Acórdão nº 268/21.9GEALR-A.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 27 de Setembro de 2022

Magistrado ResponsávelNUNO GARCIA
Data da Resolução27 de Setembro de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA RELATÓRIO No âmbito do processo 268/21.9GEALR foi proferido o seguinte despacho: “Veio o a assistente requerer a abertura de instrução, insurgindo-se contra o despacho de arquivamento proferido nestes autos, pelo M.P., invocando que devem as denunciadas serem pronunciadas pelos factos e ilícitos que constam elencados do RAI e requerendo a produção de outros meios de prova, não produzidos no inquérito. Conforme dispõe o Artigo 287º, nº 2 do C.P.P. “ o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar (…)”. Conforme o Artigo 286º, nº 1 do C.P.P. “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Num processo penal de estrutura acusatória e em que vigora o principio da vinculação temática, se o M.P. arquivar, é ao assistente que incumbe fixar o objecto do processo, no requerimento de abertura de instrução, elencando os factos que, a serem imputados ao arguido, fundados nos elementos probatórios recolhidos ou no inquérito ou na instrução, suficientemente indiciados, permitindo, assim, a imputação ao arguido de um qualquer ilícito criminal, mormente os imputados. O RAI tem como função, então, de algum modo, substituir-se a uma acusação do M.P. (que não existiu, in casu), por forma a permitir o prosseguimento dos autos. Claramente neste sentido, vai o artigo 287º, nº 2 do C.P.P. quando remete para as alíneas do Artigo 283º, nº 3 do mesmo diploma legal, mormente a al. b) – narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada -. A função do RAI tem que ser, assim, perspectivada atendendo-se ao que é a finalidade da instrução. Ora, a jurisprudência tem considerado que no âmbito do conceito de inadmissibilidade legal do RAI a que alude o Artigo 287º, nº 3 do C.P.P. se enquadra a situação presente, em que, arquivados os autos pelo M.P., o RAI não contêm a elencação dos factos a imputar ao arguido que preencham todos os elementos, objectivo e subjetivo do tipo de ilícito imputado, porquanto tal situação redonda numa impossibilidade de pronúncia do arguido. Neste sentido, entre muitos outros, o Ac. do TRG de 11/07/2017, no processo nº 649/16.0TBRG.G1, relatado por Jorge Bispo ou Ac. do TRL de 12/03/2019, relatado por Artur Varges no processo 5257/16.2T9SNTL1-5, em ambos se referindo que a jurisprudência maioritária dos nosso tribunais vai em tal sentido. Tais omissões ou patologias do RAI não são susceptiveis de despacho de aperfeiçoamento, conforme Ac. do STJ nº 7/2005, publicado no DR nº 212/2005, I-S de 04/11/2005 (Armindo dos Santos Monteiro), frisando-se que, de modo algum, a omissão de factos que integrem o elemento subjetivo (dolo, quer na sua vertente volitiva, quer na sua vertente intelectual), vontade consciente ou a consciência da ilicitude são passiveis de serem sanadas com a figura da alteração de factos, também conforme o Ac. do STJ nº 1/2015, publicado no DR nº 18/2015, I-S de 27/01/2015 (Rodrigues da Costa). Ora, o que ocorre no caso presente? Em primeiro lugar, a instrução consubstancia uma fase de controlo judicial do que foi o trabalho do M.P.. Não constitui uma continuação da investigação iniciada no inquérito, nem um início de investigação quanto a novos factos não previamente investigados. No caso presente, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente é perfeitamente omisso quanto a: - à concreta actuação imputada a AA, que integre um qualquer ilícito criminal, de que só se menciona ser titular da conta bancária para a qual as transferências eram realizadas (e genericamente dizendo que a mesma também fazia trabalhos espirituais); - quanto a datas, modos de actuação e agentes das condutas que a assistente qualifica como de acesso ilegítimo à sua conta bancária e telemóvel (sms), adulteração e apagamento de dados (que não identifica quais sejam) e avaria e dano do seu PC, afirmando a assistente desconhecer quem assim terá procedido (requer perícia para identificação dos autores dos “ataques informáticos”), não sendo possível requerer a abertura de instrução quanto a desconhecidos, mas somente quanto a pessoas concretas, agentes de ilícitos criminais imputados; - quanto aos factos atinentes ao dolo dos crimes imputados de sabotagem informática e dano relativo a programa ou dados informáticos (artigos 4º, nº 1 e 5º da Lei do Ciber Crime); - quanto a uma vontade livre, consciente e uma consciência da ilicitude quanto a todas as condutas imputadas, atinentes a todos os ilícitos imputados, sejam burla, sabotagem e dano relativo a programa ou dados informáticos; - quanto ao dolo atinente ao crime de burla, seja na sua vertente intelectual, seja na sua vertente volitiva - quanto a factos concretos de que derive a “astúcia” e o “engano” e o nexo causal entre ambos e a conduta realizada pela ofendida, que lhe terá causado prejuízo patrimonial, dado que o RAI só contém afirmações conclusivas quanto a tais elementos (v.g. “a assistente/ofendida foi astuciosa e ativamente induzida no erro de acreditar que (…) as denunciadas, pelos seus específicos “poderes” e pelas práticas que concretamente lhe fizeram crer que dominavam, iam curar a própria e em especial a sua filha dos males que espiritualmente alegadamente a dominavam”. Alude às razões da sua discordância com a acusação, mas não deduz nenhuma acusação autónoma, com as formalidades elencados no Artigo 283º do C.P.P., a qual possibilite a prossecução dos autos, fixando o objecto dos mesmos, permitindo a cabal defesa e contraditório por parte das denunciadas e um eventual despacho de pronúncia. Mais, o inquérito nunca investigou quaisquer problemas informáticos, acessos ilegítimos, danos em PC ou em programas, alteração e apagamento de dados. Tal não foi objecto de queixa (vide fls. 2 e segs. e fls. 37 e segs.), bem como não foi objecto do despacho de arquivamento, sendo que a instrução não pode versar sobre factos, novos, que não tenham sido objecto de prévia investigação e que não estivessem já contidos no objeto dos autos, o que implicaria a inadmissibilidade legal da instrução, por inadmissibilidade legal, por causa diversa da falta de alegação de factos. Assim sendo, há que não admitir o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, ao abrigo do Artigo 287º, nº 3 do C.P.P.. DECISÃO: Termos em que, não admito o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente BB, ao abrigo do Artigo 287º, nº 3 do C.P.P.., por inadmissibilidade legal da instrução.” # Inconformado com tal decisão, dela recorreu a assistente BB, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões: “1-Os atos de inquérito não são apenas suscetíveis de reclamação hierárquica, terão sempre que ser sindicados, quanto à sua legalidade, pelo juiz de instrução, quando tal seja solicitado

2– A decisão recorrida procede a uma errada aplicação do direito, dado que põe termo ao processo quando a lei determina que tenha lugar a fase instrutória, gerando os presentes autos uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, por omissão da fase de instrução num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade

3 – A decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução não está na discricionariedade do tribunal, antes sendo admissível apenas nos casos expressamente previstos na lei

4– O n.º 2 do art.º 287 do CPP dispõe que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à decisão de não acusação, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas al.ªs b) e c) do n.º 3 do art.º 283 do CPP, sendo todas as referidas normas legais violadas pelo despacho em crise

5 – Por força desta remissão, o RAI deve ainda conter a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo., se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e deve ainda indicar as disposições legais aplicáveis

6– O RAI apresentado observou todos os requisitos e formalidades acima identificados, dado que a assistente fez saber quais as razões pelas quais não concordada com o despacho de arquivamento, descrevendo quais os concretos comportamentos dos denunciados suscetíveis de integrar a prática do crime de burla

7 – O tribunal recorrido, antecipando um juízo de prognose – que, nos termos da lei, apenas tem lugar no final da fase de instrução (art.º 308 do CPP) – optou por indeferir liminarmente o requerimento de abertura de instrução e consequentemente impossibilitar a realização de prova pericial requerida no RAI, fundamental para a cabal descoberta da verdade material

8 – A decisão recorrida procedeu a uma errada aplicação do direito, rejeitando o requerimento de abertura de instrução num caso em que a lei não permite tal rejeição

9 – Dispõe o n.º 3 do art.º 287 do CPP - que o despacho em crise viola frontalmente – que o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução

10 – O tribunal a quo...

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