Acórdão nº 5831/18.2T8VIS-A.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 01 de Junho de 2020

Magistrado ResponsávelEMÍDIO SANTOS
Data da Resolução01 de Junho de 2020
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Processo n.º 5831/18.2T8VIS-A Insolvência Incidente de qualificação da insolvência Insolvência culposa Sumário: I - Os factos previstos alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE fazem presumir [presunção iuris tantum] a insolvência culposa do devedor.

II - O n.º 2 do artigo 186.º do CIRE não só não requer, para qualificar a insolvência como culposa, a prova de que a acção prevista nalguma das suas alíneas causou ou agravou a insolvência e/ou a prova de que o administrador actuou com dolo ou com culpa grave, como veda a prova de que a acção em questão não causou ou agravou a situação de insolvência, bem como veda a prova de que os administradores não actuaram com dolo ou com culpa grave.

III – Quando na alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º se faz menção “à obrigação de manter contabilidade organizada” tem-se em vista a obrigação que impende sobre todo o comerciante de ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei (artigo 29.º do Código Comercial) e a obrigação fiscal de dispor de contabilidade organizada nos termos do sistema de normalização contabilística aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13-07-2009, a que se referem o n.º 2 do artigo 123.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas [CIRC] e o n.º 3 do artigo 17.º do mesmo diploma.

IV – “Organizar a contabilidade em termos substanciais” é organizá-la de maneira a que ela mostre fielmente a situação patrimonial e financeira da empresa e os resultados da mesma.

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra A sociedade T (…), Lda, foi declarada em situação de insolvência por sentença proferida em 25 de Março de 2019.

O administrador da insolvência apresentou parecer no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa e de ser afectado pela qualificação da insolvência o gerente da sociedade, J (…) O Ministério Público emitiu parecer no mesmo sentido.

Notificada, a insolvente não deduziu oposição à qualificação da insolvência.

Citado, J (…) opôs-se à qualificação da insolvência como culposa. Após a realização da audiência final foi proferida sentença que decidiu: 1.

Qualificar como culposa a insolvência da sociedade T (…) Lda(…), com sede (…), concelho de Viseu; 2.

Declarar afectado pela qualificação o requerido J (…) e, em consequência:

  1. Decretar a inibição J (…) para administrar patrimónios de terceiros pelo período trinta meses; b) Declarar J (…) inibido, pelo período de trinta meses, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; c) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por J (…) d) Condenar J (…), até às forças do respectivo património, o que inclui todos os seus bens susceptíveis de penhora, a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos.

    J (…) não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo: 1. Se revogasse a sentença e se qualificasse a insolvência como fortuita; 2. Caso assim se não entendesse, se condenasse o mesmo num montante pecuniário fixo, a determinar pelo tribunal, que se afigurasse equitativo e que levasse em linha de conta o efectivo grau de culpa do recorrente, que inexistia ou foi manifestamente reduzido, e se reduzisse para o mínimo legalmente previsto a inibição para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.

    Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões consistiram em resumo no seguinte: 1. Na impugnação de dois segmentos da decisão relativa à matéria de facto, concretamente, o que julgou provado que “a contabilista certificada contratada pela insolvente em Janeiro de 2018 não aceitou executar os respectivos serviços pelo facto de existirem dívidas ao contabilista certificado anterior” e o que julgou não provado que “quando cessou a actividade, a insolvente não possuía qualquer activo”; 2. Na alegação de que não se verificavam os requisitos necessários à qualificação da insolvência como culposa.

    O Ministério Público respondeu ao recurso sustentando a manutenção da decisão recorrida.

    * Síntese das questões suscitadas pelo recurso: O recurso suscita questões de facto e de direito. Visto que a resolução das questões de facto tem precedência lógica sobre a resolução das questões de direito, iremos começar o julgamento pelo conhecimento das questões de facto.

    Impugnação da decisão relativa à matéria de facto O recorrente começou por impugnar a decisão de julgar provado que “a contabilista certificada contratada pela insolvente em Janeiro de 2018 não aceitou executar os respectivos serviços pelo facto de existirem dívidas ao contabilista certificado anterior”.

    Pediu se julgasse provado que a “A contabilista certificada contratada pela insolvente em Janeiro de 2018 não pôde executar os respectivos serviços de contabilidade, por força do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e Código Deontológico dos Contabilistas Certificados pelo facto de existirem dívidas ao contabilista certificado anterior, o qual não manifestou a sua anuência a que a mesma fosse assegurada pela nova contabilística”.

    Para o efeito invocou excertos dos depoimentos de (…) (a contabilista certificada a que se refere a decisão de facto) e de (…).

    Ouvidas as declarações prestadas pelas testemunhas, a convicção deste tribunal não difere da do tribunal a quo.

    (…)foi contratada para exercer as funções de contabilista da sociedade ora insolvente em Janeiro de 2018, em virtude de a anterior contabilista da sociedade, a sociedade J (…) Lda, da qual é sócio a testemunha R (…) ter renunciado às suas funções por a ora insolvente ter honorários em dívida para com ela.

    E resulta também com clareza do depoimento de E (…)que não iniciou a organização da contabilidade da sociedade ora insolvente porque o gerente da sociedade, o ora recorrente, não regularizou a dívida para com o anterior contabilista e porque, de acordo com o Código Deontológico da Ordem dos Contabilistas, “sempre que um contabilista certificado tenha conhecimento da existência de dívidas ao contabilista certificado anterior, ou de situação de reiterado incumprimento, pela entidade que o contratou, das normas legais aplicáveis, não deve assumir a responsabilidade pela contabilidade [n.º 3 do artigo 74.º].

    Contrariamente ao que pretende o recorrente, não se pode dizer que o facto de haver honorários, despesas e salários em dívida ao contabilista anterior impossibilita o novo contabilista de assumir a responsabilidade pela contabilidade. Tal facto não o impossibilita; constitui-o no dever ético de não assumir a responsabilidade da contabilidade. Porém, se não quiser observá-lo, poderá assumir a contabilidade, sendo que, se o fizer, ficará constituído na obrigação de pagar os valores em falta, desde que líquidos e exigíveis.

    Pelo exposto, não se pode julgar provado que a nova contabilista certificada “não pôde executar os respectivos serviços de contabilidade, por força do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e Código Deontológico”.

    A nova contabilista podia, mas decidiu não executar tais serviços.

    Em consequência, mantém-se a decisão do tribunal a quo.

    O recorrente impugnou, em segundo lugar, a decisão de julgar não provado que “a insolvente, quando cessou a sua actividade, não possuía qualquer activo” [alínea b) dos factos julgados não provados].

    O recorrente pede a alteração da decisão no sentido de se julgar provado o referido facto.

    Para o efeito alegou: 1. Que a sentença de insolvência foi proferida com carácter limitado, o que pressupunha necessariamente a inexistência de bens; 2.

    Que ninguém requereu o seu complemento; 3.

    Que não foi aventada nos autos a possibilidade de existirem bens.

    A pretensão do recorrente é de julgar improcedente.

    É certo que a sentença que declarou a insolvência afirmou dos factos alegados e apurados resultava que não eram conhecidos bens à requerida e que, atendendo a tal facto e ao disposto no n.º 1 do artigo 39.º do CIRE, a sentença deu cumprimento apenas ao preceituado nas alíneas a) a d) e h) do n.º 1 do artigo 36.º do CIRE.

    Sucede que a afirmação da sentença acima referida não faz prova de que “a insolvente, quando cessou a sua actividade, não possuía qualquer activo”. Com efeito, a sentença, enquanto documento autêntico, faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo juiz assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções do juiz (n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil) e o facto que o recorrente quer ver julgado provado não está compreendido em tais categorias de factos. Em segundo lugar não é exacta a alegação do recorrente de que a circunstância de o juiz proferir sentença de declaração de insolvência com carácter limitado pressupõe necessariamente a inexistência de activo. Tal sentença também é compatível com a existência de activo, embora insuficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente, como resulta claramente da parte inicial do n.º 1 do artigo 39.º do CIRE.

    Em terceiro lugar, há indícios credíveis de que quando a ora insolvente cessou a sua actividade – o que aconteceu, o mais tardar, em 28 de Novembro de 2017, quando foi revogada a licença para o exercício da sua actividade económica – dispunha, pelo menos, do remanescente da caução depositada no Instituo de Emprego e Formação Profissional, no montante aproximado de cinquenta e três mil euros.

    Em consequência, mantém-se a decisão de julgar não provado que “a insolvente quando cessou a actividade não possuía qualquer activo”.

    * Julgada improcedente a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados os seguintes factos discriminados na sentença: 1.

    A insolvente, T (…), Lda, pessoa...

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