Acórdão nº 0872/21.5BEPRT de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 09 de Junho de 2022

Magistrado ResponsávelCLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Data da Resolução09 de Junho de 2022
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO I. Relatório 1.

ADMINISTRAÇÃO DO PORTO DO DOURO, LEIXÕES E VIANA DO CASTELO (APDL), SA. e B….., A/C - identificadas nos autos – recorreram para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN), de 14 de janeiro de 2022, que concedeu provimento ao recurso interposto por A……, SA da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, de 29 de setembro de 2019, que havia julgado a presente ação totalmente improcedente, decidindo, em sua substituição, anular o ato de adjudicação do concurso público nº 014/2020, relativo à empreitada de “Dragagens de Manutenção de Fundos nos Portos de Leixões e Viana do Castelo”, anulando, também, o contrato de empreitada outorgado entre a APLD e a B…., e condenando a entidade demandada a elaborar um novo relatório final e a adjudicar o contrato à A…..

  1. Nas suas alegações, a Recorrente APDL formulou, quanto ao mérito do recurso, as seguintes conclusões: «(...) 6ª - A justa decisão a proferir nos presentes autos pressupõe uma abordagem dinâmica a velhos cânones, por forma a torná-los adequados à realidade económica dos nossos tempos, interpretando-os de forma atualizada e contemporânea.

    Essa é uma função que à Jurisprudência mais esclarecida está cometida, na procura de um equilíbrio dialogante entre a rigidez dos conceitos tradicionais abstratos e a realidade social e económica que hoje nos envolve e condiciona com especial incidência na lógica procedimental que pretende dar satisfação a interesses públicos.

    A matéria que nos presentes autos se analisa obriga, antes de mais, a um tratamento conceptual da estruturante noção de propriedade, procurando consolidar uma abordagem que, não a desvirtuando, seja também capaz de responder às mutáveis exigências da sua configuração, historicamente sempre inovadora.

    Essa íntima relação do homem com as coisas sofreu profundas alterações ao longo da história, sendo verdade que ao Direito sempre incumbiu compreender e integrar as realidades organizacionais de domínio que se foram sucedendo ao longo do tempo, por forma a permitir dar-lhes formal enquadramento.

    1. - Nunca descurando a imediata função de uso mas já compreendendo no seu âmbito a importante ligação instrumental com vista à realização de interesses externos específicos (deixando para trás milénios de simples apropriação física caracterizada pela inquestionável posse material) o direito romano já integrava na sua materialista noção de plena in re potestas, o jus possidendi, o jus utendi, o jus fruendi e o jus abutendi como sendo as componentes visíveis e incontestáveis do respetivo direito.

      Nesta senda, também o nosso conceito depois se desenvolveu, integrando a noção de título, enquanto elemento objetivo e duradouro e a noção de registo, publicitando a circunstância, necessária a uma sociedade cada vez mais dispersa e numerosa e, por isso mesmo, mais anónima.

      Face à evidente complexidade do seu conteúdo, sempre o direito de propriedade se desdobrou em direitos menores dele resultantes ou nele contidos, sendo também quanto a estes bem visível a evolução sofrida ao longo das sociedades e dos sistemas económicos que se foram historicamente sucedendo.

      Assim, se é verdade que todas as relações jurídicas podem, em última instância, ser compreendidas a partir das relações de propriedade, não é menos certo que a dimensão dinâmica e histórica do conceito da propriedade individual - sempre integrada pelas suas vertentes política, jurídica e ideológica - faz com que o mesmo tenha de se adaptar às realidades que lhe são subjacentes, exigindo por isso uma análise empenhada e esclarecida, sob pena de se perder “a razão das coisas”.

    2. - Supõe-se insofismável que, no tempo histórico de hoje, a noção de propriedade assume contornos profundamente desmaterializados, correspondentes mais a uma função instrumental do que a um estatuto estático.

      Não será certamente por acaso que a doutrina e a jurisprudência foram dando lugar a conceitos novos, tendentes a reconhecer essa sua progressiva desmaterialização, mais vista agora pela perspectiva dos interesses subjacentes que visa satisfazer do que pela sua linear e singela titularidade cadastral.

      É desta fonte que surgem novas concepções doutrinárias, legislativas e jurisprudenciais, adequadas a essa nova realidade jurídica e económica, sobretudo motivadas pela necessidade de objetiva responsabilização (seja ela de natureza civil, criminal ou fiscal) ou de concreta identificação do titular do interesse satisfeito, sendo disso bons exemplos o instituto da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas coletivas ou o conceito de beneficiário efetivo.

      Em comum, estes conceitos respondem ambos à mesma insofismável realidade que determina a evolução dos pressupostos jurídicos nos quais se contém o atual conceito de propriedade.

    3. - No exercício da função que lhes está cometida, os Tribunais são chamados a dirimir conflitos através da aplicação de uma justiça esclarecida, tornando-se para tal imprescindível assegurar a plena compreensão da realidade social à qual dirigem as suas decisões, sob pena de se situarem num universo ultrapassado, fechado ao mundo, com isso seguramente frustrando as expectativas que lhes compete satisfazer, colocando assim em crise a legitimidade do seu discurso conformador.

      E nesta tarefa não se poderão bastar com as simples vestes formais com que a materialidade das coisas se possa revestir, competindo-lhes saber do Direito para além do aparentemente óbvio.

    4. - O Acórdão proferido pelo TCA do Norte: - por um lado, faz uma errónea interpretação do interesse específico pretendido salvaguardar no Programa de Procedimento, onde se estabelece como aspeto de relevância positiva ser a concorrente proprietária de pelo menos um dos equipamentos propostos, com vista à classificação na pontuação atribuída no fator “Garantia de Boa Execução - Caraterísticas dos Equipamentos a Mobilizar” (sendo no âmbito deste fator que tem de ser analisada a norma regulamentar em análise e os termos expressos para a sua valoração; - por outro lado, acolhe uma noção de propriedade que não é consentânea com a realidade económica e jurídica que nos rodeia, que não pode ser desconsiderada e na qual operam inúmeras empresas de média e grande dimensão.

    5. - Quanto à interpretação do particular interesse para a entidade adjudicante na verificação da propriedade do meio alocado ao contrato, a Recorrente julga ser de entendimento pacífico considerar que o mesmo correspondia não ao cuidado e desvelo colocado na manutenção das dragas mas antes à necessária segurança de que os meios necessários à boa execução do contrato estivessem garantidos, no sentido da sua pacífica e continuada alocação ao serviço da adjudicatária e do objeto da prestação, sendo aliás só por esta via que se pode entender que o critério em causa fosse enquadrado na garantia de boa execução e caraterísticas dos equipamentos a mobilizar.

    6. - O júri de um procedimento (subscrevendo expressa declaração de inexistência de conflitos de interesses e afastando quaisquer incidentes sobre impedimentos e suspeições que sobre ele pudessem recair) é um órgão administrativo (cfr. nº 2 do artigo 20º do CPA) que ao ser criado para um procedimento específico e designado pelo órgão competente para a decisão de contratar, supostamente estará em posição de privilégio para aferir do interesse público que com esse procedimento se visa satisfazer.

      No caso vertente, o júri do procedimento deixou clara a sua interpretação da intenção subjacente à norma regulamentar, expressamente a referindo no Relatório Final de Análise das Propostas que o interesse específico pretendido salvaguardar pela entidade Adjudicante no ponto 13.2.4 do Programa de Procedimento era materializado na garantia da alocação de equipamentos à realização de uma operação ou atividade de natureza duradoura, estável e continuada no tempo e não na titularidade cadastral de um equipamento.

    7. - E sendo assim, caso Vossas Excelências assim venham também a entender, a análise do fundamento da ação sub specie, terá de remeter para esse “interesse”, que motivou a existência do respetivo parâmetro de valoração.

      Ao julgador apenas cabe aferir se o primordial interesse da entidade adjudicante, desta forma acolhido no Programa de Procedimento elaborado, correspondia a um interesse merecedor de tutela jurídica e situado dentro do âmbito da legalidade.

      O escrutínio a fazer depois será tão só verificar-se se esse interesse (público) estava ou não assegurado na proposta da Contrainteressada, por forma a merecer a pontuação que lhe foi atribuída, nesse específico aspeto.

    8. - Por outro lado, este mesmo interesse fica completamente salvaguardado através da garantia de que os equipamentos em causa estão integrados numa relação complexa de domínio que assegura a vontade da permanência na execução contratual, vontade esta determinada por um evidente escopo societário único, operativo, empenhado, transversal e independente de qualquer vontade externa à boa execução do contrato.

    9. - Dos esclarecimentos prestados pela Contra Interessada ao Júri do Procedimento, integrados pelo Relatório de Contas da B….. HOLDING A/S (a ele anexos, constantes do Processo Instrutor) resultou claro estar-se perante uma situação de controlo societário, através da propriedade de participações sociais e de integração num único grupo empresarial.

      Perante esta inegável realidade jurídica, não poderá a mesma ser simplisticamente ignorada, antes se impondo que seja por esta via que se estabelece, em última instância, a propriedade de bens e o seu efetivo domínio.

    10. - Esta identificada participação acionista majoritária, que determina igualmente o controle da administração e das políticas empresariais de várias empresas, sendo uma realidade inultrapassável dos nossos dias, obriga naturalmente a adotar uma perspectiva...

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