Acórdão nº 782/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022

Data17 Novembro 2022
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 782/2022

Processo n.º 543/2022

3ª Secção

Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que é recorrente A., S.A. e recorrida a Autoridade Tributária e Aduaneira, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), do acórdão proferido pela Segunda Subsecção de Contencioso Tributário daquele Tribunal, em 24 de março de 2022, que negou provimento ao recurso interposto da decisão de primeira instância. Esta decisão julgou improcedente a impugnação judicial apresentada na sequência do despacho de indeferimento proferido na reclamação graciosa da autoliquidação da Contribuição Financeira sobre o Setor Energético (CESE), criada através da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, referente ao ano de 2017, no valor de € 201.258,52.

2. A recorrente interpôs, então, recurso para este Tribunal, através de requerimento com o seguinte teor:

«A., S.A., Recorrente nos autos, notificada do douto Acórdão que negou provimento ao recurso interposto de Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, vem, ao abrigo do regime dos artigos 6º, 70º, n.ºs 1, alínea b), e 2, 71º, n.º 1, 72º, n.ºs 1, alínea b), e 2, 75º, n.º 1, e 75º-A, n.ºs 1 e 2, todos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional - LTC), interpor recurso daquele Acórdão para o Tribunal Constitucional, o qual requer que seja admitido, uma vez que o mesmo aplicou normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC).

As normas em causa são os artigos 2º, 3º, 4º, 11º e 12º do regime jurídico da "Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético", criada pelo artigo 228º da Lei n.º 83°-C/2013, de 31 de Dezembro, em vigor durante 2017 através do artigo 264.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2017).

No entendimento da Recorrente, as normas referidas violam os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da equivalência, emanações do princípio da Igualdade (artigo 13º da Constituição), da tributação das empresas pelo lucro real (n.º 2 do artigo 104º), ele próprio uma decorrência da capacidade contributiva e da Igualdade, da proporcionalidade (n.º 2 do artigo 18º), da livre iniciativa (artigo 61º), da propriedade privada (artigo 62º) e da não consignação (n.º 3 do artigo 105º).

A questão da inconstitucionalidade dos artigos aludidos é a causa de pedir suscitada pela Recorrente quer na petição inicial que deu entrada no Tribunal Tributário de Lisboa (cfr. os artigos 116º e seguintes) quer nas alegações de recurso apresentadas neste Tribunal Central Administrativo (cfr. páginas 2 e seguintes, bem como todas as conclusões), conforme de resto de corre o acórdão recorrido».

3. Notificada para o efeito, a recorrente produziu alegações, concluindo nos seguintes termos:

«[…]

A. A CESE foi estabelecida com a intenção de constituir uma medida extraordinária (conforme decorre, aliás, da sua própria designação), no âmbito e a propósito da negociação e cumprimento do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) acordado entre o Estado português, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, que vigorou entre 2011 e 2014 (vulgo “programa da Troika”). Assim sendo, era suposto que a CESE vigorasse por um período transitório e limitado. Porém, desde que foi criada, a medida tem vindo a ser prorrogada anualmente, até ao presente, estando já no nono ano de vigência (quase uma década). O período em causa nos presentes autos, 2017, foi o quarto ano em que a CESE esteve em vigor.

B. Quer agora, em 2022, quer no ano aqui em questão, 2017, estamos a falar de momentos por reporte aos quais foram há muito ultrapassadas as circunstâncias que justificaram a permanência excecional e transitória da CESE na nossa ordem jurídica. De acordo com a jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional, essas circunstâncias reconduzem-se à situação de emergência financeira que a República Portuguesa atravessou entre o início e meados da década passada.

C. A essa luz, tanto os atuais nove anos de duração da CESE quanto os quatro que ela já levava em 2017 configuram uma situação óbvia de uso excessivo e inconstitucional do poder do Estado, que requer com urgência uma intervenção que o limite – pelo menos, como ultima ratio, uma intervenção judicial. É essa intervenção que se requer a este Tribunal, enquanto garante máximo dos princípios constitucionais em que se baseia a ordem jurídico-política portuguesa.

D. Segundo o Tribunal, a conformidade da CESE com a Constituição mantém-se apenas enquanto ela puder ser considerada uma medida extraordinária, pelo que saber se ela ainda merece ou não essa qualificação é uma questão central, um critério fundamental que deve orientar a apreciação da sua validade ou invalidade. Ora, à luz da jurisprudência, não faz sentido que, no quinto ano de vigência da medida, ainda se possa considerar admissível a permanência da CESE na ordem jurídica. É que não é só a urgência da receita gerada que despareceu (em 2017, Portugal não estava já na situação financeira de há nove anos. Nessa altura, aliás, o Governo inclusivamente celebrava o facto de termos ultrapassado essa situação); desapareceu também a urgência de o tributo existir naquelas condições – condições essas que, lembre-se, este Tribunal aceitou porque eram «de fácil implementação e aplicação para um período de aplicação transitório e certo, onde não se justificaria a implementação de critérios, porventura mais adequados (…), mas muito complexos e com elevados custos de cumprimento, ou seja, totalmente desajustados à urgência do caso pretendido».

E. Pois bem: para o Tribunal (por exemplo, no Acórdão n.º 532/2021), saber se a CESE reveste ou não natureza extraordinária é uma pergunta cuja resposta tem de ser determinada por um “critério conjuntural”, em cada ano de vigência, à luz da “verificação periódica de um certo estado de coisas”.

F. No entanto, esta circunstância de a validade da CESE tem de ser apreciada ano a ano, de acordo com a manutenção ou não do contexto que justificou a sua criação, implica que não nos possamos desviar de alguns princípios essenciais. Em primeiro lugar, sob pena de se abrir a porta à maior arbitrariedade possível, ao configurarem-se as razões que justificam a continuidade do tributo na ordem jurídica, não podemos estar permanentemente a pesquisar razões novas que sustentem, por exemplo, a natureza extraordinária da CESE.

G. É verdade que, potencialmente e em abstrato, em todos anos, até à eternidade, existirão por certo no Estado português circunstâncias (por exemplo, de índole orçamental) que poderão justificar a necessidade de receitas tributárias acrescidas, de natureza extraordinária; todavia, quando nos debruçamos sobre uma determinada medida concreta, para averiguar se ela é (ou ainda permanece) constitucionalmente válida – desde logo à luz da sua eventual natureza extraordinária – , não nos podemos afastar dos motivos que levaram o legislador a criá-la: é que, se optarmos por esse afastamento, estamos a aceitar que pode deixar de haver – ou deixar de ser impossível averiguar – qualquer correspondência entre a razão de ser do tributo e a necessidade de o exigir especificamente aos operadores económicos que são os seus sujeitos passivos.

H. Em vez de estarmos sempre a justificar a CESE com razões novas, ou com razões que, mesmo existindo à data da criação do tributo, não consta dos documentos legislativos ou de qualquer elemento do contexto da sua criação que tenham sido levadas em conta, aquilo a que estamos adstritos é a perguntar se as razões que presidiram à implementação do tributo se mantêm ou não, ou se foram cumpridas com a receita gerada pela medida. Caso contrário, estaremos perante uma medida violadora do princípio da proporcionalidade, por não existir correspondência entre a sua suposta necessidade e os objetivos determinado pelo legislador.

I. Nesse caso, só há duas hipóteses: ou a CESE tem de ser expurgada da ordem jurídica ou as suas regras têm de ser alteradas, com – nas palavras do TC – “a implementação de critérios, porventura mais adequados” à vigência do tributo posterior ao momento extraordinário da sua criação.

J. De resto, diga-se também, em segundo lugar, que não se pode dar justificações para a CESE que alterem natureza do tributo, a não ser que daí se retirem as devidas consequências, por exemplo e desde logo, considerando que não se trata de uma contribuição financeira, mas sim de um imposto. Lembre-se que a qualificação da CESE como uma contribuição, estabelecida no Acórdão n.º 7/2019, tinha por pressuposto que a atividade dos sujeitos passivos dava causa aos problemas que o tributo visava ajudar a resolver e/ou beneficiavam da atuação do Estado na resolução desses problemas. Porém, se a CESE passar a ser justificada sem apelo a essa ideia de bilateralidade, então é porque é um imposto e tem de ser tratada como tal, de acordo com os princípios que conformam a constitucionalidade da criação de impostos.

K. Ora, o único argumento que o TC avança para justificar a validade da CESE até 2017 é o das condições de emergência financeira em que a República Portuguesa se encontrava. Em concreto, o TC justifica a CESE com a situação de rescaldo do PAEF, durante o qual Portugal permanecia num contexto de fragilidade das contas públicas, e a manutenção do procedimento por défice excessivo, previsto no artigo 126º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (relativamente à CESE dos anos de 2015 e 2016, podemos referir as Decisões Sumárias n.ºs 358/2021 e 422/2021 e os Acórdãos n.ºs 436/2021, 437/2021, 438/2021, 513/2021 e 532/2021. Quanto a 2017, podemos citar o Acórdão 736/2021).

L. Antes de...

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