Acórdão nº 4166/19.8T8LRA-C.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 13 de Julho de 2020

Magistrado ResponsávelMARIA CATARINA GONÇALVES
Data da Resolução13 de Julho de 2020
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I.

M (…) e marido A (…), residentes (…) , deram início a um processo especial para acordo de pagamento nos termos do disposto nos arts. 222º-A e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que foi concluído sem aprovação do acordo de pagamento.

O Sr. Administrador Judicial Provisório, após ouvir os devedores e os credores, emitiu o parecer previsto no art. 222º-G, nº 4, do CIRE, aí concluindo no sentido de que os devedores se encontram em situação de insolvência actual, requerendo a declaração de insolvência dos mesmos.

Na sequência da notificação que lhes foi efectuada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 222º-G, nº 5, do CIRE, os devedores vieram apresentar requerimento onde sustentam não se encontrarem em situação de insolvência. Alegaram, por outro lado, que são meros garantes em relação ao crédito do N (…) e que os devedores principais (sua filha e genro) instauraram processo especial para acordo de pagamento, requerendo, por isso, a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão final a proferir nesse processo. Para o caso de a insolvência ser decretada, pediram a exoneração do passivo restante Na sequência desses factos, foi proferida decisão – em 11/03/2020 – que indeferiu o pedido de suspensão da instância e decretou a insolvência dos devedores M (…) e marido A (…) Inconformados com essa decisão, os devedores vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões: 1 - Por sentença proferida no Juízo de Comércio de Leiria, J3, pelas 13:45h, do dia 11 de Março de 2020, foi proferida Declaração de Insolvência dos Recorrentes (…) 2 - Os Recorrentes têm, respectivamente, 71 e 72 anos de idade, sendo que o devedor marido padece ainda de deficiência da ordem dos 70%/ com total dependência de terceira pessoa para acompanhamento, em virtude de, no ano de 2003, ter sofrido hemorragia intra-cerebral direita com edema.

3 - O único património que estes possuem, além de um veículo com 26 anos e sem qualquer valor de mercado, é a sua casa: «fracção autónoma, designada pela letra C, correspondente ao Rés do Chão Direito com garagem, destinada a habitação, sita (…) , descrita na CRP de (....) sob o nº 105/ (....) - Fracção C, inscrita no Serviço de Finanças de (....) sob o artigo 10383º da matriz predial urbana da referida freguesia.» 4 - Entre os efeitos da Declaração de Insolvência dos Recorrentes encontram-se os procedimentos tendentes à apreensão e liquidação do património dos Devedores.

5 - É do conhecimento público e, portanto oficioso, que nos encontramos a atravessar um período de emergência de saúde pública de âmbito internacional, declarada pela Organização Mundial de Saúde, no dia 30 de Janeiro de 2020, a qual determinou ao Governo Português a tomada de medidas excepcionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 no pretérito dia 13/03/2020, tendo, no dia 18/03/2020, sido decretado pelo Presidente da República o Estado de Emergência Nacional o qual se mostra executado pelo Decreto nº 2-A/2020 de 20 de Março de 2020 e que se encontra renovado pelo menos até dia 02/05/2020, diplomas através dos quais e, considerando o grupo de maior risco a que os aqui Devedores pertencem pela sua idade e saúde frágil, determinam o seu isolamento profilático e a sua protecção especial.

6 - A sua casa é o único bem que possuem com aptidão para os proteger durante o presente momento de emergência médica internacional e vigência do Estado de Emergência.

7 - Assim e, sem prejuízo das demais questões subjacentes ao presente Recurso - Questão Prejudicial e Solvência dos Recorrentes - para sua protecção, não devem ser, durante o período de tempo em que vigorar o Plano de prevenção, contenção, mitigação da contaminação por Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, ser promovido qualquer procedimento tendente à apreensão e liquidação do seu único bem: a sua casa, sob pena de se violar, entre outros, o disposto no artigo 4º, nº 1, do Decreto 2-A/2020 de 20 de Março que por força do artigo 9º, nº 1, da Lei 1-A/2020 de 19 de Março se sobrepõe ao CIRE.

8 - Acresce que, da lista de credores reconhecidos dos Recorrentes, resulta a existência de apenas um credor expressivo - o N (…), S.A. - relativamente a crédito de que os aqui Recorrentes, são meros garantes da filha e genro, (…).

9 - Os devedores principais, A (…) e S (…) instauraram oportunamente o PEAP nº 4106/19.4T8LRA, o qual corre actualmente termos pelo Juízo de Comércio 2, do Tribunal Judicial de Comarca de Leiria, no âmbito do qual se encontram a tentar estabelecer plano de pagamentos aos seus credores, incluindo o N (…), S.A., relativamente ao crédito de que os Recorrentes são garantes.

10 - Nos termos do artº 272º, nº 1 do CPC, o referido PEAP apresenta-se como causa prejudicial relativamente ao prosseguimento dos presentes autos, atento que se for aprovado e homologado plano de pagamentos que contemple o crédito do referido credor N (…), S.A., os presentes autos perderão toda a sua utilidade.

11 - O artigo 8º, nº 1 do CIRE não pode ser interpretado isoladamente, conforme resulta da sentença a quo de que se recorre, mas sim enquadrado no demais ordenamento jurídico-constitucional em que se insere.

12 - O resultado normativo da sentença que constitui a solução do caso concreto dos autos, não pode, por conseguinte, reconduzir-se a situação que se traduza em verdadeira e manifesta inconstitucionalidade, como se constata.

13 - Ao afastar a possibilidade de suspensão, tout court, ainda que como solução excepcional nos autos, fundada na defesa dos direitos fundamentais dos Recorrentes, o Juiz a quo privilegiou um simples direito de crédito ou obrigacional - no caso não de um universo de credores, mas de um credor em particular, o N (…), SA, que é uma pessoa colectiva privada que não carece de protecção especial - em detrimento de direitos fundamentais dos Recorrentes à habitação e à saúde e protecção na terceira idade dos Recorrentes, o que constitui solução iníqua, desproporcional e inconstitucional.

14 - Pelo que, na justiça e proporcionalidade que se impunham, não deveria ter sido, por ora, proferida a declaração de insolvência dos Recorrentes a qual, de forma desproporcional e censurável os expõe a riscos de saúde e de segurança que, em ultima ratio, colocam em causa o seu direito à vida, devendo como tal ser revogada a sentença e suspensos os autos até decisão transitada em julgado no âmbito do PEAP nº 4106/19.4T8LRA que corre termos pelo Juízo de Comércio de Leiria - J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, para exclusiva salvaguarda dos seus direitos fundamentais à habitação e à saúde e protecção na terceira idade, no que se pugna.

15 - A sentença a quo viola, neste ponto, os artigos 24º, 64º, nº 1, e 2, al. b), 65º, nº 1/ 72º, nº l, da Constituição, o artigo 130º, nº 1, o Artigo 272º, nº l do CPC, pelo que se impõe a sua revogação e sua substituição por decisão que suspenda os presentes autos até à decisão transitada em julgada em julgado a proferir nos autos do PEAP nº 4106/19.4T8LRA que corre termos pelo Juízo de Comércio de Leiria - J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, para exclusiva salvaguarda dos direitos fundamentais à habitação e à saúde e protecção na terceira idade dos Recorrentes.

16 - Finalmente, os Recorrentes não se encontram insolventes nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3º do CIRE.

17 - Os Recorrentes são donos e legítimos proprietários do bem imóvel que constitui garantia bastante à satisfação do crédito do seu único credor expressivo – N (…). - a qual pode ser constituída a favor deste, sem se impor a sua venda e/ou liquidação.

18 - Os Recorrentes não se encontram em incumprimento generalizado das suas obrigações, sendo que os seus rendimentos são suficientes para satisfazer as suas despesas correntes do dia a dia.

19 - A sentença a quo viola, neste ponto, o artigo 3º, do CIRE, pelo que se impõe a sua revogação, o que se requer.

Pelas razões expostas, a sentença de Declaração de Insolvência dos Recorrentes, violando os normativos e diplomas supra expostos, deverá, em qualquer caso, ser revogada, com as legais consequências.

Não foram apresentadas contra-alegações.

///// II.

Questões a apreciar: Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir: - Saber se a situação epidemiológica do novo Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 e as medidas legais implementadas para fazer a tal situação obstam à declaração de insolvência dos devedores ou à apreensão e liquidação da sua casa de habitação no âmbito de processo onde tal insolvência seja decretada; - Saber se o processo especial para acordo de pagamento instaurado pelos devedores principais constitui causa prejudicial relativamente ao processo de insolvência referente aos devedores solidários cuja responsabilidade pelo passivo advém de garantia que prestaram àqueles e se, nessas circunstâncias, deve ser declarada a suspensão da instância no processo de insolvência até ao trânsito em julgado da decisão a proferir naquele processo; - Saber se os devedores (Apelantes) estão (ou não) em situação de insolvência.

///// III.

Na 1.ª instância, julgaram-se provados os seguintes factos: 1º - Os requeridos contraíram casamento católico entre si no dia 28 de Agosto de 1971, sob o regime da comunhão geral de bens.

  1. - O Requerido marido nasceu no dia 23/08/1946, é reformado por velhice, sendo beneficiário de uma pensão no valor mensal ilíquido de 411,05€ e de um complemento por dependência no montante de 105,16€ (tendo por referência os valores pagos no ano de 2019).

  2. - A Requerida mulher nasceu no dia 14/05/1948, é reformada por velhice, sendo beneficiária de uma pensão no valor mensal ilíquido de 281,00€ (tendo por referência os valores pagos no ano de 2019).

  3. - O Requerido marido apresenta deficiência...

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