Acórdão nº 64/19.3T8MTR.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 21 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelFÁTIMA GOMES
Data da Resolução21 de Abril de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório 1.

AA e BB vieram intentar acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra COMUNIDADE LOCAL DOS BALDIOS ..., representada pelo Conselho Diretivo, pedindo que a Ré reconheça aos Autores a qualidade e atribuição de compartes daquela Localidade.

  1. Regularmente citada, veio a Ré apresentar contestação.

  2. Os Autores foram convidados pelo Tribunal a apresentar uma nova petição inicial, face às insuficiências apontadas, tendo apresentado articulado aperfeiçoado em 24-10-2019.

    Para tanto, em síntese, invocaram como causa de pedir o seguinte: i) os AA. têm terrenos na localidade da ..., sendo o A. oriundo daquele local onde herdou de seu pai e adquiriu o quinhão hereditário dos seus irmãos; ii) terrenos estes que os AA. destinam a exploração agrícola; iii) existem fortes ligações sociais e de origem à comunidade local da ...; iv) os antepassados do A. marido eram daquela localidade e tinham lá os seus bens e haveres que se transmitiram de geração em geração, cultivando os terrenos rústicos os seus produtos que colhiam para seu sustento, colocando o gado nos pastos e baldios de ...; v) assim como o fazem agora os AA., convivendo com as pessoas daquela localidade, onde têm amigos, vão a festividades que ali ocorrem, ajudando na limpeza dos matos, regos de água, e onde têm uma exploração agrícola e pastoril em ...; vi) os AA. são detentores da marca de exploração pecuária ...; vii) apesar do pedido dos AA., a Ré indeferiu o pedido de reconhecimento da qualidade de compartes do Baldio ...; viii) não restando, senão aos AA. recorrer a esta via judicial para que lhes seja reconhecida a qualidade de compartes também da localidade de ..., freguesia ....

  3. A Ré, notificada da petição aperfeiçoada, veio apresentar contestação em 24- 10-2019, com os fundamentos aí vertidos, pugnando pela improcedência da acção, não reconhecendo aos Autores a qualidade de compartes, por considerar não se verificarem os pressupostos para o efeito.

  4. A demanda prosseguiu os seus trâmites, tendo sido proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

  5. Realizou-se o julgamento na sequência do qual foi proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos: “

    1. Julgar a ação interposta pelos Autores parcialmente procedente e, em consequência, reconhecer ao Autor BB o direito à atribuição da qualidade de comparte da Comunidade Local dos Baldios ..., condenando-se a Ré a reconhecer essa qualidade; b) Absolver a Ré dos demais pedidos contra si deduzidos pelos Autores; c) Condenar as partes no pagamento das custas da ação, na proporção do respetivo decaimento.”.

  6. Inconformada veio a R. recorrer para o Tribunal da Relação, que elencou como questões a decidir: - Verificar se os factos constantes dos pontos 11, 14, 15, 16, 17, 18, 18, 20, 21 e 22 poderiam ser considerados pelo Tribunal apesar de não terem sido alegados.

    - Caso se conclua pela afirmativa relativamente ao ponto anterior, verificar se a prova desses factos resultou da instrução da causa; - Verificar se o Tribunal podia sindicar a decisão da Assembleia de Compartes respeitante ao indeferimento do pedido do A. de ser considerado comparte da Comunidade Local dos Baldios ...; - Caso a resposta à questão anterior seja positiva, analisar se o Réu pode ter a qualidade de comparte da mencionada Comunidade.

  7. O Tribunal da Relação conheceu do recurso e decidiu: “julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida”.

  8. O A.

    BB não se conformou com o acórdão, apresentando recurso de revista onde formula as seguintes conclusões (transcrição):

    1. O presente recurso de revista vem interposto do Acórdão proferido nos autos à margem referenciados o qual, vem interposto do Acórdão proferido nos autos à margem referenciados o qual revogou a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.

    2. Esta decisão recorrida constitui um gravíssimo atropelo da Justiça e das regras processuais adjetivas e substantivas com a qual o Recorrente não se pode conformar, e não conforma, constituindo os Colendos Conselheiros o derradeiro esteio e vivo impedimento da flagrante violação do Direito e do bom senso que o Acórdão recorrido opera, regras estas que inclusivamente precedem os princípios e regras merecedoras de tutela jurídica violadas e identificadas nos autos e nas presentes Alegações de recurso.

    3. O aqui recorrente intentou a presente Ação com base no facto de o pedido que fez à Comunidade Local dos Baldios ... de lhe ser atribuída a qualidade de comparte, ter sido negado, sem qualquer fundamento, pela Assembleia de Compartes, e em subsequência de lhe ter sido negada tal qualidade de comparte pela Assembleia de Compartes de ... que intentou a uma Ação Declarativa de Condenação contra a Comunidade Local dos Baldios ....

    4. Ação essa que foi julgada procedente pelo Tribunal de 1.ª Instância que lhe reconheceu o direito à atribuição da qualidade de comparte da Comunidade Local dos Baldios ..., condenando-se a Ré a reconhecer essa qualidade; de tal decisão foi pela Ré interposto Recurso de Apelação para o Tribunal da Relação ... o qual proferiu o Acórdão revogatório de tal sentença. Não havendo, assim, dupla conforme, artigo 671.º n.º 2 do CPC. Pelo que o presente Recurso deve ser julgado totalmente admissível.

    5. Afigura-se incompreensível e impossível de acolher de forma Sã e Justa no complexo normativo-judicial português que, atenta a prova efetuada e produzida em sede quer de Articulados quer na audiência de discussão e julgamento bem como da sentença de 1-ª instância, a decisão do Tribunal da Relação só poderia ser no sentido de confirmar esta última.

    6. O Tribunal de 1.ª instância formou a sua convicção tendo não só em consideração a posição assumida pelas partes nos articulados que resultou da apreciação crítica e conjugada, à luz das regras da experiência comum, dos depoimentos das testemunhas inquiridas, das declarações das partes prestadas em audiência de julgamento, e dos documentos carreados para os autos. Teve-se igualmente por presente as regras de distribuição do ónus da prova.

    7. Também atentou à evolução do conceito de comparte à luz da sucessão dos regimes legais incidentes sobre os baldios, e sobre os motivos para uma maior abertura do legislador à atribuição da qualidade de comparte, relacionados com a profunda modificação da relação da sociedade com os baldios, com novas formas de utilização, sendo propósito do legislador ajustar o regime legal dos baldios às novas formas de exploração que atualmente incidem sobre aquele tipo de bens comunitários.

    8. No próprio Acórdão de que se recorre e atenta tal evolução da Lei aplicável ao Baldios, que foi e vem sendo ampliada a possibilidade de alguém ser comparte de determinada comunidade, a fim de evitar a desertificação dos meios rurais promovendo a sua dinamização, mas, contraditoriamente o Tribunal da Relação proferiu decisão que restringiu (contrária à Lei que agora vigora) inopinada e incompreensivelmente essa possibilidade, I) A interpretação que o Acórdão recorrido faz do artigo 7.º da presente lei do que Regula os Baldios lei 75/17 de Agosto, é a todos os títulos inaceitável. tal interpretação não tem em consideração que como diz Larenz “compreender” uma norma jurídica requer o desvendar da valoração nela imposta e o seu alcance. A sua aplicação requer o valorar do caso a julgar em conformidade com ela ou, dito de outro modo, acolher de modo adequado a valoração contida na norma ao julgar o caso concreto (José Lamego, Hermenêutica e Jurisprudência, pág. 66).

    9. No caso sub judice, o Acórdão recorrido olvidou completamente tudo isso, fazendo uma leitura dos factos e/ou das normas aplicadas distorcida, desfasada e insensível à realidade humana, social, económica e política que julga ou que enquadra e circunstancia o litígio em causa, acabando por chegar a uma inusitada e injustificada solução revogatória da bem elaborada sentença da 1.ª instância, que julgou procedente o pedido formulado pelo aqui Recorrente no sentido de lhe ser reconhecido o legítimo direito da atribuição da qualidade de comparte da Comunidade Local dos Baldios ... e de condenar a Ré a reconhecer essa qualidade.

    10. Esquecendo o Acórdão recorrido que a partir do caso o interprete procede em buscar as regras e tornar a ele num procedimento circular “o chamado círculo interpretativo” de direção bipolar, que finaliza quando se compõe de modo satisfatório as exigências do caso e as pretensões das regras jurídicas (Gustavo Zagrebelsky, El derecho dúctil, ley, direitos, justiça, pág. 133) Acentuando quanto ao elemento histórico, e no que ao caso concreto importa considerar, os precedentes normativos.

    11. E estes precedentes apontam, em suma, e sem dúvida, no sentido de que a atual Lei dos Baldios 75/2017 17 de Agosto alargou o conceito de compartes, que no seu artigo 2.º define como «Comparte», a pessoa singular à qual é atribuída essa qualidade por força do disposto no artigo 7.º - cf. alínea b).

    12. Por sua vez, define por «Universo de compartes» o conjunto de pessoas singulares, devidamente recenseadas como compartes relativamente a determinado imóvel ou imóveis comunitários, também designado nesta lei comunidade local.

    13. Preceitua o artigo 7.º o seguinte: - Compartes são os titulares dos baldios- O universo dos compartes é integrado por cidadãos com residência na área onde se situam os correspondentes imóveis, no respeito pelos usos e costumes reconhecidos pelas comunidades locais, podendo também ser atribuída pela assembleia de compartes essa qualidade a cidadão não residente. Aos compartes é assegurada igualdade no exercício dos seus direitos, nomeadamente nas matérias de fruição dos baldios e de exercício dos direitos de gestão, devendo estas respeitar os usos e costumes locais, que, de forma sustentada, devem permitir o aproveitamento dos recursos, de acordo com as deliberações tomadas em assembleia de compartes.

    14. Ficando provado que o aqui Recorrente é...

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