Acórdão nº 334/22 de Tribunal Constitucional (Port, 03 de Maio de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução03 de Maio de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 334/2022

Processo n.º 824/21

Plenário

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam em Plenário do Tribunal Constitucional,

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Instrução Criminal de Braga (Tribunal Judicial da Comarca de Braga), foi interposto pelo Ministério Público recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), da sentença proferida por aquele Tribunal, em habeas corpus, em 27 de julho de 2021 (fls. 11-28).

2. No que releva para o presente caso, a decisão recorrida recusou a aplicação da interpretação normativa resultante do previsto no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, da Resolução de Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, segundo a qual se impõe o confinamento obrigatório, e a consequente privação da liberdade, de qualquer cidadão, por ordem administrativa, sem critérios objetivos e uniformes e sem controlo judicial. O Tribunal a quo entendeu que tal dimensão normativa contraria os comandos dos artigos 1.º, 13.º, 18.º, 20.º, 27.º e 165.º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa.

Com isso, aquele juízo determinou a desaplicação, com base em inconstitucionalidade, da dimensão normativa explicitada e ordenou a imediata libertação do então requerente.

A decisão recorrida assentou, em síntese, nos seguintes factos e fundamentos:

«O requerente foi notificado, em 20/07/2021, pelos militares do Posto Territorial de Amares da GNR de que na sequência de determinação da autoridade de saúde/profissional de saúde foi-lhe determinado vigilância ativa e como tal terá de permanecer em Confinamento Obrigatório na morada Travessa …, n.° .., …, Amares, até à data de 28/07/2021, tendo então sido advertido de que o não acatamento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência. Além disso, relatou o requerente que se sentiu como se tivesse sido preso pela prática de um crime (sic), posto que os militares da GNR iniciaram patrulha intensiva junto da sua residência. n.° .., …, Amares, até à data de 28/07/2021, tendo então sido advertido de que o não acatamento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência. Além disso, relatou o requerente que se sentiu como se tivesse sido preso pela prática de um crime (sic), posto que os militares da GNR iniciaram patrulha intensiva junto da sua residência.

Ora, perante este quadro não é apenas o direito de circulação do requerente que está limitado, mas efetivamente é a sua liberdade que se mostra coartada. De facto, qualquer cidadão perante este quadro não tem dúvidas em concluir que a liberdade que o requerente tem naquela situação em pouco difere da liberdade que tem um recluso que se encontra preso, ainda que numa espécie de "prisão domiciliária", sem poder desempenhar a sua atividade profissional ou, sequer, sair de casa para comprar bens de primeira necessidade.

[…]

Assim, e aqui chegados parece-nos inequívoco que estando o requerente privado, de facto, da sua liberdade de circulação e constrangido no exercício pleno das demais dimensões do seu direito à liberdade pessoal, imposta por uma decisão de autoridade administrativa, pode socorrer-se do habeas corpus para fazer valer a sua pretensão (se essa pretensão procede ou não, é questão diversa).

[…]

No caso dos autos, e atendendo a que já não vigora o Estado de Emergência, o pedido de habeas corpus tem respaldo por recurso direto ao artigo 31.º, n.º 1, da CRP.

Em síntese, concluímos que o requerente está privado da liberdade e que é legítimo o recurso do mesmo ao instituto do habeas corpus.

(…)

Dito de outra forma, importa aferir se a referida Lei de Bases da Proteção Civil, na parte que se transcreveu, permite ao Governo a compressão do direito à liberdade nos termos que resultam do confinamento imposto pelas suas resoluções. Ou, colocando a questão de outra forma, se tem o Governo competência para legislar em matéria de liberdade de circulação impondo o confinamento profilático?

Analisadas as alíneas do artigo 21.º da referida Lei da Proteção Civil, verificamos que é na alínea b) que se determina que o ato que declare o estado de calamidade define os limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, fazendo antever que se determina a definição dos limites é porque pressupõe a possibilidade de a autoridade proceder, no caso concreto, a essa limitação.

[…]

Porém, cremos que face à factualidade apurada e os termos em que foi determinado o confinamento obrigatório (por simples contacto com pessoa infetada com a doença do COVID-19), não estamos perante uma mera limitação ou condicionamento à circulação ou permanência de pessoas que possa ser enquadrado no artigo 21.º da Lei n.º 27/2006 e, por isso, no artigo 3.º, da Resolução do Conselho de Ministros. E não pode ser enquadrado porque, como concluímos supra, o confinamento profilático obrigatório, por 8 dias, imposto ao requerente (que, ademais, não tem qualquer sintoma indiciador do Covid-19) é uma verdadeira limitação do seu direito de liberdade e certamente não foi imposto por razões de segurança do próprio (requerente).

Estamos perante uma restrição efetiva de um direito fundamental, que não encontra respaldo no invocado artigo 21° do supracitado diploma legal (Lei de Bases da Proteção Civil).

[…]

Conforme decorre do disposto no artigo 165.º, n° 1, da CRP, no que ora interessa, que ‘É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: b) Direitos, liberdades e garantias [...]’.

Ora, da análise conjugada de tais normas extraímos que a competência para legislar sobre direitos, liberdade e garantias é da Assembleia da República, ou do Governo da República, mediante autorização daquela.

Sucede que, no caso, o carecia o Governo de autorização da Assembleia da República para legislar sobre a matéria em apreço.

[…]

Em suma, e agora voltando ao caso concreto, a Resolução do Conselho de Ministros n° 45-C/2021, /2020, ao impor (na regulamentação que se faz em anexo do regime de calamidade) o confinamento profilático obrigatório, restringe de forma flagrante o direito à liberdade, estando ferida de inconstitucionalidade, uma vez que a CRP não reconhece legitimidade ao mesmo para a restrição de direitos fundamentais.

Estamos, pois, perante um ato ferido de inconstitucionalidade formal orgânica.

[…]

Em suma, pelo que supra consignamos, entendemos que ainda que não padecesse de inconstitucionalidade formal e orgânica, sempre se verificaria a inconstitucionalidade material da obrigação de confinamento obrigatório por violação dos princípios da liberdade, da igualdade e da proporcionalidade (nas suas vertentes de necessidade e proibição de excesso).

[…]

Mas ainda que se admitisse que não se verificavam nenhuma das inconstitucionalidades supra apontadas, há um vício de que padece e que cremos ser inequívoco: a inexistência de um regime procedimental que permita a sindicabilidade da decisão de confinamento obrigatório - nada é regulado a tal título em nenhuma das resoluções. E se as precedentes Resoluções do Conselho de Ministros ainda tinham o respaldo do Estado de emergência e, consequentemente, valia o disposto no artigo 2°, n° 2, alínea a), da Lei n° 44/86, de 30 de Setembro, na Resolução que está sob escrutínio (45- C/2021) não se fixa nenhum procedimento que garanta a comunicação a quem fica sujeito ao confinamento dos motivos desse confinamento, quais os seus direitos e qual o modo de sindicar a decisão.

E a questão procedimental não é de menos importância, pois a ausência da sua regulamentação implica uma insindicabili[da]de si[s]temática pela via judicial, quer de modo antecipado quer na vertente de validação subsequente, como ocorre na previsão da Lei 44/86. E nesse caso, apenas resta o recurso ao meio extraordinário do habeas corpus.

Estamos, pois, perante uma absoluta ausência de informação sobre os mecanismos de acesso ao direito, o que configura uma flagrante violação não só do disposto no n° 4 do artigo 27°, da CRP, que impõe que "Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos.", como do artigo 20°, da CRP, que dispõe no seu n° 1 que "A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (...)", acrescentando o seu n° 5 que "Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.".

Aliás, a própria Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no n° 4 do seu artigo 5°, prevê de modo expresso que "Qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal."

A propósito de tal questão, importa fazer notar que a cominação do crime de desobediência feita pelos militares da GNR ao requerente, teve por base legislação revogada (pelo DL n.° 20/2020), o que reforça o argumento do desamparo legal do requerente que se mostrou, para mais, confrontado com legislação revogada!

Por fim, não podemos deixar de sublinhar que no caso em apreço não temos dúvidas que a medida de confinamento obrigatório implementada pelo Conselho de Ministros pretende a segurança de todos os concidadãos, mas qualquer medida - mesmo que seja para o bem comum - tem ainda assim de respeitar os princípios constitucionais que regem um estado de direito, e a República Portuguesa é um estado de direito...

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