Acórdão nº 14456/18.1T8PRT.P3.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 15 de Dezembro de 2022

Magistrado ResponsávelVIEIRA E CUNHA
Data da Resolução15 de Dezembro de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo CAF - Confecções Amaral e Filhos, Ld.ª, intentou a presente acção, com processo de declaração e forma comum contra COSEC - Companhia de Seguros de Créditos, S.A., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de €37.031.98, acrescida de juros calculados à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Alegou ter celebrado com a Ré um contrato de seguro de crédito, sendo que ao abrigo do mesmo lhe participou, em 19 de abril de 2016, a “ameaça de sinistro” traduzida na “suspensão de pagamento” da cliente M..., SL., cuja insolvência veio a ser declarada.

Todavia, nada recebeu no processo de insolvência, sendo que, apesar de verificado sinistro abrangido pela cobertura do contratado seguro, a Ré recusa pagar-lhe a quantia contratualmente devida.

A Ré alegou ter-se verificado causa de exoneração da sua obrigação de indemnizar ao abrigo do contrato de seguro que firmou com a autora, porquanto esta, após a constituição da situação de “ameaça de sinistro”, continuou a fornecer bens e serviços à cliente, contrariando assim as condições gerais desse contrato.

Referiu ainda ocorrer causa de exclusão da sua responsabilidade, dado que o seguro que contratou com a autora não abrange os créditos constituídos sobre clientes que já se encontrem em situação de “ameaça de sinistro”.

As Decisões Judiciais Na decisão final proferida em 1ª instância, a acção foi julgada improcedente e a Ré absolvida do pedido – entendeu-se que a Autora incumpriu com normas constantes das condições gerais do seguro, no sentido de que sempre que se verificasse uma situação de ameaça de sinistro, o segurado obrigava-se a suspender as entregas de bens ou a prestação de serviços para o cliente em causa, salvo acordo prévio da Ré e sob pena de exoneração do pagamento de indemnização a cargo dessa Ré.

Recorrida tal decisão de apelação, por parte da Autora, na Relação entendeu-se proceder na íntegra a acção, agora por força do entendimento de que “não opera a cláusula de exclusão prevista em contrato de seguro de crédito, na qual se estabelece que ficam excluídos do seguro os créditos constituídos sobre clientes da segurada que já se encontrem em situação de “ameaça de sinistro”, quando esse evento se registou em relação a um crédito constituído em momento anterior ao início de vigência da respetiva cobertura relativamente ao cliente inadimplente”.

Inconformada agora a Ré, recorre de revista, sumariando-a com as seguintes conclusões: 1.ª Salvo o devido respeito, que é muito, o douto Acórdão recorrido decidiu incorrectamente que (1) a recorrente não se exonerou validamente da sua responsabilidade; (2) que não é aplicável a exclusão dos créditos em causa nos autos do contrato de seguro de crédito; (3) que a recorrente não podia excluir da cobertura os créditos em causa nos autos, (4) não reconhecendo oficiosamente o abuso de direito que configura o exercício do direito da acção pela recorrida e constituem as questões que submetemos à apreciação deste Supremo.

  1. O Tribunal a quo procurou saber qual o conceito de “ameaça de sinistro” expresso contratualmente mas analisando-o de forma direccionada e limitada à causa de exclusão citada, interpretando incorrectamente o contrato ajuizado, designadamente sem delimitar aquele conceito e sem identificar os pressupostos da constituição da “situação de ameaça de sinistro”, o que é inaceitável, considerando que a constituição da situação de ameaça de sinistro tem uma enorme relevância contratual, designadamente pelas importantes obrigações que fixa e pelas consequências do respectivo incumprimento.

  2. Para a conclusão constante da decisão recorrida, o Tribunal da Relação socorreu-se apenas do elemento gramatical do artigo 3.º das condições gerais da apólice e do texto da garantia n.º ...37 junto aos autos, sem vislumbrar que a interpretação assim limitada, prescindindo da análise global do contrato ajuizado, não podia conduzir a um resultado seguro, pelo que entendeu que se verifica a situação de ameaça de sinistro contratualmente relevante para os efeitos da exoneração e exclusão citada, quando reportada a créditos do segurado que estejam abrangidos pela cobertura do seguro, desprezando em absoluto a consideração da situação de ameaça de sinistro quando reportada a créditos do segurado que não gozem de garantia expressamente atribuída pela seguradora de créditos, o que constitui uma interpretação inadmissível e que teve reflexo nas respectivas decisões em recurso e que se encontram em absoluta desconformidade com o contrato de seguro ajuizado.

  3. A definição da situação da “ameaça de sinistro” e que interessa alcançar, não constando expressamente das definições contratuais, deve ser obtida como em qualquer outra interpretação, a partir dos elementos literais constantes do contrato de seguro ajuizado, em conformidade com as regras legais de interpretação a que o Tribunal recorrido estava vinculado, designadamente as impostas pelo artigo 238.º n.º1 do Código Civil, na medida em que o contrato de seguro é um negócio formal “e as declarações não podem valer sem um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento ainda que imperfeitamente expresso” e que o Tribunal a quo violou.

  4. Sem prejuízo daquela tarefa decorrente das regras legais da interpretação, o intérprete devia também procurar perceber e apreender quais os efeitos/objectivos que foram pretendidos com a concreta estipulação contratual a interpretar; tarefa interpretativa que o Tribunal da Relação também não operou, ou seja identificando as razões que presidiram à previsão contratual daquela “situação de ameaça de sinistro”, considerando designadamente as importantes consequências contratuais da sua constituição.

  5. Seguindo de perto a doutrina sobre a matéria, a “ameaça de sinistro” é um conceito típico dos contratos de seguro de créditos e verifica-se sempre que um crédito se mantenha em divida posteriormente à data do respectivo vencimento, inicial ou prorrogado e o segurado não obtenha o seu pagamento em determinado prazo previsto na apólice de seguro.

  6. O contrato ajuizado e a interpretar identifica no artigo 5.º II alínea a) das Condições Gerais que a ameaça de sinistro constitui-se, quando: A – “Seja comunicado à seguradora um atraso ou falta de pagamento de um CRÉDITO SEGURO ou” B – “Em qualquer caso, quando se mantenha o não pagamento, total ou parcial, de CRÉDITO, após o decurso do prazo estipulado na Apólice para prorrogações sem necessidade de autorização prévia da Cosec”.

  7. Do elemento literal expresso na conclusão anterior resulta a estipulação de dois “tipos” ou conceitos de créditos, cujo atraso ou não pagamento se encontra contratualmente previsto para desencadear a situação de “ameaça de sinistro”, pois, por um lado, refere-se a “CRÉDITO SEGURO” (o que goza da garantia do seguro) e por outro singelamente a “CRÉDITO” (independentemente de gozar de garantia do seguro).

  8. Ao limitar a interpretação das situações de “ameaça de sinistro” apenas como reportados a “CRÉDITOS SEGUROS”, o Tribunal da Relação violou flagrantemente o disposto no artigo 238.º n.º1 do Código Civil, na medida em que nos encontramos no domínio do negócio formal e a declaração não pode valer sem um mínimo de correspondência no texto do que se encontra contratualmente estipulado, sendo certo que tal estipulação reporta-se tanto a “CRÉDITOS”, como a “CRÉDITOS SEGUROS”, e não fornece qualquer suporte à incorrecta interpretação do Tribunal recorrido a implicar a sua revogação, uma vez que a “situação de ameaça de sinistro” se reporta expressa e literalmente, não só aos créditos que gozam de garantia, mas também a todos os outros créditos do segurado.

  9. Aliás, a conclusão anterior impõe-se da análise das restantes alíneas daquele artigo 5.º II das condições gerais, que se referem tanto a “CRÉDITOS”, como a “CRÉDITOS SEGUROS”, pois a alínea b) refere-se singelamente a “CRÉDITO” (ou seja independentemente de gozar ou não da garantia); já a alínea c) refere-se a “CRÉDITOS SEGUROS” (o que goza de garantia), tendo sido estipulados em relação a cada um daqueles “tipos” de créditos os respectivos actos ou factos desencadeadores da constituição da ameaça de sinistro.

  10. Naturalmente que para a discussão relevam os conceitos de “crédito” e de “crédito seguro” o primeiro expresso no artigo preliminar das condições gerais, a definir que se consideram como “CRÉDITOS - As quantias facturadas ou debitadas pelo segurado, com pagamento a prazo, emergentes das operações identificadas nas condições particulares da apólice”, o que significa que aquele conceito contratual, prescinde completamente da existência de cobertura do contrato de seguro, ou seja, abstrai de qualquer garantia concedida pela seguradora.

  11. Com recurso ao n.º 1 do artigo 3.º das mesmas condições gerais, verifica-se que diferentemente de “CRÉDITOS”, os “CRÉDITOS SEGUROS”, consubstanciam um conceito mais restrito, pois correspondem aos “créditos sobre clientes estabelecidos nos mercados previsto nas condições particulares até aos “LIMITES DE CRÉDITOS” fixados ou aceites pela Cosec para cada cliente que se constituam durante a vigência da Apólice”.

  12. Ora, como decorre do ponto II do citado artigo 5.º, quer os “CRÉDITOS”, quer os “CRÉDITOS SEGUROS”, encontram previsão contratual expressa literalmente como aptos para desencadearem a situação de ameaça de sinistro, motivos pelos quais a interpretação do Tribunal recorrido encontra desconformidade com a regra expressa no artigo 238.º n.º1 do Código Civil e não pode manter-se, sendo certo que a decisão recorrida, fez tábua rasa do que literalmente está expresso no contrato de seguro de crédito ajuizado, decidindo que a interpretação para situação de “ameaça de sinistro” se reporta apenas aos CRÉDITOS SEGUROS, apesar do contrato formal constar expressamente que aquela situação também se reporta a “CRÉDITOS”.

  13. Certo é que o Tribunal recorrido não assumiu, pelo menos de...

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