Acórdão nº 01843/08.2BELSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 22 de Setembro de 2022

Magistrado ResponsávelMARIA DO CÉU NEVES
Data da Resolução22 de Setembro de 2022
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO 1. RELATÓRIO A………….

, devidamente identificada nos autos, intentou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC), contra o CENTRO HOSPITALAR DE LISBOA OCIDENTAL, EPE, acção administrativa comum, sob a forma ordinária pedindo: “a condenação do R. no pagamento de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais causados por deficiente prestação de cuidados de saúde ao seu marido, na consulta externa de urgência no Hospital de S. Francisco Xavier do dia 14.08.2000 e nos cuidados prestados pelo Hospital Egas Moniz.

”*Por decisão do TAC de Lisboa, de 04 de Junho de 2021, foi decidido julgar a presente acção administrativa comum totalmente improcedente, absolvendo o R. do pedido.

*A Autora apelou para o TCA Sul da sentença proferida pelo TAC de Lisboa e este, por acórdão proferido a 18 de Novembro de 2021, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, embora com fundamentação não inteiramente coincidente.

*A Autora, inconformada, veio interpor o presente recurso de revista, tendo na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões: «1ª - Na douta sentença proferida em primeira instância, pela qual a ação foi julgada totalmente improcedente e o Réu foi absolvido do pedido, concluiu-se, em síntese, que “No caso em apreço, a intervenção cirúrgica era necessária, pois havia um défice neurológico pleno e permanente, sendo aconselhada a cirurgia em qualquer Manual de doenças da coluna, como explicitado pela Dr.ª B………. e urgente, pois o doente encontrava-se nos Cuidados Intensivos, sedado, com ventilação respiratória assistida desde o dia 29.09.2000. […] Conclui-se, assim, que se verificam neste caso, os requisitos do consentimento presumido e que inexiste o dever de informar a A. para efeitos de esta, em representação do seu marido, consentir na intervenção cirúrgica realizada no dia 07.10.2000. Ou seja, também neste ponto, a conduta foi legal.

2ª - Foi requerida perícia ao Instituto Nacional de Medicina Legal, no âmbito da qual foi formulado, nomeadamente, o seguinte quesito: “À data da cirurgia em causa nos presentes autos, era usual, nos casos em que uma operação cirúrgica apresenta elevados riscos, podendo gerar as consequências que o doente sofreu, ser-lhe solicitado que assinasse um termo de responsabilidade?” Na perícia realizada, a resposta a esse quesito foi a seguinte: “Sim. Qualquer cirurgia deve ser autorizada após a informação médica ao doente/família/responsáveis terceiros mediante a assinatura do termo de responsabilidade. Esta informação deve ser clara e precisa sobre a patologia que o doente apresenta, riscos cirúrgicos e não cirúrgicos, complicações e outras informações adequadas ao caso. Em doentes inconscientes e impossibilitados de assinar o consentimento, este deve ser sempre obtido segundo informação e consentimento dos familiares.

A assinatura do termo de responsabilidade ao consentir uma cirurgia é obrigatória e deve ser obtida sempre após informação médica.” 3ª - A cirurgia foi realizada sem que estas regras tenham sido cumpridas. Com efeito, segundo o nº 35 da matéria provada, “Não assinou nunca C………. qualquer termo de responsabilidade antes da intervenção cirúrgica do dia 07.10.2000, pois que tinha sido sedado no dia 29.09.2000, pelas 11h, quando precisou de ventilação assistida e assim se manteve ininterruptamente até à tomada da decisão médica de intervenção cirúrgica, em 04.10.2000 e até à realização da mesma em 07.10.2000, cf. Diário clínico onde nunca foi feita referência ao cumprimento destas formalidades conjugada com a não localização de qualquer documento e as declarações de parte da A., bem como o depoimento do Dr. D………., Médico Neurocirurgião que operou C………… e que não relatou ter tido qualquer conversa com o doente - estava sedado no momento em que foi pedida a intervenção da Neurocirurgia e assim se manteve até ser operado – ou com a família, antes ou depois da operação, tendo referido que as Colegas dos Cuidados Intensivos eram muito cuidadosas quanto a tais aspetos. Também colocou a possibilidade de se ter perdido o documento (Resposta ao quesito 15 da B.I.);” 4ª - Por despacho da meritíssima Juíza, de 22 de maio de 2021, foi determinado o seguinte: “Tendo em conta que a Sr.ª Dr.ª E………, Médica Neurologista do Hospital Egas Moniz, no seu depoimento, prestado no dia 20.05.2021, referiu que à data da intervenção cirúrgica em causa (07.10.2000), os termos de prestação do consentimento dos doentes/familiares à realização de intervenções cirúrgicas constavam de separador autónomo do processo clínico e não sequencialmente, peça-se ao R., pelo meio mais expedito (telefone, seguido de confirmação por e-mail) a informação sobre se consta do original do processo clínico do marido da A. (ao tribunal foi remetida fotocópia do processo clínico) o termo de consentimento relativo à intervenção cirúrgica realizada no dia 07.10.2000, pelo Senhor Dr. D………. Em caso afirmativo, deve o original ser apresentado até ao início da próxima sessão da audiência de discussão e julgamento, marcada para o dia 27.05.2021, pelas 9:30. O documento em causa ou a falta do mesmo é essencial para a prova dos quesitos 15, 64, 70, 72, 74 e 76 da Base instrutória.” 5ª - Tal prova, porém, jamais foi apresentada pela Ré.

6ª - Quanto a esta matéria, concluiu-se não ter sido provado o seguinte: “17 A intervenção cirúrgica foi proposta e explicada ao doente que a aceitou (resposta ao quesito 64 da B.I.); 18 O doente sempre foi informado de todos os atos praticados (resposta ao quesito 72 da B.I.); 19 O que sucedeu, quer com a descompressão cervical que lhe foi proposta e que aceitou (resposta ao quesito 74 da B.I.) 20 Nos hospitais não é usual solicitar a assinatura de termos de responsabilidade, ainda que em intervenções de risco (resposta ao quesito 76 da B.I.)” 7ª - Quando foi sentida a necessidade de, após a intervenção cirúrgica, fazer uma traqueotomia, foi adotado procedimento totalmente diferente, quanto ao consentimento, do que havia sido adotado aquando da intervenção cirúrgica, como decorre do nº 99 dos factos provados, a saber: “Tanto a A. como o seu marido e filhas foram informados da necessidade de se fazer uma traqueotomia, tendo a A. assinado o termo de consentimento no dia 22.10.2000, para a realização da mesma e ventilação assistida, sob pena de não poder respirar, cf. diário clínico e documento assinado pela A. constante dos autos (resposta ao quesito 75 da B.I.);” 8ª - No douto acórdão recorrido, concluiu-se, sobre a mesma matéria, nomeadamente, que: “O tribunal a quo desaplicou o nº 3 do art. 6.° supra transcrito, por considerar, em suma, que o estado de inconsciência em que se encontrava o marido da A., não o tornava “maior incapaz” para os efeitos previstos neste art. 6.° da Convenção.

Porém, tendo por base o relatório interpretativo da Convenção de Oviedo, o nº 3 do art. 6.° desta Convenção, ao referir motivo similar, abre a porta a que no seu âmbito de aplicação se incluam outras situações que não apenas as de incapacidade legal, como sendo os estados de coma, de inconsciência, portanto, dos quais resulte uma incapacidade de facto em o paciente manifestar a sua vontade.

Neste pressuposto, somos a concluir que o tribunal a quo errou, efetivamente, ao afastar a aplicação do art. 6º, nº 3, ao caso em apreço.

9ª – Concluiu-se, porém, no acórdão recorrido, que, se deve aplicar ao caso a figura ao abrigo do art. 340º, nº 3, do Código Civil, nomeadamente face à circunstância de o marido da A., e a própria família, após esta intervenção cirúrgica não expressamente consentida, e revelando o marido da A. algumas melhorias, tendo saído do estado de inconsciência em que se encontrava antes, terem dado consentimento para a realização de um exame médico bastante invasivo – uma traqueostomia - cfr. factos nº 84, 85 e 99 e, bem assim, cfr. conclusão nº 16 das alegações de recurso – revela, em si, um contexto coincidente quanto ao alcance da vontade presumível daquele.

10ª -Salvo o devido respeito, esta interpretação do disposto no artigo 340º, nº 3, do Código Civil, nos casos em que, como o do presente processo, a pessoa se encontra incapaz de prestar, ou não, o seu consentimento, anula as garantias decorrentes, para essas situações, do disposto nos artigos 5º e 6º da Convenção de Oviedo, bem como do disposto 25º da CRP.

11ª - Na verdade, o que está em causa nas citadas disposições da Convenção de Oviedo não é o parecer técnico dos médicos. O que nessa Convenção se exige é que, para além desse parecer, o próprio paciente – ou o seu representante legal, em caso de incapacidade do paciente – sejam previamente esclarecidos sobre os fundamentos da necessidade de realização da intervenção, sobre os objetivos dessa intervenção e sobre os riscos que a mesma envolve.

12ª - Só quando se mostre impossível obter, em tempo útil, o consentimento – livre e esclarecido – do paciente ou do seu representante, é que se pode partir para a questão de saber se é admissível a presunção de que o paciente se conformaria com a realização da intervenção.

13ª - Ora, no caso dos autos, como decorre da matéria provada, não se verificava a impossibilidade de obtenção do consentimento apropriado da legal representante do paciente em função da urgência, a que se refere o art. 8.º da Convenção de Oviedo.

14ª - Com efeito, o tempo decorrido entre a decisão de efetuar a intervenção cirúrgica em causa e a sua efetivação, mostram que era possível tentar obter o consentimento. Sendo certo que o Réu não logrou demostrar que tenha sido, sequer, tentado qualquer contacto com a Autora.

15ª - Por outro lado, a conclusão, no douto acórdão recorrido, de que era legítimo presumir que o consentimento seria prestado, assenta em considerações que, salvo o devido respeito, não têm qualquer consistência.

16ª - Com efeito, concluiu-se que “… na petição inicial da presente ação, como uma das causa de pedir que, entretanto deixou cair...

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