Acórdão nº 933/18.8TBPTL.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 20 de Fevereiro de 2020

Magistrado ResponsávelJORGE TEIXEIRA
Data da Resolução20 de Fevereiro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrentes: J. P., M. P. e J. B..

Recorridos: T. L. e marido D. F.; M. L. e marido A. B.; e R. P..

Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Juízo de Competência Genérica de Ponte de Lima.

J. P., M. P. e J. B.

intentaram a presente acção declarativa em processo comum contra deduzindo os seguintes pedidos: A) - Declarar-se o Autor J. P., casado com A. L., sob o regime da comunhão de adquiridos, com proprietário e legítimo possuidor da parcela de terreno identificada no art.12º deste articulado; B) - Declarar-se os Autores M. P. e marido J. B., casados sob o regime da comunhão geral de bens, como proprietários e legítimos possuidores da parcela de terreno identificada no art.13º deste articulado; C) - Condenarem-se os RR. a reconhecerem esse direito de propriedade dos Autores.

Alegam para tanto, no essencial, que são “formalmente e de facto”(?) comproprietários dum prédio rústico que identificam no artigo 1.º da petição inicial (artigo onde delimitam e determinam a área do prédio) e que tal prédio se acha desde há mais de 40 anos, de comum acordo, demarcado e dividido em cinco parcelas, passando tais parcelas, no seu entender, a constituir novos prédios, pois foram alvo de actos de posse exercidos em exclusivo por cada um dos autores e réus, e de forma apta a que delas (parcelas que entenderam identificar com a letra D e com a letra A) sejam os autores declarados adquirentes originários.

Citados, os réus, não contestaram.

Tendo sido considerados confessados os factos alegados pelos Autores, ao abrigo do disposto no artigo 567.º, 1 do CPC, foi proferida decisão sobre o mérito da causa nos seguintes termos: Em face do exposto, jugo a presente acção totalmente improcedente, dela se absolvendo os réus do pedido.

Inconformado com tal decisão, apelam os Autores, e, pugnando pela respectiva revogação, formulam nas suas alegações as seguintes conclusões: 1.

A questão central que se coloca nos presentes autos é a de “aferir se a eventual aquisição originária por usucapião prevalece sobre as regras de fraccionamento dos prédios rústicos”.

  1. A esta questão o Tribunal a quo respondeu negativamente, decisão esta com a qual os aqui Autores, Recorrentes, não se podem conformar – daí o presente recurso.

  2. É certo que sobre esta temática, correm na nossa jurisprudência duas correntes divergentes, por um lado, a que sustenta que a aquisição originária do direito com fundamento no instituto da usucapião prevalece sobre as regras de fraccionamento dos prédios rústicos, por outro lado, o raciocínio inverso, ou seja, uma corrente que pende para que as regras do fraccionamento dos prédios prevaleçam sobre a aquisição originária do direito com fundamento no instituto da usucapião.

  3. No caso em apreço o Recorrente J. P. é formalmente e de facto comproprietário do prédio na parcela de terreno identificada como letra “D” à qual corresponde uma área real de 308.60 m2, confrontada a norte com o Caminho Municipal e Caminho de Servidão, e a poente com o Caminho Municipal (cfr. art. 12 da petição inicial dado como provado).

  4. Por sua vez, os Recorrentes M. P. e J. B. são formalmente e de facto comproprietários do prédio na parcela de terreno como a letra “A” à qual corresponde uma área real de 2.911,40 m2 a confrontada a norte com o Caminho Municipal, a sul com o Rio ..., a nascente com o Rio ... e a poente com T. J.(cfr. art. 13 da petição inicial dado como provado).

  5. É incontestável que cada um dos recorrentes exerceu sobre a sua parcela de terreno uma posse pública, pacífica, contínua e de boa-fé, o que resultou provado nos factos 24.º a 26.º da petição inicial.

  6. Por força do artigo 1288.º do CC, a contagem do decurso de tempo para efeitos da usucapião retroagem ao momento da divisão do terreno, tendo no caso em apreço, retroagido ao ano de 1975.

  7. Ora, por força do preenchimento dos requisitos da posse em conjunto com o decurso de tempo (pelo menos 44 anos), não há dúvidas que a este causídico se pode seguramente aplicar a usucapião.

  8. No que diz respeito à divisão material do prédio, o seu enquadramento legal é aferido pela aplicação da conjugação dos artigos 1376.º e 1379.º do CC que determinam que os terrenos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior à estabelecida para a unidade de cultura estabelecida para cada zona do país.

  9. Embora na actualidade, a lei sancione o fraccionamento dos prédios rústicos em parcelas inferiores à unidade de cultura com nulidade, há que aplicar o regime legal em vigor à data da divisão material do prédio, que é a anulabilidade.

  10. Quanto à legitimidade para a arguir a anulabilidade, esta pertencia ao Ministério Público ou os titulares do direito de preferência, nos termos do artigo 1380.º do Código Civil, na redacção em vigor em 1966. Quanto ao prazo, este era de 3 anos a contar da celebração do ato de fraccionamento.

  11. Daqui facilmente de concluí que o legislador na altura permitia a consolidação rápida desta situação de posse.

  12. Ainda que se entenda que é de aplicar o regime da nulidade, o que apenas se afirma por hipótese de raciocínio, ensinam-nos Mota Pinto e Manuel de Andrade que a possibilidade de invocar a nulidade é precludido perante uma situação de prescrição aquisitiva: é este também o entendimento que predomina na jurisprudência pátria, de que são meros exemplos os Acórdãos do STJ nos de 01.03.2018, 18.06.2019 e de 30.05.2019, citados em texto.

  13. Daqui se concluindo que, quer se entenda que é de aplicar o regime da anulabilidade, quer se entenda que se aplica o regime da nulidade a uma situação de fraccionamento de prédios rústicos, estes caem sempre perante uma situação de usucapião.

  14. Mais, afirma o Tribunal recorrido que estas regras de fraccionamento corporizam uma situação que impede a aquisição por usucapião, por caberem no segmento da norma do artigo 1287.º “salvo disposição em contrário”: acontece que este segmento da norma pressupõe uma disposição expressa da lei que taxativamente exclua a aplicação do instituto da usucapião, tal como acontece nos artigos 1293.º e o n.º 1 do artigo 1548.º e o artigo 202.º do CC.

  15. Vale isto por dizer que sendo o Código Civil omisso quanto a uma norma excepcional que estabeleça taxativamente a impossibilidade de aplicação do instituto da usucapião ao fraccionamento de prédios rústicos, fácil é concluir que inexiste qualquer disposição em contrário que impeça a aplicação do regime da usucapião a um caso como o dos autos nos termos do disposto no art. 1287º CC.

  16. Corporizando a ratio do instituto da usucapião uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, na qual este direito surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, tal significa que o mesmo se torna imune a todas as irregularidades, vicissitudes e até mesmo ilegalidades que o direito previamente comportava.

  17. É neste sentido que nos ensina Oliveira Ascensão e que tem decidido a jurisprudência pátria de que são exemplo os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.06.2006, 04.02.2014, 18.06.2019, da Relação de Coimbra, de 25.02.2014 e de 03.03.2015 e da Relação de Lisboa de 15.10.2015.

  18. Servindo o instituto da usucapião precisamente para “legalizar” situações “ilegais” que o direito é chamado a tutelar, as mesmas reportam-se sobretudo a situações de facto que a ordem jurídica deve absorver uma vez que a situação corrente já está consolidada e já se estabilizou, tal como se refere nas inúmeras decisões jurisprudenciais e ainda referências doutrinais citadas em texto, tal como Durval Ferreira.

  19. Como é, de resto, a situação dos nossos autos, uma vez que como foi explanado em sede própria, os Recorrentes enquanto donos das parcelas de terreno, ao longos de pelo menos 44 anos, cultivaram-nas, se semearam-nas, colheram os seus frutos, podaram a vinha, plantaram árvores de fruto, tendo também demarcado o terreno através da implantação de marcos divisórios entre as parcelas de terreno.

  20. Na boa verdade, este argumento comporta uma parte do que significa o interesse público do instituto da usucapião.

  21. Ao contrário do que também é tido como argumento em abono da tese contrária à aqui defendia, é dito que o instituto da usucapião apenas comporta interesses privados, o que se discorda por completo na medida em que o instituto da usucapião prossegue também um interesse público que se traduz no efeito conformador da ordem jurídica, para além de permitir fazer face à necessidade de asseverar a certeza da existência e da titularidade dos direitos reais de gozo sobre as coisas, garantindo uma efectiva tutelado direito.

  22. Temos assim por assente que a usucapião permite satisfazer três interesses: um privado na perspectiva do tráfego jurídico e titularidade do direito; um público, na perspectiva da unidade do sistema jurídico; e ainda um económico, já que satisfaz um interesse económico do Estado.

  23. Uma vez que a tese que abona a favor da prevalência da aquisição originária do direito em detrimento das regras de fraccionamento do território é a que melhor se enquadra no sistema jurídico, ela é acolhida em inúmeras decisões jurisprudenciais, de que são meros exemplos os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.06.2006, 04.02.2014, 06.04.2017, 01.03.2018, 08.11.2018, 15.11.2018, 21.02.2019, 08.03.2019, 30.05.2019, 18.06.2019, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 31.05.2005, 25.02.2014 e 03.03.2015, o acórdão da Relação de Lisboa de 15.10.2015, o acórdão da Relação de Évora de 08.06.2017 e da Relação de Guimarães de 01.02.2018.

  24. Decidindo como decidiu, o Tribunal a quo violou, entre outros os artigos 12.º, 287.º, 289.º, 1288.º e 1287.º, todos do Código Civil.

    *Os Apelados não apresentaram contra-alegações.

    *Colhidos os vistos, cumpre decidir.

    *II- Do objecto do recurso.

    Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes: -...

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