Acórdão nº 1463/07.9TBCNT.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 24 de Setembro de 2013

Magistrado ResponsávelHENRIQUE ANTUNES
Data da Resolução24 de Setembro de 2013
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.

  1. Relatório.

    C… pediu, em acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário pelo valor, ao Sr. Juiz de Direito do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede, a condenação de M…, sua mãe, a pagar-lhe a quantia de € 43.458,90.

    Fundamentou esta pretensão no facto de a ré ter contraído, junto do Banco …, um mútuo – no qual interveio como fiador – para adquirir a casa onde reside, pagando ao ex-cônjuge as respetivas tornas, de se ter proposto, com os irmãos, por a ré ter dificuldades económicas, emprestar-lhe o dinheiro necessário para o empréstimo, tendo pago, através de transferência da sua conta ou de depósito feito pela ré, com dinheiro que lhe entregava, de Outubro de 1999 a Maio de 2005, a quantia de € 31.557,35, dívida que a ré sempre assumiu, assegurando-lhe que lhe pagava, em dinheiro ou pondo a casa em seu nome, e de ter ainda pago, a pedido da ré, a contribuição autárquica, no valor de € 754,29, o seguro anual do carro, de 1998 a 2004, no valor de € 1.475,81, reparações de electrodomésticos, no valor de € 246,50, electrodomésticos, no valor de € 1.924,95, o arranjo do telhado, no valor de € 2.500,00, reparações do carro da ré, móveis, sofás, portões de entrada, honorários da advogada do processo de divórcio, água, luz, telefone e dinheiro para aquisição de bens de 1ª necessidade, no valor de € 5.000,00.

    A ré defendeu-se por impugnação alegando, designadamente que acordou com os filhos contribuírem todos para o pagamento do mútuo contraído junto do Banco …, como forma de participarem todos nas despesas da casa, nunca se tendo comprometido a devolver quaisquer quantias aos filhos, que declarava no verso da folha informativa da liquidação da prestação os montantes com que cada filho havia contribuído para o objectivo comum de manter a casa de morada da família, procurando somente assegurar que, na partilha da sua herança, fossem tidos em conta os montantes com que cada filho contribuíra para o pagamento da casa; que a partir de 5 de Abril de 2001 apenas o autor continuou a contribuir tendo passado a declarar, para que não fosse prejudicado, montantes superiores ao que este lhe dava; que apesar de nunca se ter reconhecido como devedora, quando muito estaria em causa o montante de € 28.858,00, que, embora fictício, seria correspondente às declarações que fez de boa fé a pensar na partilha da casa entre os filhos, e que é falso que o autor tenha pago outras despesas.

    A sentença final da causa – proferida pelo Sr. Juiz de Círculo da Figueira da Foz - depois de observar que não ficou provada, em sede de factualidade adquirida, a obrigação de restituição das diversas datio rei do A. para a Ré para proceder ao pagamento do empréstimo bancário por si contraído, que o Tribunal não estava adstrito à qualificação jurídica que as partes façam dos factos e que ao A. por efeito da sua posição de fiador da ré naquele empréstimo assistia o direito a ficar sub-rogado nos direitos desta entidade, relativamente ao quantum pelo A. satisfeito, por homologia entre a situação em que o terceiro cumpre directamente perante o credor a obrigação do devedor e aquela em que, como nos autos, o terceiro (leia-se o A.) entrega ao devedor (leia-se a Ré) os meios de cumprimento de cumprimento da obrigação deste devedor perante o credor (leia-se o “Banco …), a justificar uma aplicação analógica do artº 644 do CC – condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 28.877,39, no mais absolvendo a ré do contra si peticionado.

    É esta sentença que a ré impugna no recurso ordinário de apelação no qual pede a sua revogação e a sua substituição por outra que a absolva do pedido.

    A recorrente, que apresentou o requerimento de interposição do recurso por via electrónica no dia 18 de Janeiro de 2013, rematou a sua alegação – apresentada pela mesma via no dia 16 de Abril do mesmo ano - com estas conclusões: … Não foi oferecida resposta.

  2. Factos provados.

    … 3.

    Fundamentos.

    3.1.

    Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

    Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada, expressa ou tacitamente, no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

    Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da sentença impugnada e da alegação da recorrente, a questão controversa que esta Relação e chamada a resolver é a de saber se aquela sentença deve ser revogada e a apelante absolvida, in totum, do pedido.

    A resolução deste problema vincula ao exame, ainda que leve, de um dos dos princípios em que se desdobra o princípio processual instrumental do dispositivo - o princípio da disponibilidade privada – dos elementos constitutivos do contrato típico e nominado de mútuo e dos pressupostos da sub-rogação, designadamente na fiança.

    3.2.

    Princípio da disponibilidade privada.

    O objecto do processo é a matéria ou assunto sobre o qual o tribunal é chamado a pronunciar-se. Este objecto é constituído pelo pedido e pela causa de pedir.

    O pedido é a forma de tutela jurisdicional requerida para um direito ou para um interesse legalmente protegido (artº 498 nº 3 do CPC); a causa de pedir é constituída pelos factos – essenciais - necessários para individualizar o direito ou o interesse invocado pela parte (artº 498 nº 4, 1ª parte, do CPC). Assim, por exemplo, é distinto o direito de crédito que é invocado com fundamento num contrato de mútuo e outro que é fundamento numa fiança.

    Todavia, dado que a qualificação jurídica dos factos pertence ao tribunal, a causa de pedir é o facto concreto e não a categoria jurídica ou legal em que se enquadra o facto alegado[1].

    O objecto do processo tem, desde logo, uma relevância intraprocessual, dado que condiciona decisivamente o objecto da decisão, ou seja – de harmonia com o princípio fundamental da adequação da sentença (de mérito) ao pedido - aquilo que é pedido pela parte é aquilo que pode ser apreciado e decidido pelo tribunal: o tribunal deve apreciar tudo o que é pedido pela parte – mas não pode apreciar mais do que aquilo que a parte pediu (artºs 660 nº 2 e 664 do CPC).

    O princípio da disponibilidade das partes sobre o objecto do processo – que é um dos princípios em que se desdobra o princípio do dispositivo – determina que incumbe às partes a definição deste objecto e a realização da prova dos respectivos factos. Ao autor cabe, por isso, definir o pedido e invocar a causa de pedir, não sendo licito ao tribunal, como consequência do funcionamento deste princípio, conhecer de pedido diverso do formulado ou de causa de pedir diferente da invocada (artºs 467 nº 1, als. c) e d), 661 nº 1 e 664, 2ª parte, do CPC). Como complemento desta delimitação privada do objecto processual, incumbe às partes a realização da prova dos factos incluídos nesse objecto (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).

    Quanto à disponibilidade dos factos necessários para a decisão do tribunal, a regra é esta: o tribunal deve conhecer de todos os factos alegados pelas partes no momento processual adequado, sejam eles factos principais ou acessórios; o tribunal pode ainda conhecer oficiosamente de certos factos acessórios. Portanto, em regra, o tribunal só pode servir-se dos factos articulados pelas partes – iudex, secundum allehata e probata judicare debet, non secundum conscientiam suam (artº 664, in fine, do CPC).

    Todavia, a sentença não é constituída, em regra, apenas por fundamentos de facto, antes se baseia igualmente em fundamentos de direito, ou seja, numa solução da questão ou questões de direito, obtida pelo juiz livremente, por indagação, interpretação e aplicação das regras aos factos (artºs 664, 1ª parte, e 659 nº 2 do CPC).

    Portanto, o juiz, no plano estritamente jurídico, move-se com inteira liberdade, de harmonia com as máximas, iura novit curia e da mihi factum, dabo tibi ius. O juiz é, pois, livre na qualificação jurídica dos factos, contanto que não altere a causa de pedir.

    Note-se, porém, que não deve confundir-se a causa de pedir com a qualificação ou o enquadramento jurídico que as partes dão aos factos que alegam: a causa de pedir não é o nome que a parte eventualmente dê ao facto invocado – é o próprio facto jurídico, i.e., o facto necessário para fundamentar a procedência de um determinado pedido.

    Assim, se, por exemplo, a parte qualifica os factos que alega como contrato de empreitada, ao tribunal é perfeitamente lícito concluir que, afinal, tais factos são subsumíveis a um contrato de compra e venda. Nesta conjuntura, a única coisa que se lhe exige, no exercício da liberdade assinalada, é que dê satisfação a um dos valores relevantes da decisão judicial - o da previsibilidade – dado que ao tribunal não é lícito decidir uma questão, mesmo que só de direito, sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre ela, de modo a evitar as chamadas decisões surpresa, i.e., decisões proferidas sobre matéria de conhecimento oficioso sem a sua prévia discussão pelas partes, como sucederá, decerto, nos casos em que o tribunal opta por um enquadramento jurídico do objecto da causa com que as partes não podiam, razoavelmente, contar (artº 3 nºs 1 e 3 do CPC).

    A relação entre a actividade das partes e a do juiz pode, pois, resumir-se nestas proposições: pelo que respeita aos factos, a acção do juiz está vinculada; pelo...

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