Acórdão nº 770/22 de Tribunal Constitucional (Port, 15 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. José João Abrantes
Data da Resolução15 de Novembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 770/2022

Processo n.º 468/2022

1ª Secção

Relator: Conselheiro José João Abrantes

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A., ora Recorrente, intentou contra B., C. e a menor D., aqui Recorridos, ação de declarativa de reconhecimento a seu favor da paternidade relativamente à menor D., com impugnação da paternidade presumida registada a favor de C., a qual correu termos no Juízo de Família e Menores de Cascais – Juiz 3.

1.1.1. Por despacho saneador, proferido em 24 de setembro de 2021, o Recorrente foi julgado parte ilegítima na ação, à luz dos artigos 1826.º, 1838.º, 1839.º, 1841.º, do Código Civil, por se considerar que tais normativos não concedem ao pretenso pai legitimidade para impugnar a paternidade presumida do marido da progenitora, cabendo-lhe, apenas, lançar mão do mecanismo previsto no artigo 1841.º daquele diploma legal.

1.1.2. Inconformado, dessa decisão o Recorrente interpôs recurso para o TRL que, por acórdão de 17 de fevereiro de 2022, veio a ser julgado improcedente.

Com respeito à questão de constitucionalidade suscitada pelo Recorrente, lê-se o seguinte na fundamentação do referido aresto:

“[…]

Nos presentes autos o A./Recorrente assumiu desde o início que a Lei ordinária, nomeadamente o que se preceitua nos artigos 1838.º (Impugnação da paternidade), com referência ao artigo 1826.º, n.º 1 do Código Civil, que estabelece que “Presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio tem como pai o marido da mãe”; e concretamente no artigo1839º, n.º 1 do Código Civil, na redação do DL n.º 496/77, de 25/11, que dispõe que “A paternidade do filho pode ser impugnada pelo marido da mãe, por esta, pelo filho ou, nos termos do artigo 1841.º, pelo Ministério Público” não lhe confere legitimidade para intentar a ação, no que ao pedido de afastamento da presunção da paternidade da menor L… respeita.

Tanto que assim é que recorreu ao MºPº a fim de que este intentasse a ação prevista pelo art.º 1841º do Código Civil

Sucede que, por motivos que não resultaram assentes nestes autos, o MºPº não intentou a ação em causa no prazo do n.º 2 do referido art.º 1841.º; veio a propor ação "com processo comum, sob a forma ordinária, para impugnação de paternidade presumida", na qual o MºPº pediu que fosse declarado que a Ré L… não é filha do Réu R….

Nessa ação, por sentença proferida em 15 de fevereiro de 2018, o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores decidiu que o Ministério Público carecia de legitimidade processual para a ação e absolveu os réus da instância.

Nos presentes autos foi igualmente declarado que o A. carece de legitimidade para peticionar o afastamento da paternidade presumida, sem o que não pode igualmente o A. ver estabelecida a seu favor a paternidade da menor L….

E bem, nos termos das disposições citadas e que, afinal, o A. admite.

Não se conforma porém o A. que assim seja por entender que tal disposição prevista pelo Código Civil é inconstitucional, por violação dos seguintes direitos e princípios: (i) direito à dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição), (ii) o direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (n.º 1 do artigo 26.º da Constituição), (iii) o princípio da igualdade e da não discriminação, na perspetiva da discriminação entre pais casados e não casados, e o direito a ter filhos e educação e manutenção dos mesmos (n.ºs 4, 5 e 6 do artigos 36.º,13.º e n.ºs 1 e 2 do artigo 68.º da Constituição), (iv) ao o princípio da proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias (cfr. n.º 2 do artigo 18.º da Constituição) e (v) princípio da tutela jurisdicional efetiva (n.º 1 do artigo 20.º da Constituição), em favorecimento, in casu, de comportamentos perturbadores de desprezo pelo verdadeiro Pai e da própria Filha que é forçada a viver na mentira e com total desconhecimento da sua verdadeira ascendência.

Não há dúvida que o art.º 1.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”; que o art.º 26º da mesma Lei fundamental reconhece que “1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.

2. A lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.

3. A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica.

4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.”; que, de acordo com o art.º 36º “1.Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade” e que “4. Os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objeto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação” e, bem assim, que “6. Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.”

Este mais não é do que a concretização, aplicável às relações familiares e de filiação, do princípio geral de igualdade previsto pelo art.º 13º da Constituição da República Portuguesa, regulando ainda o art.º 68º a paternidade e maternidade, garantindo que “1. Os pais e as mães têm direito à proteção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país. (…)”.

Finalmente, dispõe o art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa que:

“1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”

E, nos termos do artigo 20º da Lei Fundamental, “1.A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.

Feito este enquadramento legal, vejamos os argumentos do recorrente.

A Constituição da República Portuguesa inicialmente aprovada pelo Decreto de 10 de Abril de 1976, foi sofrendo alterações, nomeadamente as que decorreram da Lei n.º 1/82, de 30/09 e da Lei n.º 1/89, de 08/07, que não foram acompanhadas pelos artigos em causa do Código Civil, que apenas foram alterados pelo Dec.-Lei n.º 496/77, de 25/11 e assim se têm mantido.

As alterações dos preceitos Constitucionais visaram essencialmente acentuar a proteção da paternidade e da adoção.

Mas não foram alterações que levassem o legislador a igualmente rever as normas da lei ordinária em causa, devendo a Lei ser interpretada em obediência ao que dispõe o art.º 9º do Código Civil:

“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

Na verdade, estas questões de estabelecimento de paternidade biológica e afastamento de paternidade presumida, têm sido objeto de diversas decisões judiciais, como referido na decisão agora posta em crise, em que se tem maioritariamente entendido que não padecem as normas em causa de inconstitucionalidade, sendo que no confronto entre os valores em causa – o do estabelecimento da paternidade biológica e o da estabilidade da relação familiar, dentro do casamento - se considera que a limitação de um valor em prejuízo do outro se situa no âmbito do que permite o artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.

Neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 89/2019, onde se decidiu “a) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 1838.º, 1839.º, n.º 1, e 1841.º do CC, na interpretação segundo a qual o pretenso progenitor não tem legitimidade ex novo para afastar a presunção do marido da mãe e obter o reconhecimento da sua paternidade, só podendo intervir processualmente através do Ministério Público e depois de previamente reconhecida a viabilidade do pedido”, nos termos que do mesmo constam e que se encontram reproduzidos na Sentença em análise e para cuja fundamentação se remete.

Isto sem prejuízo da Declaração de Voto que no mesmo consta, do Conselheiro Cláudio Monteiro, entendendo que os artigos 1838.º e 1839.º, n.º 1, do Código Civil, quando interpretados no sentido de que o pai biológico não...

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