Acórdão nº 777/20.7T8VCT.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 15 de Dezembro de 2022

Magistrado ResponsávelELISABETE COELHO DE MOURA ALVES
Data da Resolução15 de Dezembro de 2022
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES I. Relatório S... - Soluções de Reabilitação e Construção Unipessoal, Lda., instaurou a presente acção comum contra B..., Ldª, NIPC ..., com domicílio profissional no ..., Edifício ... ... Porto ..., concelho ..., formulando o seguinte pedido: - condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de € 24.000,00 (vinte e quatro mil euros), a título de indemnização pelos danos causados na viatura QB, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal em vigor, desde a ocorrência do sinistro e até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em súmula, ter adquirido o veículo com a matrícula ..-QB-.., marca ..., modelo ... ..., para satisfazer as necessidades de transporte de AA, colaborador da Autora. No dia 29 de Novembro de 2018, enquanto circulava na A...5, no sentido ... – ..., o veículo incendiou-se, devido a um defeito no radiador .... O defeito comprometeu o bom funcionamento do motor do veículo e gerou um incêndio. A Autora participou à Ré o sinistro e, após averiguações e análise do sucedido, a Ré concluiu que o incidente térmico não resultou de uma anomalia na válvula ..., não assumindo a responsabilidade do evento.

Invocou o regime legal estabelecido no DL nº 383/89, de 6 de Novembro, sustentando que a Ré, enquanto produtora, era a responsável pelo defeito do radiador ..., defeito este que provocou o incidente térmico de 29 de Novembro de 2018. Como consequência directa e necessária, ocorreu o incêndio, ficando o veículo ..-QB-.. danificado e inutilizável. A Autora sofreu um prejuízo de € 24.000,00.

A Ré apresentou contestação invocando que o incidente térmico não teve origem no lado do compartimento do motor onde se encontra o radiador ..., não existindo, por isso, indícios de que o veículo padecesse de defeito de fabrico.

Sustenta não poder ser responsabilizada pela ocorrência do incidente térmico, por falta de prova de existência de defeito. Invocou a falta de legitimidade substantiva da Autora, por esta não poder ser qualificada como consumidor, e a não aplicação do regime legal invocado.

*Realizado o julgamento, veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido formulado.

*Inconformada com a decisão, dela recorreu a autora, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões, que ora se transcrevem: «1. Foi dado como provado no ponto 4 da matéria de facto que: 4- O referido AA usava o referido veículo QB todos os dias da semana, para as suas deslocações pessoais e de lazer; 2. O DL n.º 383/89, no seu artigo 8º determina que “são ressarcíveis os danos resultantes de morte ou lesão pessoal e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente esse destino”.

  1. O acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/09/2015 acrescenta ainda que cai dentro do âmbito de aplicação do presente regime, o produto adquirido e usado por uma empresa, mas fora da sua atividade comercial.

  2. O regime da responsabilidade do produtor tem aplicação no presente caso, pois o veículo QB, conforme resulta provado no ponto 4 da matéria de facto, era um veículo destinado ao uso pessoal de AA, apesar de ser colaborador da referida empresa, e era utilizado por aquele todos os dias da semana para as suas deslocações pessoais e de lazer.

  3. Quanto aos danos, no n.º 1 do art.º 3.º do DL n.º 383/89, entende-se como produto “qualquer coisa móvel, ainda que incorporada noutra coisa móvel ou imóvel.” 6. Pelo que, deve entender-se como produto o radiador ... que provocou o incêndio no motor, que está incorporado no automóvel.

  4. E, quanto ao defeito, regime do DL n.º 383/89 relaciona-o com a falta de segurança dos produtos, pelo que, entende-se como produto defeituoso aquele que “não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar”.

  5. No presente caso, deve considerar-se que existia um defeito ao nível do radiador ... e que fez com que deflagrasse no motor do veículo QB um incêndio, peça essa com um defeito que provocou falta de segurança, e foi a responsável e geradora dos danos causados no veículo.

  6. O radiador ... que padecia de um defeito que provocou falta de segurança, provocou um incêndio e consequentemente, provocou danos no veículo da A.

  7. O veículo QB, estava abrangido pela intervenção técnica n.º ...00, com carácter urgente, para ser verificado, e se necessário, trocado o radiador de recirculação dos gases de espape.

  8. A referida acção técnica consiste em verificar o módulo EGR e a substituição de eventuais componentes danificados, pois em alguns casos o radiador do módulo EGR (recirculação dos gases de escape) poderá apresentar fugas de líquido de refrigeração.

  9. A acumulação do líquido de refrigeração quando combinado com outros resíduos, como por exemplo óleo e carvão pode transformar-se em combustível, nestes casos e como as temperaturas dos gases de escape neste componente são elevadas, o composto combustível pode inflamar, e que segundo a B..., Ldª em casos extremos pode originar um incêndio.

  10. Ao contrário do que foi garantido pela B..., Ldª (que todos os clientes que fossem proprietários dos veículos afectados seriam contactados pelos serviços para realização da intervenção), a A. nunca foi contactada por parte da R. e informada que o seu veículo estava abrangido por aquela intervenção técnica urgente.

  11. A R. decidiu ignorar a existência daquela intervenção técnica urgente, ignorando de igual forma, o perigo e a falta de segurança que a não realização daquela intervenção poderia significar para os passageiros daquele veículo QB, bem como para os restantes utilizadores da via pública.

  12. E, no ano que deflagrou o incêndio no seu veículo, esteve na oficina do concessionário da R., pelo menos duas vezes: 12 de Maio de 2018 e 12 de Novembro de 2018 – 17 dias antes da ocorrência do incidente térmico.

  13. No veículo QB deflagrou um incêndio 17 dias após ter realizado uma revisão na oficina da concessionária da R., e nenhuma explicação ou motivo lhe foi apresentada para aquela ocorrência.

  14. O único motivo, que é o do conhecimento público inclusivamente, que leva veículos da marca ... a incendiar é o defeito no radiador ... – motivo pelo qual o veículo da A. estava abrangido pela intervenção técnica urgente.

  15. A regra presente na responsabilidade objetiva é a de o “produtor ser responsável, independente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação”.

  16. O dano é um resultado de um defeito presente no produto, um dano que não se concretizaria se o defeito não existisse, tendo em conta a teoria da causalidade adequada prevista no art.º 563.º do CC.

  17. O defeito do produto, atua, segundo BB como “critério de imputação da responsabilidade do produtor”, pelo facto de substituir o ónus de provar a culpa do produtor pelo ónus de provar o defeito do produto.

  18. Para a referida autora provar a existência de um defeito num produto e a sua direta relação com o dano sofrido implica provar uma certa culpa ou negligência por parte do produtor – o que resultou provado nos presentes autos.

  19. Entende CALVÃO DA SILVA que “na apreciação da prova valem as regras do direito comum, mas deve ter-se sempre presente que o lesado deve ser ajudado na espinhosa tarefa de demonstrar o nexo causal, no mínimo através da prova de primeira aparência (…) que, no fundo, é uma espécie de presunção da causalidade”.

  20. Uma posição que foi seguida por alguma jurisprudência, precisamente pelo acórdão do STJ de 05/01/2016 e o acórdão da Relação de Lisboa de 27/02/2007, ao entenderem que, estando fixada a existência de defeito do produto e do dano, atendendo às regras da experiência da vida e à teoria da causalidade adequada, deve considerar-se estar demonstrado o nexo de causalidade.

  21. Pelo que, face à prova produzida, e resultando provado que o veículo da A. estava abrangido por uma intervenção técnica com carácter urgente para ser verificado o radiador ...; que aquela intervenção é justificada pelo risco de deflagração de incêndios em veículos da marca da A.; que a R. tenha perfeito conhecimento que o veículo da A. estava abrangido por aquela intervenção e deliberadamente, não comunicou à A. (apesar de ter dois momentos diferentes em 2018 para o fazer); que 17 dias antes do incidente térmico ter ocorrido, o veículo da A. tinha realizado uma revisão na oficina do concessionário da R.; e que o incêndio teve origem no motor, 25. Deveria a R. ter sido condenada a indemnizar a A. pelos danos sofridos no seu veículo em resultado do incidente térmico ocorrido a 29 de Novembro de 2018, por se demonstrar provado que existia um defeito no radiador ... – produto posto em circulação pela R., e que pôs em causa a segurança dos utilizados daquele veículo bem como os demais utilizadores da via pública.

  22. Sem prescindir, nos termos do artigo 485º, n.º 2 e 486º do Código Civil, a R. deveria ter sido condenada a indemnizar a A., pois tinha o dever jurídico de informar a A. que o seu veículo estava abrangido por uma intervenção técnica de carácter urgente para ser verificado, e se necessário trocado, o radiador ....

  23. E apesar de ter duas oportunidades para comunicar a A. no ano de 2018, e de ter o dever de proceder com diligência e cuidado, a R. deliberadamente não informou a A.

  24. A R. agiu com má fé pois não adoptou todos os comportamentos necessários para evitar uma situação de perigo.

  25. O art. 486º deve assentar no princípio de que um comportamento que deixa de ser observado quando fosse exigido pelas regras da boa fé que fosse adotado, pode igualmente constituir uma omissão capaz de gerar ressarcimento – é um comportamento contrário às regras da boa fé.

  26. Pelo que, deve a presente decisão ser alterada por uma outra que condene a R. a indemnizar a A. pelos danos causados no seu veículo, à luz dos artigos 485º, n.º 2 e 486º, ambos do Código Civil.

    Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença...

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