Acórdão nº 92/20.6GCPTM.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 13 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelEDGAR VALENTE
Data da Resolução13 de Julho de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório No Juízo Local Criminal de … (J3) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum singular n.º 92/20.6GCPTM e, após a realização da audiência de julgamento, foi proferida a seguinte decisão (transcrição): “Nos termos expostos, decide-se julgar a acusação parcialmente procedente, por apenas parcialmente provada e, em consequência: a) absolver o arguido AA da prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º al. a), por referência ao art. 21º/1, ambos do DL. 15/93 de 22.01, e à Tabelas I-C anexa àquele diploma legal; b) reconduzir os factos à previsão do art. 40º/2 do D.L. 15/93 de 22.01, por referência à Tabela I-C anexa a esse mesmo diploma legal e condenar o arguido AA pela prática de um crime de cultivo para consumo de estupefacientes, previsto e punido pelo na pena de 25 (vinte e cinco) dias de multa; c) substituir a pena de 25 dias de multa aplicada ao arguido pela pena de admoestação; (…)” Inconformado, o MP interpôs recurso da mesma, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição): “I - No âmbito dos presentes autos, o arguido AA foi acusado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º al. a), por referência ao art. 21.º/1, ambos do DL. 15/93 de 22.01, e à Tabelas I-C anexa àquele diploma

II - Proferiu o Tribunal a quo douta sentença condenatória e absolutória, na qual decidiu absolver AA da prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º al. a), por referência ao art. 21.º/1, ambos do DL. 15/93 de 22.01, e à Tabelas I-C anexa àquele diploma legal, reconduzindo os factos à previsão do art. 40.º/2 do D.L. 15/93 de 22.01, por referência à Tabela I-C anexa a esse mesmo diploma legal e condenando o arguido AA pela prática de um crime de cultivo para consumo de estupefacientes, previsto e punido pela referida disposição legal, na pena de 25 (vinte e cinco) dias de multa, substituída pela pena de admoestação

III - Considera-se, porém, que, perante os factos dados como provados na sentença, a conduta do arguido configura, efectivamente, a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, por se encontrarem preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos de tal ilícito penal, pelo que deveria ter sido este condenado em conformidade

IV - O Tribunal considerou, embora sem o explicar, devida e fundamentadamente, que o facto de o arguido cultivar os produtos estupefacientes para consumo da sua companheira não constitui um acto de “cedência”, no sentido consagrado pelo legislador no D.L. 15/93, entendendo também o Tribunal que a mulher do arguido não pode ser tida como “terceiro”, para efeitos de aplicação do mesmo diploma

V - Não pode o Ministério Público concordar com tal entendimento, desde logo porque os factos não se reconduzem a nenhuma das situações de consumo partilhado e/ou atípico que alguma jurisprudência tem considerado não preencher um crime de tráfico de menor gravidade, mas sim de consumo de estupefacientes

VI - Tal como decorre expressamente do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 03/07/2012, que se debruçou sobre o conceito de “consumo partilhado” e da distinção entre partilha e cedência, quando o produto estupefaciente não se destine, na sua totalidade, ao consumo do próprio agente (detentor do produto), deve ter-se por verificado o crime de tráfico de estupefacientes, ainda que de menor gravidade

VII - Tal resulta, desde logo, quanto a nós, da própria letra da lei, pois que o artigo 40.º/1 do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, refere expressamente que “quem, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV”, prevendo o nº 2 a agravação das penas aplicáveis ao agente nos casos em que a quantidade das plantas cultivadas exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias» e o art. 2.º/1 da mencionada L. 30/2000, dispõe que “o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior – a saber, tabelas I a IV anexas ao D.L. 15/93 – constituem contra-ordenação” (s/n), acrescentando o n.º 2 do citado preceito legal que “para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”

VIII - Ou seja, todas as normas supra citadas fazem menção expressa ao consumo próprio e individual do detentor/consumidor dos produtos estupefacientes, o que significa que nunca poderá ser punido por tal ilícito criminal alguém que não é consumidor, como é o caso do arguido

IX - Assim, em nosso entender, é indiscutível que o arguido destinava tal produto à cedência à sua companheira, o que extravasa claramente o sentido da norma do artigo 40º, integrando antes o crime de tráfico de menor gravidade pelo qual o arguido vinha acusado

X - A nosso ver, a situação de cultivo para consumo de familiares, incluindo da companheira - como é o caso dos autos -, deve ser tratada como a da doação a familiares, que se encontrem, por exemplo e como tantas vezes sucede, em situação de reclusão

XI - Como refere Rui Cardoso, in “tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias dopantes”, disponível em https://elearning.cej.mj.pt,, «aí, há a entrega de estupefacientes a alguém que não é seu proprietário ou possuidor. É indiferente se esse negócio é oneroso ou gratuito: o resultado é o mesmo. O perigo para o bem jurídico é o mesmo: através da entrega de estupefaciente, vai permitir-se ao receptor do mesmo (donatário) que o consuma (no próprio momento ou mais tarde), ou até que o ceda/venda a terceiros, facto que o doador nunca pode controlar. Tal perigo existe, seja a entrega a um ou a cem ou a mil, seja uma venda ou uma doação.» XII - Na verdade, e analisando o caso dos autos, mesmo que o arguido viesse a ceder as referidas substâncias à sua companheira, para tratamento da doença de que a mesma padece (como alegou), tal não significa que não pudesse ceder parte das mesmas, simultaneamente ou mais tarde, a outras pessoas fora do núcleo familiar… XIII - Contudo, mesmo quem considera defensável a exclusão das situações de consumo partilhado ou atípico da tipicidade do crime de tráfico de estupefacientes, entende que tal terá sempre de ser aferido caso a caso

XIV - Ora, no caso dos autos, não só não estamos perante um “consumo partilhado”, como já se explicou supra, como também não se poderá, em nossa opinião, considerar que os factos dados como provados configuram uma situação de consumo atípico como as mencionadas acima, porque as quantidades detidas pelo arguido excediam manifestamente as necessárias para um consumo médio individual de 3 e de 10 dias

XV - Com efeito, ficou provado que o arguido detinha 3 plantas de canábis (folhas e sumidades), com o peso líquido total de 38 gramas, correspondendo a 75 doses médias individuais diárias

XVI - Não nos parece, pois, que, nestas circunstâncias, considerando desde logo a quantidade de estupefaciente detida pelo arguido - suficiente para 75 doses diárias, destinadas totalmente à cedência à sua companheira -, se possa...

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