Acórdão nº 27/18.6T8BCL.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 28 de Março de 2019

Magistrado ResponsávelFERNANDO FERNANDES FREITAS
Data da Resolução28 de Março de 2019
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

SUMÁRIO I – Na reapreciação da decisão de facto a Relação, não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, avalia livremente todas as provas carreadas para os autos e valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua própria convicção.

II – A Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999 (publicada no J.O. L 171/12, de 7/7/1999) consagrou normas e princípios com vista à uniformização das legislações dos Estados-Membros, relativos à venda de bens de consumo, com o objectivo de obter um nível mais elevado de defesa dos consumidores, pelo que, atento o princípio do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, e porque a referida Directiva contém normas de direito positivo, incondicionais e precisas, que impõem deveres aos particulares e lhes conferem direitos, pode a mesma ser invocada perante os tribunais nacionais, mesmo nas relações entre particulares.

III – A supramencionada Directiva veio a ser transposta para o ordenamento jurídico nacional pelo Dec.-Lei nº. 67/2003, de 8 de Abril, posteriormente alterado pelo Dec.-Lei nº. 84/2008, de 21 de Maio, cuja aplicação cede perante aquela na medida em que a contrarie ou confira menor âmbito a qualquer dos direitos do consumidor.

IV - Nos termos do disposto nos art.

os 5.º e 5.º-A do referido Diploma Legal, o vendedor é responsável perante o consumidor pelas faltas de conformidade que se verificarem dentro do prazo de dois anos, se o objecto da venda foi um bem móvel, e de cinco anos, em se tratando de bem imóvel, a contar da data da entrega do bem.

V – Para poder beneficiar dos direitos que lhe são conferidos pelo art.º 4.º do mesmo Diploma Legal, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade no prazo de dois meses, se o objecto da venda for um bem móvel, ou de um ano, se se tratar de um bem imóvel, a contar da data em que tenha detectado a falta de conformidade.

VI – Os referidos direitos caducam se não forem exercidos judicialmente no prazo de dois anos para os bens móveis, e três anos para os imóveis, que se contarão a partir da data em que a denúncia foi efectuada.

VII - A denúncia é uma declaração de vontade unilateral, que não está sujeita a forma (cfr. art.º 219.º do C.C.), podendo ser feita verbalmente, e a sua eficácia depende apenas de ela chegar ao poder da contraparte ou ser dela conhecida (cfr. art.º 224.º do C.C.).

VIII – É formal e substancialmente válida como denúncia uma carta enviada por um advogado ao vendedor, na qual aquele diz estar a agir mandatado pelo seu “constituinte”, e faz um relato suscinto do evento, comunicando a sua causa, e caracteriza a falta de conformidade.

IX – A garantia dada pelo vendedor assegura, não só, o funcionamento da coisa, mas também que esta tem a performance esperada, apenas podendo ser afastada no caso de a deterioração do bem resultar de facto imputável ao consumidor.

X – Tendo ocorrido um incêndio originado num curto-circuito verificado no sistema eléctrico de um tractor agrícola, que se encontrava guardado num anexo, no interior do qual foi também guardada uma grande quantidade de lenha e outros materiais que potenciaram a propagação do fogo, não pode ser imputada ao vendedor do tractor a responsabilidade de indemnizar os danos verificados na estrutura do anexo, e os decorrentes da carbonização dos outros bens que aí se encontravam guardados, que foram acomodados pelo respectivo dono, se se não prova o facto que originou o curto-circuito, sem o qual se não encontra fundamento consistente para sustentar um juízo de culpa assente na falta de diligência do vendedor na detecção do problema que esteve na origem do evento causador do incêndio.

** ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

  1. RELATÓRIO I.- A. F. e M. L., intentaram a presente acção declarativa comum contra “X – Máquinas Agrícolas, Ldª” pedindo a condenação desta a pagar ao primeiro a quantia de € 6.000 (seis mil euros) e à segunda a quantia de € 6.872,40 (seis mil oitocentos e setenta e dois euros e quarenta cêntimos), ambas acrescidas dos juros de mora a contar da data da citação.

    Fundamentam alegando, em síntese, que o primeiro Autor, em 25/11/2015, adquiriu à Ré um tractor agrícola no estado de usado, com a matrícula JJ, pelo preço de € 6.000, o qual beneficiava de uma garantia de bom funcionamento pelo período de um ano. Ora, no dia 08/12/2015, estando o referido tractor guardado num anexo, começou a arder, tendo-se o fogo propagado para os outros bens e objectos que se encontravam próximos.

    O incêndio ocorreu devido a um curto-circuito na parte lateral direita do tractor, numa zona situada entre o banco do condutor e o guarda-lamas da roda traseira, e em consequência desse incêndio o tractor ficou totalmente carbonizado, ardendo ainda lenha no valor de € 400, uma torre de andaime em alumínio no valor de € 1200, diversos utensílios de jardinagem, no valor de € 500, pertencentes à segunda Autora, tendo ficado danificada a estrutura do anexo, à mesma pertencente, cuja reparação foi orçado em € 4.772,40.

    Citada, a Ré arguiu as excepções de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade da segunda Autora, que foram já conhecidas no despacho saneador, e excepcionou ainda a caducidade do direito que o primeiro Autor pretende fazer valer. Impugnou boa parte dos factos alegados.

    Os autos prosseguiram os seus termos, vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção parcialmente procedente por parcialmente provada, condenou a Ré: a) a pagar ao A. A. F. a quantia de € 6.000 (seis mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação; b) a pagar à Autora M. L. a quantia global de € 5.592,40 (cinco mil quinhentos e noventa e dois euros e quarenta cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação.

    Absolveu a Ré do demais peticionado.

    Inconformada, traz a Ré o presente recurso, pedindo a revogação da supra transcrita decisão.

    Contra-alegaram os Autores propugnando pela inalteração do decidido.

    O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.

    Colhidos, que foram, os vistos legais, cumpre elaborar a decisão.

    1. A Apelante/Ré, convidada para sintetizar as conclusões, formulou as seguintes: 1. A Apelante, salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, discorda da Douta Sentença ora recorrida, que julgou a ação parcialmente procedente.

      1. Entende a Apelante, contrariamente ao defendido pela Mma. Juiz a quo, que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não resultaram provados os factos constantes nos pontos 9), 10), 11), 12), 13), 14), 15), 17), 21), 22), 23), 24) e 25) da matéria de facto provada.

      2. Por sua vez, entende a Apelante que ficaram amplamente provados os factos vertidos nas alíneas b), c), d), e), f), g), h) e i) dos Factos não Provados.

      3. A Apelante invoca ainda uma contradição da matéria de facto dada como provada no item 13) dos Factos Provados com a matéria de facto dada como provada no item 30) dos Factos Provados.

      4. Segundo a motivação da Mma. Juíza a quo, a prova dos pontos 9), 10), 11), 12), 13), 14), 15), teve por base a cópia de um relatório pericial, cujo conteúdo foi impugnado pela Apelante, relatório este que foi elaborado na sequência da suspeita da prática de um crime de incêndio, no âmbito de um inquérito penal.

      5. De forma alguma pode ser sufragada a decisão da Sra. Juíza de desconsiderar em absoluto os depoimentos das testemunhas arroladas pela Ré, sem sequer apontar uma justificação e de ter desvalorado parte significativa da prova testemunhal produzida, o que não é minimamente aceitável.

      6. Testemunhas essas que, de uma forma altamente técnica, profissional e pormenorizado explicaram ao Tribunal a estrutura elétrica de um trator, das mesmas caraterísticas do que consta no processo e que sustentaram justificadamente e com amplo conhecimento, por que motivo descartaram a hipótese avançada pelos agentes da Polícia Criminal.

      7. Importa salientar que a única testemunha aqui ouvida da Polícia Judiciária, referiu que no relatório elaborado, chegou a uma conclusão que é a mais provável, mas que não tem absoluta certeza. Mais referiu não ser eletricista, desconhecer a estrutura elétrica de um trator, e que a ideia com que ficou é que terá havido um curto circuito e não uma certeza.

      8. Venerandos Desembargadores, o Especialista Rui Magalhães não ficou com total certeza que o início do fogo tenha tido início no trator, na parte traseira. Ficou apenas com uma ideia, ideia esta que simplesmente descartou no seu pensamento e para a função que estava a desempenhar, a possibilidade de mão criminosa.

      9. Assim, o Tribunal a quo firmou a sua convicção baseada num relatório que, não obstante ser emitido por agentes da Polícia Judiciária, não contem nenhum juízo de certeza acerca do que tenha sido a origem do incêndio. De um lado temos a dúvida, do outro temos a certeza. É que foram várias as testemunhas inquiridas que atestaram precisamente o contrário.

      10. Testemunhas estas que atestaram ter um conhecimento seguro de eletricidade, conhecem bem o trator que foi destruído, a sua estrutura. Não tem qualquer interesse no desfecho da causa, contrariamente ao entendimento da Mma. Juíza a quo.

      11. A origem do incêndio mantém-se por apurar. Sabe-se apenas que o coberto era bastante antigo, aberto quer pelo lado da via pública, quer pelas traseiras, não detinha porta. Estava repleto de material inflamável, toneladas de lenha e pelo menos 70 l de gasóleo. Desconhece-se se havia alguém nas imediações. Agora, uma certeza é que se deve ter: não foi nenhum curto circuito ou anomalia técnica do trator.

      12. Peca igualmente a douta sentença, ora em crise, por ter considerado provado que a missiva remetida à Ré, em 21 de janeiro de 2016 equivale à...

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