Acórdão nº 846/22 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Dezembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. José João Abrantes
Data da Resolução20 de Dezembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 846/2022

Processo n.º 17/2022

1ª Secção

Relator: Conselheiro José João Abrantes

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A., S.A., intentou no Tribunal Tributário de Lisboa ação de impugnação judicial contra a liquidação, relativa ao ano de 2017, da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), no valor de € 5.769.362,01, ação que foi julgada improcedente por decisão proferida em 14 de maio de 2021.

1.1. Inconformada, interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), que negou provimento ao recurso, por acórdão de 7 de dezembro de 2021.

1.2. Desse acórdão interpôs então recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante, abreviadamente, LTC), tendo delimitado o seu objeto, na parte que ora releva, nos seguintes termos:

«A., S.A., Recorrente nos autos, notificada do douto Acórdão que negou provimento ao recurso interposto de sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, vem, ao abrigo do regime dos artigos 6º, 70º, n.ºs 1, alínea b), e 2, 71º, n.º 1, 72º, n.ºs 1, alínea b), e 2, 75º, n.º 1, e 75º-A, n.ºs 1 e 2, todos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional - LTC), interpor recurso daquele Acórdão para o Tribunal Constitucional, o qual requer que seja admitido, uma vez que o mesmo aplicou normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC).

As normas em causa são os artigos 2º, 3º, 4º, 11º e 12º do regime jurídico da “Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético”, criada pelo artigo 228º da Lei n.º 83º-C/2013, de 31 de dezembro, em vigor durante 2017 através do artigo 264.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2017).

No entendimento da Recorrente, as normas referidas violam os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da equivalência, emanações do princípio da Igualdade (artigo 13º da Constituição), da tributação das empresas pelo lucro real (n.º 2 do artigo 104º), ele próprio uma decorrência da capacidade contributiva e da Igualdade, da proporcionalidade (n.º 2 do artigo 18º), da livre iniciativa (artigo 61º), da propriedade privada (artigo 62º) e da não consignação (n.º 3 do artigo 105º).

A questão da inconstitucionalidade dos artigos em causa foi suscitada pela Recorrente na petição inicial que deu entrada no Tribunal Tributário de Lisboa, designadamente nos artigos 200º a 605º.

Para além disso, a mesma matéria é tratada nas alegações de recurso apresentadas neste Tribunal Central Administrativo - Sul, em toda a sua extensão, conforme depois traduzido nas conclusões A a P.»

As aí mencionadas conclusões A a P das alegações de recurso apresentadas no tribunal a quo referem, por sua vez, o seguinte:

«A. A Recorrente não exerce qualquer atividade no sector electroprodutor, pelo que em nada contribui para o problema da dívida tarifária do SEN, não beneficiando, pois, de nenhuma forma direta ou especial, da atividade do Estado exercida no âmbito do problema em causa (o mesmo acontecendo com grande parte dos sujeitos passivos da CESE).

B. Não tendo qualquer relação com a dívida tarifária do SEN, a Recorrente não contribuiu ou beneficiou das circunstâncias que geraram esse problema, pelo que não tem também relação com o consequente desequilíbrio orçamental que o Estado português assumiu como objetivo anular ou atenuar (mais uma vez, o mesmo acontecendo com grande parte dos sujeitos passivos da CESE).

C. A Recorrente não é parte da causa de tal desequilíbrio, nem retirará da atuação estadual nesse aspeto qualquer benefício que não seja partilhado, em princípio na mesma medida, por todos os particulares.

D. Relativamente ao financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético, que o legislador também inscreveu formalmente como justificação da CESE, não se conhecem, com um grau mínimo de probabilidade objetiva, qual a natureza, o conteúdo e a importância das mesmas, razão pela qual nunca poderemos dar por suficientemente demonstrada a sua indispensabilidade e, portanto, que os sujeitos passivos do tributo poderão em princípio, alguma vez, ser efetivos beneficiários de uma ou mais das políticas em causa. Ora, se não conseguimos para já vislumbrar uma probabilidade séria desse efetivo benefício, não está por enquanto comprovado o benefício potencial ou presumido.

E. Aliás, mesmo que pudéssemos estabelecer uma ligação entre um benefício decorrente das políticas em questão e a atividade das empresas energéticas que não atuam no sector da produção de eletricidade - no qual se gerou o problema da dívida tarifária e o consequente desequilíbrio orçamental -, sempre essa ligação seria insuficiente para assegurar a legitimidade da CESE, na medida em que aquelas empresas continuariam a suportar um tributo cuja receita (a restante receita) é afeta a um objetivo com o qual nada têm a ver (a redução da dívida tarifária do sector electroprodutor) e a um outro cuja solução beneficia de igual modo, geral e indiscriminadamente, todos os particulares - para além de ser ele próprio, em parte, uma consequência daquela dívida tarifária (a consolidação orçamental).

F. De tudo isto sobra que o único objetivo do tributo à luz do qual a sua exigência à Recorrente é percetível (ainda que não juridicamente sustentável) é o objetivo da consolidação das contas públicas, um desiderato tipicamente prosseguido através dos tributos unilaterais.

G. Em face do exposto, a CESE não cabe no campo dos tributos bilaterais ou sinalagmáticos (taxas ou contribuições financeiras), por não respeitar o princípio da equivalência: os montantes exigidos não o são para o exercício de uma atividade do Estado de que os sujeitos passivos concretamente em causa beneficiem (direta ou indiretamente, efetiva ou presumivelmente, de modo suficientemente distinto da generalidade dos particulares não abrangidos pela incidência do tributo), não sendo sequer possível dizer que a atividade a financiar é originada, específica ou genericamente, pela daqueles sujeitos passivos.

H. A CESE é, pois, um verdadeiro imposto - um imposto especial sobre alguns operadores de um sector de atividade específico, em razão da sua alegada capacidade contributiva particular.

I. A CESE é um imposto materialmente inconstitucional, por violação do princípio da capacidade contributiva, subprincípio em que se concretiza no campo dos impostos o princípio constitucional da Igualdade (artigo 13° da Constituição), porque a sua base de incidência subjetiva atinge contribuintes que pouco ou nada têm a ver com os fins declarados da "contribuição" (não são de todo beneficiados com as atividades estaduais que a receita pretende financiar nem deram origem aos problemas que aquela é suposto colmatar) - designadamente todos aqueles que não atuam no âmbito do sector da produção de eletricidade, como é caso da ora Recorrente.

J. Vista como um imposto sobre o rendimento, a CESE viola ainda o princípio da capacidade contributiva por, ao ter como base objetiva o valor dos ativos das empresas abrangidas, constituir uma aproximação indireta ou presumida aos lucros das mesmas - uma aproximação ou presunção fantasiosa, puramente conjeturada do rendimento real, que facilmente conduzirá a resultados arbitrários: com efeito, a CESE permite ao Estado apurar uma coleta sobre lucros ainda que nenhuma capacidade contributiva se revele efetivamente nessa forma, ou uma coleta igual ou superior aos lucros efetivamente obtidos.

K. Além disso, a CESE tem um efeito de dupla tributação e sobreposição ao IRC que é inaceitável, acentuado pela decisão do legislador de impedir que aquela seja dedutível em sede do referido imposto, o que define com especial clareza a violência do tributo e a sua inconstitucionalidade, mesmo se considerado como um imposto sobre o património ou uma contribuição financeira, pelo menos por violação do princípio da proporcionalidade.

L. E, na verdade, a CESE apresenta problemas inultrapassáveis também ao nível do respeito devido pelo princípio da proporcionalidade, o qual é violado, em primeiro lugar, na sua dimensão de idoneidade ou adequação, porque a CESE não é um instrumento tendente a resolver o problema da dívida tarifária do SEN - um dos objetivos legislativamente declarados da medida, ao qual é consignado uma parte importante da respetiva receita: não se trata de uma medida que possa assegurar a eliminação ou sequer uma atenuação séria, estrutural, dessa dívida tarifária (mediante uma alteração das regras vigentes em que assenta a sua existência), mas antes, simplesmente, de uma fonte de receita obtida a fim de o Estado continuar a assegurar o objetivo político central quanto à matéria em causa, ou seja, proteger os consumidores finais de eletricidade do esforço de redução da dívida tarifária, impedindo o aumento dos preços em medida pelo menos aproximada à exigida por aquela redução.

M. Neste sentido, a CESE é uma medida inócua e indiferente, tendo por referência a sua aproximação ao fim visado, e até contraproducente, porque produz o efeito negativo de adiar a resolução dos desequilíbrios do SEN e, assim, prolongar e acentuar o problema.

N. Depois, a CESE viola o princípio da proporcionalidade também porque é consignada em parte ao financiamento de políticas sociais e ambientais no mesmo ano em que, por exemplo e desde logo, foi reduzida a taxa de IRC em dois pontos percentuais, perdendo-se uma receita pública, já existente, que poderia obviamente servir para aquele fim (não está, assim, cumprida a dimensão da necessidade ou exigibilidade em que assenta a regra da proporcionalidade),

O. e ainda porque, apesar de os...

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