Acórdão nº 795/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução17 de Novembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 795/2022

Processo n.º 260/2022

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo (STA), em que é recorrente A., SA, e recorrida a Autoridade Tributária - AT, foi pelo primeiro interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), dos acórdãos de 26 de maio de 2021 e de 20 de outubro de 2021 proferidos por aquele Tribunal.

Trata-se, no processo a quo, de pedido de pronúncia arbitral, apresentado pela recorrente, acerca de liquidações de IVA. Em sede de recurso de uniformização de jurisprudência interposto pela ora recorrida, o STA, por meio do referido acórdão de 26 de maio de 2021, anulou, em parte, a decisão arbitral originária, invocando o acórdão do pleno desse mesmo Tribunal, de 24 de março de 2021 que uniformizou a jurisprudência no sentido de que “nos termos do disposto no art. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu número 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efetua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação”.

Inconformada, a ora recorrente arguiu a nulidade desse acórdão, que foi indeferida, pelo acórdão do STA de 20 de outubro de 2021.

Assim, ainda irresignada, a recorrente interpôs o presente recurso de constitucionalidade contra as duas decisões, pretendendo ver apreciada a referida dimensão normativa que identificou, após convite de aperfeiçoamento, nos seguintes moldes:

«Entendendo-se que a lei conferiu essa possibilidade à AT (ie., que transpôs devidamente a Diretiva IVA e que a AT pode sem mais, em sede Inspectiva, ou por entendimento administrativo ou pelo Ofício-Circulado 30108, ao abrigo da possibilidade que legislativamente lhe foi conferida, regular/definir/modelar o pro rata previsto no n.° 4 do artigo 23.° do CIVA (retirando- se do respetivo cálculo o valor das "rendas", só considerando os "juros"), então:

o n.° 2 e 3 do artigo 23.° do Código do IVA ao permitir à AT (à margem do processo legislativo estabelecido na CRP) sem mais em sede Inspectiva ou através de instruções administrativas (tal como é o Ofício-Circulado 30108 ou informações da AT anteriores a este) definir e restringir o direito à dedução do IVA dos contribuintes, com carácter geral e abstrato, e eficácia externa, através de uma diferente modelação do método pro rata previsto no n.° 4 do artigo 23." do Código do IVA (excluindo, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fracção a parte da renda correspondente à amortização) é MATERIAL e FORMALMENTE INCONSTITUCIONAL por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.° e 111.0 da CRP), do artigo 112.°, n.° 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (103.°, n.° 2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República [165.°, n.° 1, alínea i) da CRP].

[...]

Esse critério consta, tão-só do Ofício-Circulado n.° 30108, mais precisamente, do respetivo ponto 9 o qual é posterior até aos factos tributários aqui em apreço. E a questão que se coloca é, precisamente, saber se esse concreto método de cálculo do IVA dedutível (isto é, saber o que se pode ou não considerar no cálculo, como no caso, dos juros e do "capital") não deveria, então, constar da lei.»

2. As partes foram notificadas para apresentar as suas alegações.

A recorrente apresentou alegações, que concluiu nos seguintes termos (fls. 87-TC-155-TC):

«A. O presente recurso versa sobre a inconstitucionalidade da interpretação normativa dos n.os 2 e 3 do artigo 23.° do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), desde logo, quando interpretados no sentido de consentirem que a AT (com força de lei e eficácia retroativa) obrigue «o sujeito passivo que efetua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações» utilizando, para o efeito, um método distinto do previsto na lei e sem assento na lei (v.g. no CIVA ou em outra legislação aplicável).

b. Tanto da decisão recorrida, como dos articulados da Recorrente se extrai que o objeto do presente recurso respeita à interpretação normativa acabada de referir, a qual efetivamente adotada como ratio decidendi pelo tribunal a quo, que interpreta a norma resultante dos n.os 2 e 3 do artigo 23.° do CIVA, no sentido de permitir à AT (em sede inspetiva, por entendimento administrativo. ou através de Ofício-Circulado 30108 com aplicação retroativa), regular, definir e restringir o direito à dedução do Imposto sobre o Valor Acrescentado, nomeadamente através de uma diferente modelação do método vro rata previsto no n.° 4 do artigo 23.° do CIVA ide forma ser ai e abstraía. e com efeitos externos).

c. Em resultado, consente-se que a AT possa livre e autonomamente decidir que, no numerador e no denominador da fração necessária ao cálculo do direito à dedução (da percentagem de dedução do pro rata) em sede de IVA, apenas se possa considerar o valor dos juros, excluindo- se as rendas correspondentes às amortizações financeiras relacionadas com os contratos de leasing e ALD (as quais sujeitas e não isentas de IVA nos termos do artigo 16.°, n.° 2, alínea h) do Código do IVA), e outros valores sujeitos e não isentos de imposto como as indemnizações e abates.

d. Repare-se que, em resultado desta restrição - não prevista na lei e verdadeiramente contrária ao disposto no n.° 4 do artigo 23.° do CIVA - o valor do direito à dedução queda fortemente diminuído.

e. A interpretação questionada afigura-se ofensiva do disposto no artigo 112.°, n.° 5 da CRP, preceito que urge compaginar, ainda, coin os princípios da separação dos poderes (cf. artigos 2.° e 111.0 da CRP), e, ratione materiae, com os princípios da tipicidade e legalidade tributárias (cf. artigos 103.°, n.os 2 e 3 da CRP), e o princípio da reserva de lei da Assembleia da República (cf. artigo 165.°, n.° 1, alínea i) da CRP).

f. In casu, está-se perante um recurso de decisão negativa de inconstitucionalidade e das normas aplicáveis a este processo resultam quatro pressupostos ou requisitos específicos da admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional os quais, como se viu, estão todos preenchidos: (i) a suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo; (ii) a aplicação pela decisão judicial recorrida dessa mesma norma jurídica (e a sua aplicação efetiva); (iii) a interposição do recurso pela parte que suscitou a questão de inconstitucionalidade (requisito de legitimidade, resultante da alínea b) do n.° 1 e do n.° 2 do artigo 72.° daLOTC) e (iv) anão admissibilidade de recurso ordinário da decisão jurisdicional em causa.

g. O problema de constitucionalidade reside, precisamente, numa interpretação normativa das normas aplicáveis, que a Recorrente entende ferir a Constituição, não relevando a circunstância de a interpretação do tribunal recorrido se afigurar incorreta, pois que a norma aplicada pelo tribunal recorrido pode perfeitamente - como, e reitere-se, a Recorrente crê ser precisamente o caso - resultar de uma interpretação manifestamente incorreta, à luz dos cânones hermenêuticos gerais, do preceito legal. In casu, a Recorrente não questiona nesta sede o processo interpretativo ou a operação de subsunção em si mesma pelo tribunal a quo, mas sim uma dimensão generalizável, decorrente de um resultado interpretativo que, no seu entender, além de não encontrar respaldo na lei ou sequer correspondência o respetivo enunciado normativo, assenta numa interpretação normativa manifestamente inconstitucional.

h. No que respeita, agora, ao facto de a norma cuja interpretação normativa se sindica resultar da conjugação de dois n.os do artigo 23.° do CIVA, essa circunstância também não afasta a viabilidade do presente recurso, pois que é perfeitamente possível que a norma que se visaimpugnar resulte ou só se possa encontrar através da conjugação de vários preceitos ou de diferentes segmentos deles.

i. Pressuposto específico (objetivo) dos recursos de decisões negativas de inconstitucionalidade, como o vertente, é a aplicação efetiva da norma (ou, como se referiu já, da interpretação normativa) cuja inconstitucionalidade foi suscitada (adequadamente, e no decurso do processo) pela aqui Recorrente. In casu, há uma clara relação de identidade, pois que a norma complexa ou, melhor, a interpretação normativa identificada pela Recorrente e cuja inconstitucionalidade esta arguiu junto do tribunal a quo foi efetivamente aplicada pela decisão recorrida como sua ratio decidendi.

j. Ou seja, houve, de facto, uma aplicação efetiva da norma complexa resultante dos n.os 2 e 3 do artigo 23.° do CIVA, com a interpretação normativa que se reputa de inconstitucional, não tendo esta sido utilizada a título de mero obiter dictum ou argumento acessório ou ad ostentationem.

k. Nas (contra-)alegações que apresentou junto do tribunal a quo - a peça processual relevante para dar cumprimento ao estatuído no artigo 72.°, n.° 2, da LTC —, a Recorrente incluiu uma secção epigrafada «DA INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL EMATERIAL do artigo 23. °, n.º 2 e 3 do Código do IVA», que integra os §§86 a 132. De igual modo, também no seu requerimento de arguição da nulidade do...

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