Acórdão nº 1045/20.0T8GMR.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 21 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelMARIA DA GRAÇA TRIGO
Data da Resolução21 de Abril de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra A..., Unipessoal, Lda.

e BB, médica-dentista, pedindo, com fundamento em responsabilidade civil por acto médico, a condenação das RR. a indemnizar solidariamente o A. na quantia de € 9.050,00, a título de danos patrimoniais e de € 21.000,00, a título de danos não patrimoniais, quantias a que acrescem de juros de mora legais, a contar da citação.

As RR. contestaram e requereram a Intervenção Principal provocada da Seguradora Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A., a qual foi admitida, tendo a interveniente apresentado contestação.

Em 12 de Maio de 2021 foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo as RR. do pedido.

Inconformado, o A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação ..., pedindo a modificação da decisão de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 21 de Outubro de 2021, o recurso foi julgado improcedente, confirmando-se, por unanimidade, a decisão recorrida.

  1. Veio o A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por via normal e, subsidiariamente, por via excepcional.

    Relativamente à admissibilidade da revista por via normal, invoca o Recorrente a existência de fundamentação essencialmente diferente, na medida em que, alega, «a 1ª instância julga com base na culpa do A., aqui recorrente. A 2ª instância julga por ausência de culpa quer do A., quer das RR., ora recorridas».

    Pugna a Interveniente Ageas, S.A. pela inadmissibilidade do recurso, não se pronunciando a R. Recorrida sobre tal questão.

    Vejamos.

    A sentença fundamentou a decisão de improcedência nos seguintes termos: «Cumpre nos presentes autos apurar da existência de uma obrigação de indemnização pelas Rés, em virtude de colocação deficiente de prótese dentária.

    O Autor dirigiu-se ao estabelecimento da 1.ª Ré para realização deste tratamento, tendo celebrado com esta um contrato de prestação de serviço médico, que se enquadra na noção geral do contrato de prestação de serviço, previsto no artigo 1154.º do Código Civil.

    No contrato de prestação de serviço médico existe como obrigação contratual principal a obrigação de tratamento, de prestação de cuidados de saúde, que se desdobra em diversas prestações e outros deveres laterais, como deveres de cuidado e proteção do doente.

    A proteção dos ‘danos concomitantes’ é incorporada no vínculo contratual, existindo, ao lado da obrigação principal, uma obrigação de não causar danos noutros bens pessoais ou patrimoniais do doente, diferentes daquele que constitui o objeto do negócio jurídico (Rute Teixeira Pedro, A responsabilidade civil do médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, 2008, pág. 80).

    O não cumprimento destes pode ser causa de responsabilidade contratual, na medida em que viola deveres laterais a que contratualmente está obrigado, mas também de responsabilidade extracontratual, desde que violado o direito à integridade física, direito absoluto tutelado pelo princípio geral de responsabilidade civil nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil (Ac. STJ de 19-06-2001 - Revista n.º 1008/01, disponível em www.stj.pt).

    O Autor queixa-se de quebra da prótese na colocação, mas também omissão de tratamento que implicaria a ofensa na saúde dentária, com repercussões na sua saúde geral. Verificar-se-ia, assim, uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, como ocorre frequentemente nas hipóteses de responsabilidade civil por atos médicos. A orientação da jurisprudência é no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual por ser mais favorável ao lesado, havendo ainda prevalência da tese segundo a qual, assistindo ao lesado uma dupla tutela (tutela contratual e tutela delitual), ele pode optar por uma ou por outra (cf. Ac. STJ citado de 19/06/2001).

    Desde logo, a responsabilidade da 1.ª Ré pela conduta dos auxiliares (médicos, enfermeiros, e outros) regula-se pelo regime do artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil, que dispõe que “O devedor é responsável perante o credor pelos atos (…) das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor” (Ac. STJ de 28/01/2016, p. 136/12.5TVLSB, www.dgsi.pt).

    Na área do exercício da medicina, exige-se ao médico que atue com aquele grau de cuidado e competência que é razoável esperar de um profissional da mesma especialidade, agindo em circunstâncias semelhantes. Desta forma e no âmbito da responsabilidade profissional, o critério do bom pai de família é substituído pelo critério do bom profissional da categoria e especialidade do devedor à data da prática do facto (Luís Filipe Pires de Sousa, O ónus de prova na responsabilidade civil médica, DataVenia, Ano 6, N.º 08, junho 2018, disponível em www.datavenia.pt).

    Assim, cabia à Ré demonstrar os procedimentos que empregou e a sua adequação, bem como a atuação que levou a cabo para evitar estas ocorrências (artigos 344.º, n.º 1 e 799.º, n.º 2 do Código Civil).

    Dos factos provados resultou que a 2.ª Ré efetuou os estudos e trâmites adequados, tendo colocado a prótese definitiva sem qualquer ocorrência. Resultou que foram respeitados os procedimentos médicos e técnicos exigíveis, e que não foi a sua falta de zelo e cuidado que provocou as lesões.

    Cerca de dois anos depois, os exames clínicos evidenciaram uma fratura por palato no dente 1.2, com cárie e focos infeciosos associados aos dentes 1.3 e 1.5, dentes pilares da prótese fixa, que não foram desvitalizados neste procedimento.

    Da prova produzida resultou que tal não se deveu a culpa das Rés, mas sim do próprio Autor, que exigiu a quebra da prótese e não tratou de proceder à higiene dentária aconselhada, nem aos tratamentos sugeridos.

    Não se divisa, por conseguinte, qualquer ato voluntário e culposo da 2.ª Ré, pelo que fica afastada a obrigação de indemnização, bem como da seguradora interveniente, para quem fora transferida, por força do contrato de seguro, a responsabilidade civil pelo exercício da atividade médica.

    Nestes termos, terá a ação de improceder.» [negritos nossos] O acórdão da Relação, depois de proceder a extenso enquadramento teórico da responsabilidade médica, fundamentou a decisão da seguinte forma: «Ora, reportando à matéria apurada no caso, não resulta da mesma qualquer ligação entre as consequências que o recorrente “sofreu” e a atuação/intervenção da 2ª R. ao fazer a colocação da prótese definitiva ao mesmo (muito embora, e já adiantamos que aqui discordamos da afirmação feita na sentença, também não se apurou que decorreu da deficiente higiene dentária do recorrente, ou sequer da quebra da prótese que este pretendeu que a 2ª R. realizasse).

    O ponto 43 dos factos não permite essa conclusão. Igualmente não se apurou que a 2ª R. deixasse de prestar qualquer cuidado devido ao recorrente (e designadamente não se provou a alegada desvalorização das suas queixas). Muito concretamente não há ligação causal entre o descrito nos pontos 32, 33, 34 e 37 e a atuação da 2ª R..

    Os factos descritos nos pontos 3, 5, 6, 7, 9, 11, 12, 13, permitem antes dizer que a 2ª R. realizou os estudos e efetuou a preparação do ato sem que dali decorra qualquer erro, e o mesmo se diga da realização final do trabalho, dando também as orientações e o plano que o recorrente devia seguir posteriormente à colocação da prótese.

    Sucede que o recorrente só volta a comparecer na 1ª R. muito depois (em outubro de 2018), sem se saber se entretanto cumpriu o estabelecido. Na verdade, só voltou a comparecer em consulta em agosto de 2018, noutra clínica.

    E na fase seguinte, resulta dos pontos 16 a 24 e 27 a 31 que o recorrente não deixou de ter a assistência ou orientação prestadas pela 2ª R..

    Significa isto que não se apurou um comportamento ilícito, e ainda que a ilicitude se presumisse (o que não defendemos) ela mostra-se afastada no caso concreto, conforme resulta do apuramento dos factos que consta dos autos no que respeita à atuação da 2ª R.. Igualmente se mostraria afastada qualquer presunção de culpa que se lhe pudesse assacar (se tivesse chegado a operar, o que não sucede já que está afastado “ab initio” o cumprimento defeituoso). Não se vislumbra que tenha sido realizado um ato deficiente ou defeituoso a que corresponderia o ato ilícito, antes pelo contrário, mostra-se descrito um procedimento que se afigura correto, conforme as “leis da arte”.

    O “cumprimento é defeituoso sempre que haja desconformidade entre as prestações devidas e aquelas que foram efectivamente realizadas pelo prestador de serviços médicos” - Carlos Ferreira de Almeida, obra citada, pags. 116/117.

    Para além da jurisprudência que já foi sendo mencionada, acrescentamos a abordagem feita nos Acs. da Rel. de Lisboa de 26/3/2015, de 29/6/2017, e da Rel. do Porto de 17/6/2014 (www.dgsi.pt).

    Em suma, para além de não se ter provado um qualquer dano direta e causalmente (ou até reflexamente) decorrente da intervenção da R. (que da sua atuação tenha decorrido uma violação da integridade física do recorrente da qual resultem danos pessoais e patrimoniais), esta intervenção foi realizada com cumprimento das “leges artis”, falecendo a ilicitude, e estando também afastada a culpa presumida que sobre a 2ª. R. recairia.

    Portanto, por um lado o recorrente não fez prova do que lhe competia, e por outro lado, aos R.R. fizeram prova do cumprimento cabal da sua obrigação no caso concreto: colocação da prótese definitiva atuando dentro dos parâmetros da diligência exigível.

    Nada mais se nos afigura acrescentar, concluindo-se pela improcedência do recurso e manutenção do sentido da decisão proferida.».

    [negritos nossos] Temos, pois, que a 1.ª instância absolveu as RR. por entender não ter sido feita prova de actuação ilícita e culposa das RR. e por considerar que os danos são imputáveis à conduta culposa do lesado. Enquanto o Tribunal da Relação entendeu não existir culpa do lesado, mantendo a...

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