Acórdão nº 870/22 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Dezembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução21 de Dezembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 870/2022

Processo n.º 1042/2022

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A.. reclamou do despacho proferido por aquele tribunal, datado de 28 de setembro de 2022, que não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto nos presentes autos, sendo reclamado B..

2. O Autor, ora reclamado, propôs ação declarativa contra a Ré, ora reclamante, pedindo a condenação desta no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais por utilização indevida da sua imagem em videojogos. Por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Braga — Juízo Central Cível, decidiu-se declarar a incompetência internacional dos tribunais portugueses para a ação, absolvendo a Ré, ora reclamante, da instância.

Inconformado, o Autor, ora reclamado, recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão datado de 13 de janeiro de 2022, julgou o recurso totalmente improcedente e confirmou a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Novamente inconformado, o Autor, ora reclamado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão datado de 24 de maio de 2022, julgou o recurso procedente e, em consequência, revogou o acórdão recorrido e julgou improcedente a exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, determinando o prosseguimento do processo.

A Ré, ora reclamante, arguiu então a nulidade deste acórdão. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão datado de 13 de julho de 2022, indeferiu a arguição de nulidade.

3.1. A ora reclamante interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, em requerimento com o seguinte teor:

«A.., ré nos autos acima identificados, tendo sido notificada do acórdão de 13.07.2022, que confirmou o acórdão de 24.05.2022, ambos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), vem deles interpor recurso para o Tribunal Constitucional face ao entendimento normativo adotado naqueles arestos dos art.º 62.º, alínea b) do CPC, 351.º do CC e 38.º, n.º l da LOSJ, o que faz ao abrigo do disposto no art.º 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) e art.º 280.º, n.º 1, al. b) da Constituição da República Portuguesa (CRP) e, bem assim, com os seguintes fundamentos:

I -Objeto e enquadramento do recurso

1. Nestes autos o autor, jogador de futebol, imputa responsabilidade civil extracontratual à ré, sociedade norte-americana, nos termos do art.º 483.º do CC, por alegada inclusão não autorizada da sua imagem nos videojogos FIFA.

2. Os acórdãos do STJ de 24.05 e 13.07.2022 em crise determinaram que os tribunais portugueses têm competência internacional para o presente litígio, mas tal conclusão é alcançada exclusivamente através de uma interpretação normativa contra legem e em manifesta violação de disposições e princípios constitucionalmente consagrados: (i) princípio do estado de direito (e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas), (ii) princípio do processo equitativo e, bem assim, dos (iii) princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei.

3. Com efeito, como se verá, as conclusões jurídicas contidas naqueles acórdãos em matéria de competência internacional:

(i) assentam exclusivamente em factos que não foram alegados na petição inicial pelo autor e que não integram a causa de pedir, mas que, ainda assim, foram dados como provados através da aplicação pelo STJ, em última instância, de sucessivas presunções judiciais manifestamente ilegais;

(ii) aplicam ilegalmente um denominado "critério normativo de centro de interesses", critério esse inexistente na lei aplicável ao caso, sendo que não se verifica qualquer lacuna que implicasse o recurso a tal critério,

operando-se por isso uma interpretação normativa dos art.º 351.º do CC, 62.º, alínea b) do CPC e art.º 38.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), Lei n.º 62/2013 que é manifestamente inconstitucional.

4. Em primeira e segunda instância haviam sido proferidas decisões decretando a incompetência internacional dos tribunais portugueses, decisões essas agora revogadas pelo STJ.

5. Aliás, este litígio integra-se num conjunto de 25 (vinte e cinco) ações intentadas contra a ora ré por jogadores e ex-jogadores de futebol, portugueses e estrangeiros, por intermédio do mesmo mandatário judicial, nas quais a causa de pedir, os factos elencados na PI e o quadro legal invocado são essencialmente os mesmos a apreciar nestes autos.

6. Daí que, tal como nos presentes autos, em todas essas 25 ações se tenha vindo a discutir ao longo dos últimos 3 (três) anos a questão da incompetência internacional dos tribunais portugueses.

7. Tendo a jurisprudência vindo a revelar-se relativamente pacífica ao concluir que efetivamente os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes.

8. Mais concretamente, no sentido da incompetência dos tribunais portugueses foram já proferidos 8 (oito) acórdãos por todos os 5 (cinco) Tribunais da Relação portugueses e todos por unanimidade. Foram também proferidas 16 (dezasseis) sentenças pelos tribunais de primeira instância decretando a incompetência dos tribunais portugueses no âmbito das referidas 25 ações.

9. Em suma, até à prolação do acórdão do STJ de 24.05.2022, aqui impugnado, as decisões dos tribunais superiores foram no sentido de declarar a incompetência internacional dos tribunais portugueses.

10. Daí que a pertinência do presente recurso extravase o âmbito destes autos porque a mesmíssima questão - interpretação do art.º 351.2 d0 CC, do art.º 62.º, alínea b) do CPC e do art.º 38.º, n.º 1 da LOSJ, em sentido inconstitucional - se mostra colocada, nos exatos mesmos moldes, em todas as demais ações judiciais.

11. Com efeito, o acórdão do STJ de 24.05.2022 foi junto nas demais ações pelos respetivos autores e, no uso do direito de contraditório, à cautela, a ré suscitou a inconstitucionalidade do entendimento normativo efetuado pelo STJ.

12. A surpreendente interpretação perfilhada nos acórdãos do STJ em crise afastou completamente o quadro jurisprudencial nacional há muito consolidado de apreciação da competência: dando como assentes factos que não estão alegados na petição inicial e que foram presumidos, traindo a confiança dos destinatários das decisões e retirando qualquer resquício de previsibilidade na aplicação da lei!

13. A utilização de um denominado "critério normativo de centro de interesses", que não tem qualquer correspondência nos critérios legais da fonte interna, e na ausência de qualquer lacuna ou vazio legislativo ou jurisprudencial (contrariando, aliás a jurisprudência nesta mesmíssima matéria) constitui uma verdadeira derrogação do estado de direito e respetivo regime legal, além de extravasar os poderes jurisdicionais do tribunal e invadir a esfera do poder legislativo.

14. Ao contrário do que se afirma nos acórdãos em crise, é manifesto que o designado critério de centro de interesses não é normativo: este critério resulta exclusivamente da jurisprudência do TJUE a propósito da interpretação da norma do art.º 7.°, n.º 2 do Regulamento Europeu n.º 1215/2012.

15. Sucede que, desde logo, a norma do art.º 7.º, n.º 2 do Regulamento Europeu n.º 1215/2012 não é aplicável ao presente caso na medida em que ali se dispõe que: "As pessoas domiciliadas num Estado- Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: (...). Isto é, para

que aquele dispositivo se aplicasse seria necessário que a ré fosse domiciliada na União Europeia, o que não é o caso, porque a sua sede se situa nos EUA (tal como referido na petição inicial).

16. Podia então colocar-se a questão de saber se, ainda que aquele normativo não seja obviamente aplicável, a jurisprudência do TJUE que tem vindo a interpretar aquele artigo deve ser tida como fonte de direito no caso sub judice. De acordo com a jurisprudência do TJUE: no essencial, equipara- se o lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso ao local onde o dano se materializou, designadamente o lugar do centro de interesses do lesado.

17. Ora, este entendimento, abarcando o lugar de materialização do dano, não consta da letra da lei portuguesa, nem do seu espírito, porque no art.º 65.s. alínea b) do CPC consagrou-se critério diferente. Na lei portuguesa, consagrou-se o critério da causalidade da lesão em detrimento do lugar da sua materialização na esfera do lesado (causa versus resultado).

18. Daí que, a interpretação do art.º 62.º, alínea b) do CPC, no sentido de nele incluir o (erradamente designado) "critério normativo do centro de interesses", introduz doravante um fator de incerteza nas decisões dos tribunais e na confiança dos cidadãos porque se derroga judicialmente o critério da causalidade inscrito na lei e se consagra inovatoriamente um outro.

19. Estamos perante uma interpretação normativa disruptiva, inovadora e imprevisível face aos entendimentos firmados pelas demais instâncias judiciais, no âmbito destes autos, e também à luz de todos os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais conhecidos do art.º 351.º do CC, do art.º 62.º do CPC e do art.º 38.º, n.º 1 da LOSJ.

20. Sendo precisamente a referida interpretação normativa destas disposições legais - utilização ilegal de presunções judiciais e aplicação ilegal do "critério normativo de centro de interesses" - que motiva o presente recurso para o Tribunal Constitucional.

21. Esta questão assume uma dimensão particularmente relevante porque este litígio - como vimos - integra um vasto conjunto de 25 (vinte e cinco) ações intentadas onde está igualmente em causa a competência internacional.

22. Como se viu, a declaração de competência internacional operada pelo...

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