Acórdão nº 857/22 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Dezembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução21 de Dezembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 857/2022

Processo n.º 368/2020

3ª Secção

Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, em que é recorrente o Ministério Público e recorridos A. e o Estado Português, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), do despacho daquele Tribunal de 30 de abril de 2020, que recusou a aplicação «das normas constantes do segmento final do artigo 11-1 e do artigo 25-4, ambos do CPTA, na redação introduzida pela Lei 118/2019, de 17/09, por inconstitucionalidade material emergente da violação do parâmetro constante da primeira proposição do artigo 219-1 e 2, da CRP, bem como do conteúdo material dos princípios e normas dos artigos 112-5 e 165-1 da CRP.»

A., aqui recorrido, requereu ao Tribunal a quo o decretamento de uma providência cautelar com vista a assegurar o efeito útil de uma ação administrativa comum a propor contra o Estado Português. Este Tribunal promoveu a citação do Centro de Competências Jurídicas do Estado, nos termos previstos nos artigos 25.º, n.º 4, e 117.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro), que a transmitiu ao recorrente.

O Ministério Público, alegando agir «cumulativamente em nome próprio, como defensor da legalidade democrática (…), e como representante judiciário do Estado», arguiu junto do tribunal a quo a «inconstitucionalidade material do conjunto formado pelas normas constantes do segmento final do n.º 1 do art.º 11.º e do n.º 4 do art.º 25.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos», bem como a «nulidade, por falta de citação» de todo o processado. Apreciada a questão, o Tribunal a quo concluiu o seguinte:

«O artigo 11-1, do CPTA/2019, sob a epígrafe “patrocínio judiciário e representação em juízo”, dispõe que “nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público.”

Esta expressão gramatical “possibilidade” indica claramente, - e o intérprete tem de começar a interpretação legal pela letra da lei, nos termos do artigo 9, do CC-, a abertura da porta de entrada para outros representantes do Estado, na aceção acima desenvolvida de “Estado” e de “'representação' orgânica”, que não o Ministério Público, em caso que não pode o legislador fazê-lo por violação designadamente do disposto no artigo 219, da CRP.

Demonstração de que o preceito legal do artigo 11-1 abre a porta para um terreno constitucionalmente vedado é a de que a norma processual do artigo 25-4, do CPTA, que rege sobre «citações e notificações», vem dar-lhe imediata execução, dispondo que «quando seja demandado o Estado, (...), a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão (...) e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.».

Como refere o Autor, o legislador faz, e pode fazer, as suas opções, e, acrescentamos, que não compete aos tribunais julgar essas opções. Compete, porém, aos tribunais ajuizar sobre se essas opções respeitam ou ferem as normas e princípios estabelecidos na Constituição.

Com efeito, dispõe o artigo 204, da CRP, na sequência do artigo 202, da mesma CRP, que «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.» É isso o que ora nos ocupa.

Salvo o devido respeito, esta possibilidade, prevista no artigo 11-1, aliás, de imediato transformada numa concreta realidade, pelo artigo 25-4, ambos do CPTA, operada pela revisão de 2019, ofende os preceitos constitucionais invocados pelo Ministério Público, pelo que se impõe recusar a sua aplicação e, consequentemente, determinar a citação do Estado, aqui demandado enquanto pessoa coletiva pública geral, representado pelo Ministério Público neste Tribunal Administrativo de Círculo.

Não tendo sido citado o Estado Português, aqui demandado, no seu representante legal e orgânico que é o Ministério Público, no caso, junto deste Tribunal Administrativo, mas sim aquele Centro de Competências, não pode ter-se por formal e corretamente citado o Réu, pelo que procede também o requerimento do Ministério Público no respeita à citação, devendo, todavia, dada a fase inicial do processo em que nos encontramos, manter-se os atos processuais não incompatíveis, com exceção da citação, por serem aproveitáveis. (…)»

2. O Ministério Público recorreu desta decisão, explicitando que pretendia ver apreciada «a inconstitucionalidade da norma constante do segmento final do n.º 1 do artigo 11.º do CPTA, na redação introduzida pela Lei 118/2019, de 17/09, segundo a qual é consagrada apenas a “possibilidade” de representação do Estado pelo Ministério Público» bem como «da norma constante do n.º 4 do art.º 25.º do CPTA, na redação introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17/09, segundo a qual “quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo”, deixando assim, de acordo com tal previsão legal, o Ministério Público de ser citado nessas ações.»

3. Admitido o processo, o recorrente foi notificado para alegar, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 79.º da LTC, tendo apresentado as seguintes conclusões:

«III

(Conclusões)

1.ª) Delimitada negativamente, a controvérsia em apreço não respeita às preferências subjetivas de certos membros da comunidade jurídica quanto às funções que deverão ser confiadas ao Ministério Público, nomeadamente se a esta magistratura é ou não (e se sim, em que termos) de atribuir competência em matéria da representação judiciária do Estado.

2.ª) A controvérsia em apreço também não respeita às funções “naturais, própria, específicas ou típicas” do Ministério Público, pois esse é um tema essencialista ou ontológico, insuscetível de ser dirimido por métodos discursivos, e especificamente pelo discurso jurídico, não sendo, pois, matéria de análise de constitucionalidade.

3.ª) O que pode relevar nesta sede é o Ministério Público no seu papel de instituição judiciária, e desse ponto de vista a função de representação do Estado em juízo, nas causas cíveis e administrativas, e neste último caso especificamente em matéria do “contencioso das ações” (responsabilidade ou contrato), pode ser abonada em arraigada e ininterrupta tradição do direito português, remotamente filiada em instituições medievais, mas formalmente instituída pelo Decreto n.º 24, de 16 de maio de 1832 (“Decreto sobre a reforma das justiças”), vigorando até à presente data (CHAVES E CASTRO, DIAS FERREIRA, ALBERTO DOS REIS).

4.ª) Também noutras jurisdições europeias, designadamente da União Europeia, “o procurador representa o Estado, os ministérios e outros organismos governamentais no desenrolar dos processos” na Arménia, Azerbaijão, Croácia, Chipre, Geórgia, Grécia, Malta, República da Moldova, Federação Russa, Eslováquia e Ucrânia e, finalmente, mas não menos importante, em França (para além da sugestiva figura do “defensor do interesse público” da jurisdição administrativa alemã).

5.ª) À escala global, convém assinalar que nos Estados Unidos da América os US Attorneys, além da sua função de prossecução criminal, têm por função representar os Estados Unidos nas ações civis, como A. ou R.

6.ª) Delimitado positivamente, o tema da controvérsia é de direito constituído, mais especificamente de hermenêutica e concretização constitucional, ou seja, com referência aos fatores clássicos de interpretação, apurar os conteúdos normativos dos artigos 112.º, n.º 5, 165.º, n.º 1, al. p), e 219.º, n.º 1, e ainda n.º 2 e 4, todos da Constituição, e, depois, identificar os vínculos constitucionais que dos mesmos decorrem para o legislador, para determinar o (des)valor constitucional das normas jurídicas legais constantes dos preceitos dos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do CPTA2019, nos aspetos em causa.

7.ª) No específico plano da história constitucional, a competência de representação em juízo do Estado pelo Ministério Público foi consagrada pela Constituição de 1933 (artigo 117.º na versão originária, preceituando “O Estado é representado juntos dos Tribunais: 1.º Pelo Procurador Geral da República […]”; depois, na revisão de 1945, artigo 118.º, com a redação “O Estado será representado junto dos tribunais pelo Ministério Público”).

8.ª) Ulteriormente, a decisão constituinte originária da Constituição de 1976 foi igualmente no sentido de estabelecer tal atribuição de competência (art. 224.º, n.º 1).

9.ª) Decisão essa que foi constantemente reiterada pelo legislador constituinte derivado, em todas as sucessivas revisões constitucionais, de 1982 até à presente data, sendo que a fórmula consagrada na versão originária foi verdadeiramente ne varietur, pois ulteriormente, em todas as sucessivas revisões constitucionais, de 1982 (art. 224.º, n.º 1), 1989 (art. 221.º, n.º 1), 1992 (art. 221.º, n.º 1), 1997 (art. 219.º, n.º 1) 2001 (art. 219.º, n.º 1), 2004 (art. 219.º, n.º 1) e 2005 (art. 219.º, n.º 1) permaneceu imutável.

10.ª) A primeira competência atribuída ao Ministério Público pela fórmula do artigo 219.º, n.º 1, da Constituição, não é, como como certa “pré-compreensão” faria presumir, a prossecução penal, mas a de “representar o Estado” – esta...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT