Acórdão nº 3606/12.1TBBRG.G2 de Tribunal da Relação de Guimarães, 15 de Setembro de 2022

Magistrado ResponsávelMARIA CRISTINA CERDEIRA
Data da Resolução15 de Setembro de 2022
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO J. B.

intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário, contra M. B.

, pedindo que: a) seja declarado nulo e sem qualquer efeito o testamento outorgado pelo de cujus J. F. a favor da Ré em 29 de Junho de 2010; b) seja declarado nulo o contrato de cessão de quinhão hereditário celebrado entre o Autor e a Ré em 22 de Outubro de 2010; c) se assim não se entender, sejam declarados anulados o testamento e o contrato de cessão de quinhão hereditário; d) seja condenada a Ré a reconhecer a herança indivisa como a única proprietária dos bens e direitos deixados por morte do pai J. F., identificados na petição inicial; e) seja condenada a Ré à restituição à herança de todos os bens identificados e montantes de que se tenha locupletado, nomeadamente os constantes das contas bancárias do de cujus; f) em conformidade com o pedido constante das alíneas a) a c) supra, sejam declarados nulos e ineficazes todos os negócios celebrados pela Ré sobre bens da herança em datas posteriores às escrituras colocadas em crise; g) se ordene o cancelamento das inscrições que incidam sobre os bens identificados na petição inicial, a favor da Ré e de terceiros; h) subsidiariamente, e sem prescindir, seja declarada nula a declaração de quitação constante do contrato de cessão, por falta de pagamento do preço, condenando-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 700.000,00 (setecentos mil euros) a título de capital, acrescida dos competentes juros de mora à taxa legal, vencidos no valor de € 44.032,88 (quarenta e quatro mil trinta e dois euros e oitenta e oito cêntimos) e vincendos à mesma taxa, até efectivo e integral pagamento.

Para tanto alega, em síntese, que o Autor e a Ré são filhos e os únicos e universais herdeiros de J. F., falecido em 8 de Outubro de 2010, no estado de divorciado, cuja herança é composta por bens móveis e imóveis, dinheiro, títulos de crédito e outros direitos de natureza patrimonial.

Apesar das relações familiares entre o A. e a Ré nunca terem sido afectuosas nem próximas, face ao passado de toxicodependência do primeiro, do qual recuperou em Setembro de 2010, a Ré reatou o contacto pessoal com o A., seu irmão, aquando do óbito do pai, predispondo-se a apoiá-lo em todos os actos da sua vida e passando a transmitir-lhe afecto, cuidado, carinho e atenção, pelo que o A. passou a depositar plena confiança na irmã e permitiu que a mesma procedesse à administração do património mobiliário e imobiliário que integrava a herança ilíquida e indivisa do pai de ambos.

Pouco tempo após o óbito do pai e com o pretexto de que importava definir, até por questões fiscais, a situação da herança, a Ré convenceu o A. de que seria melhor formalizar a administração da herança, através da outorga da escritura de habilitação de herdeiros, sob pena de ambos correrem o risco de ficar sem nada, prometendo-lhe que garantiria todos os seus interesses patrimoniais (fosse em termos de habitação, locomoção e/ou rendimentos) e que todos os bens que integravam a herança permaneceriam em comum, para serem utilizados pelos dois como até ali havia acontecido, ameaçando-o ainda que, caso perdessem o património herdado, nunca mais iria admitir que lhe dirigisse a palavra e poria termo, definitivamente, a qualquer contacto entre A. e Ré e o seu agregado familiar.

Em 21 de Outubro de 2010 a Ré comunicou verbalmente ao A. que deveria comparecer no dia seguinte no Cartório Notarial de A. C., em Vila Nova de Famalicão, a fim de se proceder à outorga da escritura de habilitação de herdeiros por óbito do pai.

Porém, no dia 22 de Outubro de 2010, para além de ter sido outorgada a escritura de habilitação de herdeiros, o A. e a Ré celebraram uma escritura de cessão do quinhão hereditário do Autor, com a qual este foi confrontado apenas no momento da sua leitura, tendo solicitado explicações à Ré, que lhe garantiu verbalmente que se tratava de uma mera formalidade para lhe permitir administrar melhor a herança, e que só dessa forma lhe podia assegurar um rendimento suficiente para prover a todas as suas necessidades de habitação, alimentação e vestuário, bem como aos demais encargos correntes do seu quotidiano.

Por força dessa explicação e no quadro de confiança criado pela irmã, o A. aceitou assinar a referida escritura de cessão de quinhão hereditário, na qual a Ré se obrigou a pagar ao A. o preço de € 700.000,00 e uma prestação mensal vitalícia no montante de € 500,00. Naquela altura, a Ré assegurou ao A. que não iria “perder” quaisquer dos bens que seu pai lhe havia prometido deixar, nomeadamente o imóvel onde este residia e os veículos automóveis, de duas e de quatro rodas, que sempre utilizou no seu exclusivo interesse.

Contudo, após a celebração das escrituras, a Ré comunicou ao A. que não pretendia manter com ele qualquer contacto e que passava a estar-lhe vedada a utilização de qualquer bem da herança, porque todos lhe pertenciam, recusando-se a prestar ao irmão qualquer apoio, à excepção da prestação mensal de € 500,00 que começou a depositar na conta bancária dele.

Naquela altura, a Ré começou a colocar à venda alguns motociclos e automóveis que haviam sido doados ao A. e que eram do seu uso exclusivo.

Apesar do A. ter sido interveniente na mencionada escritura de cessão do quinhão hereditário, o certo é que tudo quanto foi declarado em tal instrumento notarial não tem qualquer correspondência com a verdade material, não só porque nenhuma correspondência existe entre a vontade real do A. e aquela que foi declarada, como também a Ré não pagou ao A. o respectivo preço, tratando-se a “declaração de quitação” ínsita naquela escritura de mera “formalidade” que integrou o logro da Ré sobre o A., sendo manifesto que aquela se socorreu de artifícios sentimentais e aproveitou-se da fragilidade psicológica e emocional do A., induzindo-o à celebração do negócio em causa, com o intuito de se apropriar de todos os bens da herança aberta por óbito do pai.

A Ré, aproveitando-se ainda da presença do seu companheiro - magistrado judicial em cuja idoneidade e integridade o A. confiava - convenceu este da legalidade do acto que veio a praticar, obtendo ardilosamente uma declaração de quitação de um preço que nunca pagou.

O A. agiu em erro, motivado pela conduta dolosa da Ré, que sabia que o irmão não tinha a consciência do sentido e alcance da declaração que emitiu, nomeadamente dos seus efeitos jurídicos, não correspondendo o ali declarado à sua vontade real, ao que foi induzido pela conduta daquela, pelo que a cessão do quinhão hereditário é anulável por erro sobre o objecto do negócio nos termos dos artºs 247º e 251º do Código Civil.

Assim como é anulável por dolo nos termos dos artºs 253º e 254º do Código Civil, porquanto a Ré bem sabia que o A., ao assinar a escritura de cessão do quinhão hereditário, estava persuadido de que apenas viabilizava a melhor administração do património da herança e que aquele não abriria mão do seu quinhão hereditário a favor da Ré, muito menos, a título gratuito.

A declaração negocial do A. é também anulável por coacção moral nos termos dos artºs 255º e 256º do Código Civil, pois o A. foi ameaçado pela Ré que lhe transmitiu a ideia de que se não fosse formalizada a denominada “administração” da herança, este não só perderia os bens a que tinha direito, como lhe seriam cortadas pela Ré todas e quaisquer relações familiares com a sua pessoa.

O ardil criado pela Ré foi de tal forma eficaz que não só o A. não sabia o que estava a outorgar, como se convenceu de que tal contrato em nada contenderia com os seus interesses patrimoniais, pelo que apesar de informado de que emitia uma declaração negocial, acabou por não ter consciência da mesma, o que determina que aquela não produza quaisquer efeitos jurídicos, nos termos do artº. 246º do Código Civil.

O A. veio posteriormente a ter conhecimento de que em 29 de Junho de 2010, o pai outorgou um testamento no Cartório Notarial de A. R., em Braga, através do qual instituiu a Ré como única e universal herdeira da sua quota disponível e, em caso de pré-falecimento desta, as suas filhas T. P. e A. P..

O testador deslocou-se ao Cartório Notarial, para lavrar o testamento, em cadeira de rodas, imediatamente após ter estado internado no Hospital da Universidade de … a que se seguiu um internamento no IPO do Porto, donde saiu com o diagnóstico “para morrer”, uma vez que padecia de uma doença oncológica muito grave, sob o efeito de inúmera medicação, revelando sérias dificuldades em se exprimir, sem noção do espaço e do tempo, além de que residia na casa da filha, que lhe ministrava todos os cuidados necessários, por intermédio de uma empregada, encontrando-se ele na total dependência de terceiros para executar todos os actos da sua vida diária.

Foi a Ré quem tratou de toda a documentação necessária para elaborar o testamento, que definiu, sem consultar o pai, o que deviria constar do mesmo e que arranjou duas testemunhas da sua confiança, assim como foi ela quem transportou o pai até ao Cartório Notarial, tendo estado presente no momento em que o testamento foi lavrado. Era tal o estado de desorientação do testador e grande a capacidade da Ré em dominar a vontade do pai, que se chegou a lavrar dois testamentos no mesmo dia - um da parte da manhã e outro à tarde - porquanto no primeiro apenas se previa ficar a mesma como usufrutuária dos bens do pai, na medida do disponível, o que não lhe agradava.

O A. apenas teve conhecimento desta situação relativa ao testamento em Setembro de 2011, nomeadamente que o testador não só estava incapacitado de entender o sentido da sua declaração – aliás contrária ao que sempre afirmou de não pretender prejudicar e/ou beneficiar qualquer um dos filhos - como não tinha o livre exercício da sua vontade, ainda que transitoriamente.

Face ao estado debilitado em que se encontrava, o testador estava impossibilitado de exprimir cumprida e claramente a sua vontade, tendo-o...

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