Acórdão nº 939/16.1T8LSB-H.L1-2 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 24 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelPEDRO MARTINS
Data da Resolução24 de Novembro de 2022
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados: A K-Lda, autora, veio recorrer, sem resposta da contraparte, do despacho que decidiu a reclamação da conta de custas que ela tinha apresentado, recurso que tem o fim de que tal decisão seja revogada e substituída por outra que ordene a reforma da conta nos termos por ela pretendidos.

Levanta várias questões que se passam a analisar sucessivamente: (I) A 1.ª diz respeito à aplicação do art. 14/9 do RCP.

Este artigo rege a oportunidade do pagamento da taxa de justiça e no seu n.º 9 dispõe o seguinte: “Nas situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do n.º 7 do artigo 6.º [do RCP], o responsável pelo impulso processual que não seja condenado a final fica dispensado do referido pagamento, o qual é imputado à parte vencida e considerado na conta a final.” A autora diz que foi vencedora na acção e nos recursos, pelo que na conta das suas custas não deviam ter sido inscritos os valores das taxas de justiça remanescentes. Logo a seguir faz a precisão de que foi apenas vencedora parcial e o que quer é que apenas sejam consideradas, na sua conta, as taxas de justiça remanescentes na proporção do seu decaimento, imputando-se o resto na conta da ré.

Como fundamentação, em síntese e com numeração deste TRL, diz o seguinte: I - Se a responsabilidade do pagamento inicial da taxa de justiça (com a prática do acto) depende única e exclusivamente da autoria do impulso processual (paga a taxa quem deduzir o incidente, quem contra-alegar, quem reconvir, etc.), já o apuramento a responsabilidade final pelo pagamento das custas é feito na conta de custas e em harmonia com a decisão sobre o mérito da acção e de cada um desses incidentes ou procedimentos, tal como o exige o art. 30/1 do RCP ("A conta é elaborada de harmonia com o julgado em última instância") e, bem assim, art. 6/7 do RCP ("[...] o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final").

II – E esse apuramento assenta, a título principal, no princípio da causalidade, concretizado designadamente nas regras relativas à sucumbência: as custas devem ser pagas pela parte vencida, na proporção do seu decaimento (artigo 527/1, primeira parte, e 2, do CPC), sendo para o efeito, essencial, que o tribunal que julga a causa dê cumprimento ao art. 607/6 do CPC, procedendo no final da decisão à "condena[ção] [d]os responsáveis pelas custas processuais, indicando a proporção da respectiva responsabilidade".

III - O princípio da causalidade é também concretizado no que diz respeito ao pagamento do remanescente da taxa de justiça nas causas de valor superior a 275.000€; concretamente, dispondo o art. 6/7 do RCP que o remanescente é considerado na conta final, dispõe por sua vez o artigo 14/9 do RCP que "o responsável pelo impulso processual que não seja condenado a final fica dispensado do referido pagamento [do remanescente], o qual é imputado à parte vencida e considerado na conta final".

IV – Por força do disposto no artigo 14/9 do RCP, o instituto das custas de parte apenas terá relevância no contexto da recuperação, da parte vencida, das custas autoliquidadas e pagas com o impulso processual, antes da definição da responsabilidade final por custas.

V – A sufragar-se outro entendimento ter-se-ia o seguinte absurdo processual: estando definida, com força de caso julgado, a responsabilidade por custas da acção, a autora-vencedora tem de proceder ao pagamento do remanescente da taxa de justiça para, de seguida, reclamar o seu reembolso da ré-vencida a título de custas de parte; facilmente se concluirá que a justiça fica mais bem servida se, nessa mesma hipótese, o pagamento do remanescente for logo directamente reclamando daquele que é o seu responsável final (a parte vencida), assim se dando cumprimento ao julgado e se evitando a prática de actos inúteis (art. 130 do CPC); foi para isto, e para evitar aquele absurdo jurídico-processual, que a disciplina do art. 14/9 do RCP foi instituída.

VI - A responsabilização da autora pelas custas da acção e respectivo recurso desconsidera, por completo, de forma ilegal, quer as decisões sobre custas proferidas pelas instâncias em cumprimento do disposto do artigo 607/6 do CPC (portanto, violação do respectivo caso julgado), quer os dispositivos relevantes do RCP sobre a harmonização da conta com esses julgados (cf. artigos 6/7 e 30/1 do RCP), tudo em violação do princípio da causalidade (cf. artigo 527/1 do CPC) e do art. 14/9 do RCP.

VII - O art. 14/9 do RCP, antes das alterações introduzidas pela Lei 27/2019 de 28/03, tinha uma redacção que seria mais compatível com a posição do tribunal recorrido, isto é, de que o vencimento da acção apenas teria relevância em sede de custas de parte: "Nas situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do n.º 7 do artigo 6.º e o responsável pelo impulso processual não seja condenado a final, o mesmo deve ser notificado para efectuar o referido pagamento, no prazo de 10 dias a contar da notificação da decisão que ponha termo ao processo." VIII - Mas a norma que impõe a obrigatoriedade de pagamento do remanescente da taxa de justiça ao réu que venceu totalmente o processo, obrigando-a a pedir o montante que pagou em sede de custas de parte, resultante do artigo 14/9 do RCP foi declarada inconstitucional por ordens de razões idênticas às aludidas: "comprime excessivamente o direito fundamental de acesso à justiça, previsto no artigo 20/1 da Constituição, impondo um ónus injustificado face ao interesse pública em presença em violação do princípio da proporcionalidade decorrente do artigo 18/2 da CRP” (acórdão do Tribunal Constitucional 615/2018, processo 1200/17).

IX - E foi depois alterada para a actual redacção do art. 14/9, sendo que esta é de aplicação imediata aos processos que se achassem pendentes desde momento anterior ao da sua entrada em vigor, como o dizem os acórdãos do TRG de 01/10/2020, processo 709/16.7T8BRG.G1, do TRL de 29/10/2019, processo 994/12.3TBCSR.L2-1.

X - No caso em que a dita interpretação (a dada pelo tribunal a quo, de que o autor tem de pagar o remanescente da taxa de justiça independentemente do respectivo vencimento / decaimento na acção ou em qualquer incidente ou apenso, obrigando-o a obter o seu ressarcimento através das custas de parte) tivesse cabimento na referida norma, então a mesma seria inconstitucional por violação da garantia constitucional do acesso aos tribunais e o princípio da proporcionalidade, previstos, respectivamente, nos artigos 20 e 18/2 da CRP.

O Sr. funcionário que elaborou a conta diz: “O autor começa, desde logo, por pretender efectuar o pagamento das custas na proporção do respectivo decaimento.

Parece-nos que não tem razão, visto que, quer o artigo 529/2 do CPC, quer o artigo 6/1 do RCP, determinam que a taxa de justiça é paga pelo impulso processual.

Assim sendo, o vencimento/decaimento é relevante, e/ou decisivo, no instituto das custas de parte." O parecer do MP de 29/04/2022 e a decisão sobre a reclamação de 04/05/2022 seguem a posição do contador.

* Apreciação: O âmbito de aplicação do art. 14/9 do RCP Repare-se, antes de mais, que a norma do art. 14/9 do RCP rege sobre a oportunidade de pagamento e sobre as situações em que deva ser pago o remanescente nos termos do art. 6/7 do RCP; ou seja está a pressupor que o remanescente não foi dispensado (ou não o foi totalmente).

Dito de outro modo, a norma está a dispor sobre a quem deve ser imputada a obrigação de pagamento do remanescente de uma taxa de justiça, estando já estabelecido definitivamente que a obrigação de pagamento existe e a medida da mesma. Quando a norma fala na dispensa do pagamento por uma das partes, é porque imputa essa obrigação de pagamento à outra parte. Portanto, não há dispensa objectiva da taxa, mas sim uma imputação dela a uma parte diversa daquela que a deveria originalmente.

Em suma, e no que importa, não se está perante um caso de dispensa da taxa de justiça remanescente como no caso do art. 6/7 do RCP, mas sim de, na elaboração da conta de cada uma das partes, imputar a obrigação do pagamento dessa taxa, não dispensada, a uma delas (nesta parte, não se está de acordo, por isso, com, por exemplo, aquilo que parece sugerido pelo ac. do TRL de 29/10/2019, processo 994/12.3TBCSR.L2-1, quando diz “O legislador [com a nova redacção do art. 14/9] deixou, pois, de fazer depender a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça de requerimento do interessado – com as vicissitudes e conflitos surgidos a esse propósito, mormente quanto ao timing em que esse pedido devia ser formulado –, nem de apreciação (oficiosa) do juiz, para estabelecer uma dispensa geral e automática […].” Não é disto que se trata, visto que não há uma dispensa geral, há apenas uma dispensa subjectiva, relativa a um sujeito, sendo a taxa imputada ao outro, e as questões relativas ao pedido de dispensa de pagamento, pela/s parte/s que a/s tiver/em de pagar, continuam a colocar-se, tal como o tribunal tem de continuar a ponderar a dispensa para efeitos do art. 6/7 do RCP. O artigo 14/9 aplica-se apenas à taxa remanescente que não tenha sido dispensada nos termos do art. 6/7 do RCP.

Posto isto, A norma parece tratar apenas das situações em que um dos responsáveis pelo pagamento da taxa de justiça não seja condenado a final. Ora, como se verá a seguir, visto que a autora foi condenada quer na acção quer na apelação, dir-se-ia que a norma não se lhe aplicaria.

No sentido de que a norma só se aplica para o caso de o responsável pelo impulso processual não ter sido condenado em nada (isto é, vencimento / decaimento total), foi a interpretação feita por Salvador da Costa, no estudo de 15/04/2019 feito pouco depois da entrada em vigor da Lei 27/2019, de 28/03, que deu ao art. 14/9 do RCP a redacção transcrita acima, ALTERAÇÃO DO REGIME DAS CUSTAS PELA LEI N.º 27/2019, DE 28 DE MARÇO, publicado no blog do IPPC A 16/04/2019...

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