Acórdão nº 1515/15.1T8GMR-A.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 14 de Março de 2019

Magistrado ResponsávelFERNANDO FERNANDES FREITAS
Data da Resolução14 de Março de 2019
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

SUMÁRIO I - Com o actual C.P.C. tornou-se mais evidente que a Relação se deve assumir como um verdadeiro tribunal de instância também quanto à apreciação dos factos, tendo o poder, que é vinculado, de introduzir na decisão as modificações que se justificarem, seja nas situações em que o possa fazer oficiosamente, seja decidindo a impugnação do recorrente.

II – Ainda que não constituindo verdadeiros meios de prova, deverá recorrer-se às presunções judiciais sempre que seja necessário proferir decisão relativa a factos essenciais que, correspondendo aos pressupostos normativos de que depende a procedência da acção ou da excepção, se tornam dificilmente atingíveis através de meios de prova directa.

III - O C.P.C. vigente consagrou, de modo expresso, no art.º 413.º, o princípio da aquisição processual das provas – independentemente de terem ou não emanado da parte que devia produzi-las, todas as provas produzidas devem ser tomadas em consideração pelo tribunal.

IV – O endosso, que é o acto cambiário que opera a circulação da letra, garante ainda que o endossante, salvo cláusula em contrário, assume a responsabilidade pelo aceite e pagamento da letra, e legitima formalmente o portador para exercer os direitos cambiários desde que justifique a sua posse através de uma série ininterrupta de endossos.

V - No domínio das relações imediatas, que são as relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato, porque não há interesses de terceiros a proteger, é permitida a discussão da convenção extracartular que está na génese da emissão do título de crédito, ficando a obrigação cambiária sujeita às excepções fundadas nessas relações pessoais.

VI - Já no domínio das relações mediatas, porque o título entrou em circulação, há interesses de terceiros a merecerem protecção, não sendo (como não é) o portador da letra sujeito da relação extracartular, prevalecem os princípios da autonomia, da literalidade e da abstracção que caracterizam as obrigações cambiárias.

VII – O pressuposto necessário da oponibilidade da excepção consagrada na parte final do art.º 17.º da LULL é a de o portador ter agido, no momento em que adquire a letra, com a consciência de causar por esse facto um prejuízo ao devedor, o que se verifica quando o portador tenha tido conhecimento da existência e legitimidade das excepções que o devedor poderia opor ao endossante.

VIII - A nulidade do contrato de mútuo subjacente à letra não afecta a exequibilidade desta.

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

  1. RELATÓRIO I.- A. F., com os sinais de identificação nos autos, veio, pelos presentes embargos, deduzir oposição à execução, para pagamento de quantia certa, que lhe move a exequente A. C., alegando, em síntese, que esta é portadora da letra de câmbio que apresentou à execução por lhe ter sido endossada pelo sacador J. F., que é pai dela, Exequente, vivendo ambos na mesma morada, visando o endosso impedir e privá-la, a ela Embargante, de exercer os seus meios de defesa. Mais alegou que o valor peticionado contempla capital e juros remuneratórios do mútuo, o que contraria o acordado entre ela, Embargante, e o sacador. Ora, sendo nulo o contrato de mútuo, que era no valor de € 52.448,60, resulta a inexigibilidade dos juros remuneratórios, no montante de € 36.551,14, e a restituição do capital deve ser feita em singelo, não sendo igualmente devidos os juros peticionados no requerimento executivo, que consubstanciam juros sobre juros.

    Mais alegou que, do valor que lhe foi emprestado, já procedeu ao pagamento da quantia de € 47.577,08, através de várias entregas que fez ao sacador da letra, e ainda da quantia de € 3.500,00 que, seguindo instruções do sacador, transferiu para a conta bancária da Exequente.

    Finalmente, alega que consubstancia abuso do direito a actuação do sacador que durante 14 anos nunca lhe solicitou o pagamento de juros nem a devolução integral do capital, e preenche a letra que lhe entregara em branco com o valor do capital acrescido de juros.

    Contestou a Embargada/Exequente impugnando a factualidade invocada pela Embargante, e alegou que, estando no domínio das relações mediatas, não pode a Embargante/Executada deduzir as excepções que deduziu. Acrescentou que as partes acordaram que a quantia mutuada vencia juros, tendo a letra sido entregue em branco para permitir preenche-la com o valor que se encontrasse em dívida, acrescido dos juros de mora, logo que o pagamento fosse exigido.

    Os autos prosseguiram os seus termos vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que julgou parcialmente procedente a oposição à execução tendo, em consequência, determinado o prosseguimento da instância da acção executiva apensa pelo valor de € 48.948,60 (quarenta e oito mil novecentos e quarenta e oito euros e sessenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação da executada no âmbito da execução apensa.

    Inconformada, traz a Embargada/Exequente o presente recurso pedindo a revogação daquela decisão e a sua substituição por outra que julgue os embargos totalmente improcedentes, com as consequências daí resultantes.

    Também a Embargante/Executada se não conformou e veio intepor recurso, pedindo a revogação da decisão proferida e a substituição por outra que julgue procedentes os embargos.

    Uma e outra contra-alegaram propugnando pela improcedência do recurso da contraparte.

    Ambos os recursos foram recebidos como de apelação, com efeito devolutivo.

    Colhidos, que foram, os vistos legais, cumpre decidir.

    1. A Apelante Embargada/Exequente formulou as seguintes conclusões: a) Ao abrigo do artigo 644º, nº 1 al. a) do CPC vem a presente apelação interposto da douta sentença de fls. que julgou parcialmente os embargos de executado; b) Sufraga o Tribunal "a quo" que a execução deve prosseguir, mas apenas quanto à quantia de € 48.948,60, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação da executada no âmbito da execução apensa, excluindo dessa forma o valor de € 40.051,40, atento o valor inscrito na letra dada à execução - € 89.000,00; c) Salvo o devido respeito, esta decisão não está correcta e resulta da errada avaliação da prova e incorrecta aplicação da lei aos factos.

      d) Ora, a execução instaurada tem como título executivo uma letra no valor de € 89.000,00 cujo portador é a exequente aqui apelante, por a mesma lhe ter sido endossada, tendo como aceitante dessa letra a executada/apelada; e) Nos embargos de executado, a apelada invocou a excepção prevista no artigo 17º da LULL, alegando para o efeito que o endosso da letra à exequente teve o propósito de dificultar ou impossibilitar à executada o uso de meios de defesa que poderia opor ao endossante ou sacador; f) Ante o alegado, nos termos do disposto no artigo 342º do CC, o ónus da prova dos factos é da embargante; g) Com efeito, como se colhe da fundamentação da sentença, o Tribunal "a quo" deu como provado que a exequente é filha do sacador J. F., residia com o seu pai, não existindo qualquer transacção que justifique o endosso (artigo 28º da matéria de facto provada) e ainda que a exequente estava a par da relação jurídica subjacente à emissão da letra, agindo de acordo com o pai, visando impedir a embargante de exercer os seus direitos de defesa (artigo 29º da matéria de facto provada); h) Esta posição do Tribunal "a quo", dando como provados aqueles factos, resulta unicamente do seguinte meio de prova - O depoimento de parte da embargada; i) Contudo, não houve neste depoimento qualquer confissão, como se alcança da acta da audiência de discussão e julgamento, pois não foi feita qualquer assentada, com factos confessados; j) Não foi produzido qualquer outro meio de prova sobre a matéria em causa, cuja obrigação ou ónus era da embargante; k) Assim, ante a falta de confissão da depoente embargada e na ausência de prova produzida pela embargante nesta matéria, verifica-se que nas respostas formuladas naqueles artigos sobre a matéria em causa, o Tribunal "a quo" inverteu o ónus da prova, violando-o; I) Pois não compete à embargada enquanto portadora da letra que recebeu por endosso, provar o que quer que seja relativamente à mesma, antes é obrigação da embargante, querendo beneficiar do regime de excepção previsto no artigo 17º da LULL, alegar e provar que o endosso foi feito com o intuito de a prejudicar; m) Pelo que, o Meritíssimo Juiz "a quo" na decisão formulada inverteu erradamente o ónus da prova, pois a prova da execepção é da executada que a invoca e não o contrário.

      n) Sem prejuízo, nunca poderia ser provado que o endosso foi apenas para prejudicar o aceitante, porque a relação subjacente a esta parte do valor da letra existe e o pacto de preenchimento não ter sido violado, podendo de facto a letra ser preenchida com juros presumidos e legais; o) Pelo que, aqueles factos constantes dos artigos 28º e 29º da matéria de facto provada, sempre terão de ser dados como não provados.

      p) Resulta ainda da sentença que, no período compreendido ente Outubro de 2014 e Março de 2015, a embargante transferiu e depositou para a conta bancária titulada pela embargada o montante global de € 3.500,00, para abater ao valor do empréstimo. Contudo, esta resposta formulada é errada, pois da prova produzida não se pode concluir que a embargante pagou aquela quantia para abater ao valor do empréstimo; q) Pois sobre esta matéria, apenas temos a indicação da embargada que referiu no depoimento que prestou em 09/05/2018 e que está gravado no sistema digital áudio das 15:15:04 às 15:41:02, ter entrado na conta bancária titulada por si, mas que era do seu pai, a quantia de € 3.500,00, sendo constituída por três valores distintos, 2.000,00 + 1.000,00 + 500,00, mas que o pai lhe disse que eram coisas suas da empresa; r) Esta situação não configura nem prova a realização do pagamento da aludida quantia por conta do empréstimo, como erradamente entendeu o Tribunal "a quo"; s) Sem prejuízo disto, é ainda certo que, a decisão do...

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