Acórdão nº 3731/21.8T8BRG.G1-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 15 de Dezembro de 2022
Magistrado Responsável | ANA PAULA LOBO |
Data da Resolução | 15 de Dezembro de 2022 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
I – Relatório I.1 – Questões a decidir Electronic Arts Inc., ré nos autos acima devidamente identificados, tendo sido notificada do acórdão de 13.07.2022 e com ele não se conformando, interpôs recurso de revista, nos termos dos art.º 629.º, n.º 2, alínea a) e 671.º, n.º 3, parte inicial (violação das regras de competência internacional), 631.º, n.º 1, 638.º, n.º 1, todos do CPC.
Apresentou as seguintes alegações que terminam com as conclusões
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O presente recurso de revista impugna o acórdão de 13.07.2022 do TRG, pelo qual se declarou a competência internacional do Juízo Central Cível ... para tramitar esta ação, recurso admissível nos termos do art.º 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC já que está em causa a infração de regras de competência internacional.
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A ré considera a decisão ilegal, com base na violação de lei substantiva, processual e da própria Constituição da República Portuguesa, destacando-se, entre outros, as seguintes normas e princípios jurídicos: – princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros, princípio da coincidência, princípio da causalidade, princípio do Estado de Direito, princípio da proteção ou tutela da confiança, princípio da soberania, princípio da igualdade, princípio do processo equitativo e da igualdade das partes, princípio da tutela jurisdicional efetiva, princípio do dever de obediência dos tribunais à lei, princípio da separação dos poderes; - art.º 2.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa; – art.º 1.º, 9.º e 351.º do CC; – art.º 5.º, n.º 1, 62.º, 71.º, n.º 2 e 608.º, n.º 2 do CPC; – art.º 22.º e 38.º, n.º 1 da LOSJ.
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A apreciação da competência internacional é efetuada exclusivamente com base nos factos alegados na petição inicial, sem qualquer indagação probatória ou aplicação de presunções judiciais – art.º 38.º da LSOJ e, entre muitos outros, acórdão do TRE de 15.12.2016, Proc. n.º 1330/16.5T8FAR.E1; acórdão do TRG de 16.11.2020, Proc. n.º 114083/18.7YIPRT.G1.
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Sucede que o acórdão em crise entendeu recorrer a factos não alegados na petição inicial, assumindo por via de presunção judicial que (i) o autor reside em Portugal em decorrência da alegação de ter representado clubes portugueses, (ii) que tem o seu centro de interesses em Portugal e (iii) que foi no nosso país que sofreu os danos–danos que não estão concretizados na PI.
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O acórdão revidendo suporta-se, desta forma, na existência não invocada de um centro de interesses do autor em Portugal e em a factos que não se referem à causa de pedir, contrariando frontalmente o regime legal aplicável, fixado no art.º 62.º do CPC.
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A causa de pedir deste pleito é a alegada violação do direito de imagem do autor, pela aposição não autorizada da sua imagem nos jogos FIFA, não devendo ser considerados outros factos que não a integrem, como seja o exercício da atividade de futebolista pelo autor a dado momento em Portugal.
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A decisão do TRG, apesar de reconhecer ser inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, incluindo o seu art.º 7.º, n.º 2, sustenta-se no conceito jurisprudencial de centro de interesses desenvolvido pelo TJUE a propósito dessa norma.
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A ré tem sede nos EUA e por isso o regulamento n.º 1215/2012 não lhe é aplicável, dado que este só abrange casos em que a entidade demandada tem sede num Estado-Membro.
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A jurisprudência do TJUE apenas se debruça, como resulta do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia em interpretar o direito da União, sendo expressamente proibido ao TJUE interpretar direito nacional dos Estados-Membros.
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Restrição que visa efetivar o princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros e dos seus órgãos jurisdicionais sobre o seu direito nacional, não tendo o TJUE apetência ou conhecimentos para se debruçar sobre o direito interno.
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Não sendo aplicável o regulamento n.º 1215/2012, não podem valer igualmente os conceitos jurisprudenciais desenvolvidos pelo TJUE à luz desse regulamento, sendo por isso vedado aos tribunais portugueses aplicar o conceito de centro de interesses por tal redundar em aplicação contra legem, designadamente contra o regime legal aplicável e autossuficiente consagrado no art.º 62.º do CPC.
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Acresce que a própria jurisprudência do TJUE se vem consolidando no sentido de defender que o conceito de “lugar onde ocorreu o dano” deve ser interpretado muito restritamente e dando relevância ao local de produção do dano inicial (parágrafo 21 do acórdão do TJUE de 19.09.1995, Processo n.º C-364/93; parágrafos 19 e 21 do acórdão do TJUE de 10.06.2004, Proc. n.º C-168/02; e parágrafos 34 e 35 do acórdão do TJUE de 16.06.2016, Proc. n.º C-12/15).
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Em todo o caso, sendo inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, o CPC estabelece no art.º 62.º do CPC o regime interno que define quais os fatores de atribuição da competência internacional.
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Este regime deve ser interpretado e aplicado de acordo com os critérios legais de interpretação das normas fixado no art.º 9.º do CC: elementos literal, teleológico, sistemático e histórico.
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As fontes de direito português são as leis e diplomas equiparados (art.º 1.º do CC), em nada relevando a jurisprudência do TJUE sobre normas que não estão em causa, sob nenhuma forma, nestes autos.
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A apreciação da competência internacional nestes autos deve ser dirimida exclusivamente à luz do art.º 62.º do CPC e critérios aí elencados, a saber: – alínea a): critério da coincidência; – alínea b): critério da causalidade; e – alínea c): critério da necessidade.
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Estes critérios devem ser ponderados à luz da factualidade constante da petição inicial, assumindo-a, para este efeito como verdadeira, e sem proceder a quaisquer indagações probatórias, destacando-se do elenco da petição inicial, a seguinte factualidade relevante: (i) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América; (ii) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor não alega que a ré o faz em Portugal (artigo n.º 1 e 2 da petição inicial) – ou seja, de acordo com a própria alegação do autor, não há qualquer atuação da ré em território nacional; (iii) O autor refere que “…a ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA S... Sarl…” (artigo n.º 2 da petição inicial), o que evidencia que a ré não atua em Portugal ou, sequer, na Europa; (iv) O ato ilícito que o autor imputa à ré consiste na utilização da sua imagem que ocorrerá aquando da produção dos jogos objeto dos presentes autos, sendo certo que em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré produz, em Portugal, os jogos FIFA; (v) De igual modo, o autor não afirma, em momento algum, que a ré vende, em Portugal, os jogos FIFA, chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros e que estes assumem total responsabilidade por esses atos (artigos n.º 2 da petição inicial); (vi) Ainda que assim não fosse – o que não se concede – o ato de venda dos jogos FIFA não é um ato ilícito ou, sequer, um ato gerador de danos para o autor; (vii) Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, na petição inicial, nem tampouco como ocorrendo em Portugal (tampouco sendo possível identificar o momento temporal da ocorrência dos danos hipoteticamente sofridos pelo autor).
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Destes factos, verifica-se que: – nenhum facto territorialmente localizado em Portugal foi alegado pelo autor; – não se imputa à ré a prática de atos em Portugal; – não há na petição inicial concretização de danos; – não há alegação do momento e lugar do sofrimento desses danos; – não há nenhum facto que preencha os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual; – não se invoca qualquer dificuldade na demanda da ré no local da sua sede.
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De acordo com o critério da coincidência, o tribunal português será internacionalmente competente se esta ação pudesse ser proposta no nosso país, segundo as regras de competência territorial do CPC.
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Valendo, nesta ação de responsabilidade civil extracontratual, a regra do art.º 71.º, n.º 2 do CPC: o tribunal competente é o do lugar onde o facto ocorreu; u) O autor não imputa qualquer ato praticado pela ré em Portugal e afirma que a ré não tem atividade na Europa. Mais alega que é uma entidade terceira que comercializa e assume a responsabilidade pela venda dos jogos FIFA.
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A ré não pratica qualquer ato lícito ou ilícito, em Portugal, sendo que os autos imputados pelo autor à ré localizados no estrangeiro, designadamente a produção dos jogos FIFA com a aposição da imagem do autor.
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O facto ilícito assacado à ré ocorre no estrangeiro, não relevando a difusão desse ato por terceiros – vide, em acórdão relativo à difusão de conteúdo na televisão nacional, o acórdão do TRP de 18.03.1999, Proc. n.º 9831155, no qual o se determinou que o tribunal territorialmente competente era o local do estudo de televisão e não o tribunal do local onde o autor alegou ter sofrido danos, designadamente no seu domicílio.
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Os tribunais portugueses não são, desta forma, competentes ao abrigo da alínea a) do art.º 62.º.
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Quanto ao fator de conexão previsto na alínea b) – critério da causalidade –, impunha-se ao autor alegar factos integradores da causa de pedir ocorridos nosso país.
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No entanto, nem os factos alegados na petição inicial, nem os documentos juntos são, em tese, aptos a tal.
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Não há, em toda a petição inicial, um único facto alegado integrador da causa de pedir ocorrido em Portugal.
bb) Não foi concretizado qualquer dano sofrido pelo autor, tampouco em território nacional, nem se indicando o momento em que tal se produziu.
cc) Sem a alegação do “quando” e “onde” desse dano, é impossível afirmar que o dano ocorreu em Portugal para efeitos de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, na medida em que, na decisão de competência, o Tribunal se deve ater aos factos alegados pelo autor.
dd) Não alegando o autor onde se encontrava quando sofreu danos, não compete ao...
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