Acórdão nº 510/22 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 510/2022

Processo n.º 899/2021

3ª Secção

Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Instrução Criminal de Setúbal – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (em seguida, «LTC»), da decisão proferida por aquele Tribunal, em 7 de julho de 2021, que julgou procedente a providência de habeas corpus instaurada pelo ora recorrido, determinando, em consequência, a sua imediata libertação.

2. No segmento que aqui releva, lê-se na decisão recorrida o seguinte:

«A. veio instaurar os presentes autos de habeas corpus, invocando que se encontra em isolamento profilático, por 14 dias, determinado pelo SEF, desde 04/07/2021, data em que chegou do Brasil a Lisboa, via aérea, após ter sido sujeito a testes PCR, cujo resultado foi sempre negativo.

Segundo o certificado de morada emitido pelo SEF, o requerente teria que cumprir um período de isolamento profilático, nos termos do Artigo 36º, 1 e 37, nº 6 ambos do Dec.-Lei nº 7/2021 de 17/04, a que acresce o Artigo 21º da Resolução do CM nº 77-A/2021 de 24/06 para o período compreendido entre 28/06 e 11/07.

Tal isolamento constitui uma situação de detenção ilegal, por violadora do Artigo 220º do CPP e inconstitucional, por violadora do seu direito à liberdade, dado que no momento atual, o País não se encontra sujeito ao estado de emergência, mas a estado de calamidade, não podendo o Governo limitar direitos, liberdades e garantias dos cidadãos no mencionado contexto.

Juntou documentos, bem como foram juntos documentos pelas Autoridades de Saúde, atestando que as mesmas desconhecem a situação de isolamento profilático do Requerente e o Requerente prestou os esclarecimentos de fls. 31.

Foi ouvido o próprio Requerente e o Exmº Delegado de Saúde Local da área da residência do arguido.

*

Face à documentação junta aos autos e depoimento produzidos, mostram-se provados os seguintes factos (com relevo):

A. é cidadão português e deu entrada no Aeroporto de Lisboa, no dia 04/07/2021, pelas 05h30m, vindo do Aeroporto Internacional Tom Jobim/Aeroporto do Galeão Rio de Janeiro - Brasil, no voo TP74.

Registou os seus dados na APP Travel SEF, tendo recebido uma mensagem dizendo que teria que efetuar um período de 14 dias de isolamento profilático[c]o na sua residência, desde a data da sua chegada a Portugal uma vez que o seu voo tinha proveniência no Brasil.

Foi sujeito a teste qualitativo de coronavírus (SARS COV 2) no dia 02/07/2021, cujo resultado foi negativo (non detected).

Para efeitos de cumprimento do referido período de isolamento profilático obrigatório, foi emitido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, um "certificado de Declaração de Morada", segundo o qual tal morada seria comunicada às autoridades de saúde para efeitos de determinação do isolamento profilático "nos termos previstos no número 1 do artigo 36 e número 6 do artigo 37, ambos do Decreto n.º 7/2021 de 17/04".

O Requerente encontra-se a cumprir um período de 14 dias de isolamento profilático, na sua residência, desde 04/07/2021, na sequência de determinação verbal e informal por parte do SEF e do constante do site da TAP, estando assim em situação de detenção.

O Requerente nunca recebeu uma determinação formal para se sujeitar a isolamento profilático por 14 dias, das autoridades de saúde portuguesas.

*

Da fundamentação jurídica:

Dispõe a CRP no seu Artigo 1º 1 que “a Republica Portuguesa é um Estado de direito democrático (...) e no seu Artigo 2º, nº 2 que “o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática”, sendo que no seu nº 3 se estatui que “a validade das leis e dos demais atos do Estado das Regiões Autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas dependa da sua conformidade com a Constituição”.

Nos termos do Artigo 12º “todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição” e os “preceitos constitucionais respeitantes a direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas” (artigo 18º, nº 1), só podendo ser restringidos os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (artigos 18º, nº 2 do mesmo diploma legal.).

Nos termos do n.º 3 do Artigo 18.º do diploma citado "as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (...) não podem ter efeito retroativo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais".

O exercício de tais direitos, liberdades e garantias só podem ser suspensos pelos órgãos de soberania no estado de sítio ou de emergência, declarados na forma prevista na Constituição (Artigo 19.º, n.º 1).

No âmbito de tais direitos, liberdades e garantias avulta os previstos no Artigo 27.º, n.º 1 do diploma aqui em análise, que consubstancia uma liberdade de ambulação, de natureza física.

O n.º 3 de tal normativo legal contém a elencação das exceções legais ao exercício de tal direito e liberdade.

Não avulta entre tais exceções, o confinamento obrigatório, quarentena ou isolamento profilático, mas tão só, situações de detenções, medida de coação de prisão preventiva, prisões disciplinares, internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica e sujeição de menor a medidas de proteção, assistência ou educação.

O Artigo 31.º da C.R.P. prevê a figura do habeas corpus, enquanto providencia adequada para se impugnar uma prisão ou detenção ilegais.

Constitui matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a reportada a direitos, liberdades e garantias conforme o Artigo 165.º, n.º 1, al. b) do C.R.P.

Ora, no caso presente, a Resolução do Conselho de Ministro n.º 77-A/2021 de 24/06, declarou o estado de calamidade, em todo o território nacional até 11/07/2021.

O Acórdão do TRL de 11/11/2020, relatado por Margarida Ramos de Almeida, em 11/11/2020, in www.dgsi.pt considerou consubstanciar uma situação de detenção ilegal a atinente a confinamento, isolamento, quarentena, resguardo profilático, vigilância sanitária, etc., qualquer que seja a denominação, que não se enquadre nas previsões legais, designadamente no disposto no Artigo 27º da CRP, por se tratar de privação da liberdade por facto pelo qual a lei não permite, quando fora dos quadros legais do estado de emergência ou estado de sítio.

O TC no seu Acórdão nº 424/2020 de 18/09/2020 considerou inconstitucionais determinas normas legais (vigentes na Região Autónoma dos Açores) que impunham o confinamento obrigatório, por 14 dias, de passageiros que aterrassem na Região Autónoma dos Açores, por violação do Artigo 165º, nº 1 por referencia ao Artigo 27º, nº 1 ambos da CRP.

Ora, no caso presente, no dia 04/07/2021, vigorava o regime de estado de calamidade não o estado de emergência, logo, não poderiam ter sido os direitos, liberdades e garantias do Requerente restringidos, mormente a sua liberdade, prevista no Artigo 27.º, n.º 1 da C.R.P., sem ser nos casos previstos no n.º 3 do Artigo 27.º, exceções não aplicáveis no caso presente.

Nos termos do Artigo 220º do CPP “os detidos à ordem de qualquer autoridade podem requerer ao juiz de instrução da área onde se encontrarem a sua imediata apresentação judicial com algum dos seguintes fundamentos:

“(…) c) Ter sido a detenção efetuada ou ordenada por entidade incompetente,

d) Ser a detenção motivada por facto pelo qual a lei a não permite,

O requerente encontra-se em sua casa desde o dia 04/07/2021, após ter chegado via aérea, do Brasil, em isolamento profilático, não podendo sair da mesma.

Tal situação consubstancia uma verdadeira detenção e ilegal, por não estar preenchida no âmbito das exceções previstas no n.º 3 do Artigo 27.º da C.R.P. e violar o n.º 1 de tal normativo. Mostram-se, pois, preenchidos os requisitos legais para a procedência da presente providencia de habeas corpus.

A situação presente não se enquadra em nenhuma das elencadas no Artigo 27.º da CRP ou suas exceções, que se mostra violado, seja pela Resolução do C.M. n.º 77-A/2021 de 24/06, seja por qualquer outra normas ordinária aplicável não emanada da Assembleia da República.

Para além do mais, igualmente se mostra violado o disposto no Artigo 165.º, n.º 1 al. b) do mesmo diploma legal na medida em que tais diplomas (Decreto Lei, resolução do CM e quaisquer outras normas ordinárias emanadas do Governo, mormente normas da DGS), ao legislar sobre direitos, liberdades e garantias e, em concreto, sobre restrições à liberdade prevista no Artigo 27.º, n.º 1 da CRP, não tiveram em conta a competência da Assembleia da República quanto a tais matérias, imiscuindo-se um diploma com origem no Governo em matérias da competência de tal órgão constitucional.

São assim tais normas legais, material e organicamente inconstitucionais, inconstitucionalidade que se declara, não sendo aplicáveis e não podendo ser aplicadas no caso presente.

Desta forma, sendo inconstitucional, por violadora dos mencionados normativos legais (Artigo 19.º, n.º 1, 18.º, n.ºs 1 e 2, 21.º, n.º 1, 165.º, n.º 1, al. b) da C.R.P.), a situação de isolamento profilático a que o Requerente está sujeito, impõe-se a sua imediata libertação.

DECISÃO:

Termos em que face ao exposto, julgo procedente a presente providência de habeas corpus e, consequentemente, determino a imediata libertação do Requerente A., por se encontrar em situação de detenção ilegal.

Notifique e DN, pelo meio mais expedito, para além de via postal,...

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