do prédio inscrito sob o art.º 235; estes comportamentos dos 1ºs Réus têm-lhes causado desgostos e mágoa; os Réus celebraram entre si contrato-promessa de compra e venda cujo objecto é uma parcela do prédio inscrito sob o art.º 238, aí figurando como promitente vendedor o 2º Réu - filho dos falecidos R (…) e J (…) e irmão e cunhado dos AA. - e promitente compradores o 1º Réu, sabendo todos os Réus que os prédios em causa não haviam sido partilhados, fazendo constar o contrário do contrato.

    Os 1ºs Réus contestaram e deduziram reconvenção. Impugnaram o direito de propriedade sobre os imóveis afirmando que o 2º Réu lhes prometeu vender o imóvel dos autos, arrogando-se perante si como seu legítimo possuidor, tendo-lhes o mesmo conferido a posse mas apenas de uma área de cerca de 460 m2 e que possuem desde a outorga de tal contrato; admitindo serem proprietários do prédio 237 e que sempre ao mesmo acederam ao mesmo pelo terreno 238, negam já que a passagem em causa fosse apenas de pé, dizendo que também por aí acediam de carro de bois e de tractor e que a mesma tem a largura de 2,5 m em toda a sua extensão e que no início do caminho sempre existiu uma abertura com um portão em ferro e cancela em madeira com cerca de 4 m de largura; após terem entrado na posse do imóvel substituíram a cancela de madeira por um portão em ferro e arranjaram o caminho, melhorando o prédio em causa, nele desenvolvendo os actos descritos nos art.ºs 28º e seguintes da contestação; colocaram a rede em arame no prédio, para protecção da bicharada; reconstruiram um barracão que já existe há mais de 50 anos na propriedade, dentro dos limites do seu prédio; o muro de suporte de terras sito a norte do seu prédio pertence-lhes exclusivamente.

    Em sede reconvencional, invocaram o direito de propriedade sobre o prédio do art.º 237, reiterando que para se aceder ao mesmo sempre passaram, a pé, de carro de bois e tractores, pelo prédio 238, por uma faixa de terreno com cerca de 40 m de comprimento e 2,5 m de largura, sendo este o único acesso ao seu prédio, que por si é usado para tratar do mesmo, invocando seguidamente e de forma expressa a aquisição, por usucapião, de servidão nos termos alegados; procedendo a acção, devem ser indemnizados pelas despesas por si suportadas com o prédio e pelas benfeitorias que aí introduziram, no montante de € 2 125. Terminam pedindo a sua absolvição dos pedidos contra si deduzidos e a procedência da reconvenção com a consequente condenação dos AA./reconvindos a: a) reconhecê-los como donos e legítimos possuidores do prédio inscrito na matriz sob o art.º 237; b) reconhecerem que o prédio inscrito na matriz sob o art.º 238 se encontra onerado com uma servidão de passagem de pé, carro de bois e tractor a favor do prédio inscrito sob o art.º 237, com as dimensões que descreveram; c) respeitarem o direito de servidão de passagem dos Réus e a absterem-se de violar ou impedir tal passagem. Sem prescindir, e em caso de procedência parcial da acção, pediram ainda a condenação dos AA. a pagar-lhes a quantia de € 2 125, a título de indemnização devida pelas despesas e benfeitorias introduzidas no prédio.

    Respondendo, os AA./reconvindos mantiveram o alegado na p. i., impugnando não só as áreas da passagem que os 1ºs Réus invocaram como ainda que essa passagem fosse feita de carro de bois e tractor. Impugnaram as alegadas melhorias e invocaram a má fé dos Réus contestantes, pedindo a sua condenação a este título, pedido a que os 1ºs Réus se opuseram, “aproveitando” para formular idêntico pedido de condenação dos AA..

    No seguimento da comunicação do falecimento da Ré, foi declarada a suspensão da instância, por despacho de 17.5.2011, que se manteve até 03.5.2018 (fls. 149, 187 e 192)![1] Foi proferido despacho saneador, que identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

    Foram apresentados e admitidos os meios probatórios, e junto o relatório de peritagem de fls. 266.

    Realizada a audiência de julgamento, a Mm.ª Juíza a quo, por sentença de 30.01.2020, julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:

    1. Condenar os 1ºs Réus a reconhecerem e respeitarem que os prédios identificados em 2. a) e 2. b) dos factos provados integram e pertencem à herança aberta e indivisa deixada por óbito de R (…) e J (…). b) Condenar os 1ºs Réus a retirarem todos os objectos, animais e lixo que tenham depositado na parcela de terreno indicada em 11. dos factos provados. c) Condenar os 1ºs Réus a retirarem os tubos de lusalite e rede de arame indicados em 16. dos factos provados. d) Condenar os 1ºs Réus a retirarem o portão indicado em 14. dos factos provados. e) Condenar os 1ºs Réus a não invadirem com animais, objectos ou materiais o prédio descrito em 2. a) dos factos provados e a não passarem de carro por este mesmo prédio. f) Condenar os 1ºs Réus a entregarem aos AA., na qualidade de representantes da herança aberta por óbito de R (…) e J (…) e a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos com o corte de árvores no prédio indicado em 2. a), a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, com o limite máximo de € 7 500. g) Absolver todos os Réus dos demais pedidos contra si formulados.

      E julgou a reconvenção parcialmente procedente e, em...

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