Acórdão nº 17046/20.5T8LSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Novembro de 2022
Magistrado Responsável | CATARINA SERRA |
Data da Resolução | 10 de Novembro de 2022 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO 1.
AA, com domicílio em Portugal, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Electronic Arts Inc., com sede em 209, Redwood Shores Parkway, Redwood City, Califórnia, 94065, EUA, peticionando que esta seja condenada a pagar ao autor, a título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade e pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 240.000,00 (Duzentos e quarenta mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 43.459,07 (quarenta e três mil e quatrocentos e cinquenta e nove euros e sete cêntimos), tudo no total de € 283.459,07 (duzentos e oitenta e três mil e quatrocentos e cinquenta e nove euros e sete cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.
Mais deve a ré ser condenada a pagar o montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 2.156,16, tudo no total de € 7.156,16 e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.
Para o efeito, alegou, em síntese, que é futebolista, representando atualmente o clube inglês, R... e que a ré Electronic Arts Inc., através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, é uma empresa líder global em entretenimento digital interactivo, que vem a utilizar a imagem e o nome do autor, para divulgar e disseminar a venda dos jogos FIFA, FIFA MANAGER, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT e FIFA MOBILE, sem a devida autorização, violando, consequentemente, o seu direito de imagem.
-
Citada, a ré contestou, arguindo, além do mais, a excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciar a presente acção.
-
Em resposta o autor pugnou pela respectiva improcedência, afirmando em síntese, que (i) os jogos, propriedade da Ré, são comercializados e distribuídos mundialmente, pelo que também em Portugal (ii) o facto danoso mostra-se consumado em Portugal (iii) é cidadão português e tem domicílio em Portugal.
-
O Tribunal proferiu sentença em que se decidiu “declarar a incompetência absoluta deste tribunal por infração das regras de competência internacional dos tribunais portugueses e, consequentemente, absolve[r]-se a Ré da instância”.
-
Inconformado, apelou o autor para o Tribunal da Relação de Lisboa.
-
Em 21.06.2022, os Exmos. Juízes Desembargadores deste Tribunal acordaram “em conceder provimento ao recurso, e em consequência, revogando a decisão, declara[ra]m o tribunal competente internacionalmente, prosseguindo a instância os demais trâmites”.
-
Inconformada, é a ré, Electronic Arts Inc.
, quem agora vem interpor recurso de revista, “nos termos dos art.º 629.º, n.º 2, alínea a) e 671.º, n.º 3, parte inicial (violação das regras de competência internacional), 631.º, n.º 1, 638.º, n.º 1, todos do CPC”.
Pede que seja revogada a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa e declarada a incompetência dos tribunais portugueses.
A terminar, formula as seguintes conclusões: “
-
O presente recurso de revista impugna o acórdão de 21.06.2022, pelo qual se declarou a competência internacional do Juízo Central Cível de Lisboa para tramitar esta ação, recurso admissível nos termos do art.º 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC já que está em causa a infração de regras de competência internacional.
-
A ré considera a decisão ilegal, com base na violação de lei substantiva, processual e da própria Constituição da República Portuguesa, destacando-se, entre outros, as seguintes normas e princípios jurídicos: - princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros, princípio da coincidência, princípio da causalidade, princípio do Estado de Direito, princípio da proteção ou tutela da confiança, princípio da soberania, princípio da igualdade, princípio do processo equitativo e da igualdade das partes, princípio da tutela jurisdicional efetiva, princípio do dever de obediência dos tribunais à lei, princípio da separação dos poderes; – art.º 2.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa; – art.º 1.º, 9.º e 351.º do CC; – art.º 5.º, n.º 1, 62.º, 71.º, n.º 2 e 608.º, n.º 2 do CPC; – art.º 22.º da LOSJ.
-
A apreciação da competência internacional é efetuada exclusivamente com base nos factos alegados na petição inicial, sem qualquer indagação probatória ou aplicação de presunções judiciais – art.º 38.º da LSOJ e acórdão do TRE de 15.12.2016, Proc. n.º 1330/16.5T8FAR.E1; acórdão do TRG de 16.11.2020, Proc. n.º 114083/18.7YIPRT.G1.
-
Sucede que o acórdão em crise entendeu recorrer a factos não alegados na petição inicial, considerando que a ré vende os jogos FIFA em Portugal, quando a petição inicial exprime exatamente o oposto: na Europa é uma entidade terceira que comercializa os jogos FIFA e não a ré – facto diretamente mencionado pelo autor no artigo n.º 2 da petição inicial.
-
O acórdão revidendo suporta-se ainda na existência não invocada de um centro de interesses do autor em Portugal ou mesmo em a factos que não se referem à causa de pedir, contrariando frontalmente o regime legal aplicável fixado no art.º 62.º do CPC.
-
A causa de pedir deste pleito é a alegada violação do direito de imagem do autor, pela aposição não autorizada da sua imagem nos jogos FIFA, não devendo ser considerados outros factos que não a integrem, como seja o exercício da atividade de futebolista pelo autor a dado momento em Portugal.
-
A decisão do TRL, apesar de reconhecer ser inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, incluindo o seu art.º 7.º, n.º 2, sustenta-se no conceito jurisprudencial de centro de interesses desenvolvido pelo TJUE a propósito dessa norma.
-
A ré tem sede nos EUA e por isso o regulamento n.º 1215/2012 não lhe é aplicável, dado que este só abrange casos em que a entidade demandada tem sede num Estado-Membro.
-
A jurisprudência do TJUE apenas se debruça, como resulta do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia em interpretar o direito da União, sendo expressamente proibido ao TJUE interpretar direito nacional dos Estados-Membros.
-
Restrição que visa efetivar o princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros e dos seus órgãos jurisdicionais sobre o seu direito nacional, não tendo o TJUE apetência ou conhecimentos para se debruçar sobre o direito interno.
-
Não sendo aplicável o regulamento n.º 1215/2012, não podem valer igualmente os conceitos jurisprudenciais desenvolvidos pelo TJUE à luz desse regulamento, sendo por isso vedado aos tribunais portugueses aplicar o conceito de centro de interesses por tal redundar em aplicação contra legem, designadamente contra o regime legal aplicável e autossuficiente consagrado no art.º 62.º do CPC.
-
Acresce que a própria jurisprudência do TJUE se vem consolidando no sentido de defender que o conceito de “lugar onde ocorreu o dano” deve ser interpretado muito restritamente e dando relevância ao local de produção do dano inicial (parágrafo 21 do acórdão do TJUE de 19.09.1995, Processo n.º C-364/93; parágrafos 19 e 21 do acórdão do TJUE de 10.06.2004, Proc. n.º C-168/02; e parágrafos 34 e 35 do acórdão do TJUE de 16.06.2016, Proc. n.º C-12/15).
-
Em todo o caso, sendo inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, o CPC estabelece no art.º 62.º do CPC o regime interno que define quais os fatores de atribuição da competência internacional.
-
Este regime deve ser interpretado e aplicado de acordo com os critérios legais de interpretação das normas fixado no art.º 9.º do CC: elementos literal, teleológico, sistemático e histórico.
-
As fontes de direito português são as leis e diplomas equiparados (art.º 1.º do CC), em nada relevando a jurisprudência do TJUE sobre normas que não estão em causa, sob nenhuma forma, nestes autos.
-
A apreciação da competência internacional nestes autos deve ser dirimida exclusivamente à luz do art.º 62.º do CPC e critérios aí elencados, a saber: – alínea a): critério da coincidência; – alínea b): critério da causalidade; e – alínea c): critério da necessidade.
-
Estes critérios devem ser ponderados à luz da factualidade constante da petição inicial, assumindo-a, para este efeito como verdadeira, e sem proceder a quaisquer indagações probatórias, destacando-se do elenco da petição inicial, a seguinte factualidade relevante: Quanto ao autor: (i) O autor refere ser jogador de futebol (artigo n.º 3 da petição inicial); (ii) O autor refere jogar atualmente no clube inglês R... (artigo n.º 4 da petição inicial) Quanto à ré: (iii) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América (iv) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor não alega que a ré o faz em Portugal (artigo n.º 1 e 2 da petição inicial) – ou seja, de acordo com a própria alegação do autor, não há qualquer atuação da ré em território nacional; (v) O autor refere que “…a ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA S...…” (artigo n.º 2 da petição inicial), o que evidencia que a ré não atua em Portugal ou, sequer, na Europa; Quanto ao facto ilícito imputado à ré: (vi) O ato ilícito que o autor imputa à ré consiste na utilização da sua imagem que ocorrerá aquando da produção dos jogos objeto dos presentes autos, sendo certo que em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré produz, em Portugal, os jogos FIFA; (vii) De igual modo, o autor não afirma, em momento algum, que a ré vende, em Portugal, os jogos FIFA, chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros e que estes assumem total responsabilidade por esses atos (artigos n.º 2 da petição inicial); (viii) Ainda que assim não fosse – o que não se concede – o ato de venda dos jogos FIFA não é um ato ilícito ou, sequer, um ato gerador de danos para o autor; (ix)...
-
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO